terça-feira, 28 de novembro de 2023

BIOHACKERS E NUTRIÇÃO ESPORTIVA, QUAL RELAÇÃO?

 

BIOHACKERS E NUTRIÇÃO ESPORTIVA, QUAL RELAÇÃO?

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.




Olá pessoal, tudo bem?

      

O ex-pugilista Dana White, com 8,6M seguidores no Instagram, diz se sentir um “super-herói” após obter grande transformação corporal através de jejum de água de 86 horas (3,5 dias). Segundo White, ele segue orientações de um biológico e biohacker, que diz que jejum com água reduz risco de câncer, Alzheimer e outras doenças. Em seguida, observei alguns profissionais de saúde, incluindo nutricionistas e profissionais de educação física, hipervalorizando o termo BIOHACKER, afinal “somos hackers de nossa própria biologia”, dizem. Pois bem, muitas destas pessoas se quer sabem a definição do termo e, muito menos, as consequências do BIOHACKING. Portanto, deixa-me explicar o assunto e desmistificar uma relação absurda que querem estabelecer com a nutrição esportiva.

 

O QUE SÃO BIOHACKERS?

 

Os biohackers são hackers da própria biologia (tradução livre), ou seja, pessoas que buscam meios de otimizar o funcionamento de seus organismos. Por vezes, são chamados de “biólogos de garagem”, pois eles aprendem sozinhos, são autodidatas, trabalham em suas casas ou porões, não estão afiliados a nenhuma Instituição de Ensino Superior e não seguem regulamentações governamentais. Alguns, mas não todos, possuem formação superior (mas raramente encontrará um mestre ou doutor entre os biohackers). Outros se dizem “trans-humanos”, ou seja, usam a biologia e informática para contornar as imperfeições humanas através da biotecnologia, formando seres humanos "perfeitos".

Biohacking são as estratégias, métodos, técnicas e procedimentos, não convencionais e, muitas vezes, sem quaisquer respaldos científicos, usadas pelos biohackers. Trata-se, na realidade, de uma mescla, mistura, de técnicas da biologia com informatização hacker.

Essas pessoas, os biohackers, acreditam que podem criar “super-humanos” com implantes de chips (no cérebro e corpo), injeções com substâncias das mais variadas possíveis (combinação de hormônios, geralmente), manipulação genética, jejum, dietas mirabolantes, enfim, tudo que você possa ou não imaginar.

O biohacking tem duas vertentes, basicamente: aqueles que buscam uma vertente interventiva ou não interventiva. Na primeira, busca-se melhorar ou otimizar seu próprio corpo com implantes a partir de leituras genéticas. Na segunda, usa-se elementos externos para melhorar ou otimizar a performance humana. Por exemplo, implantar chips no corpo ou injetar substâncias nos olhos é interventiva. Todavia, usar luz azul ou jejum prolongado para aumentar a energia ou “curar” doenças, segundo acreditam, é não interventiva.

Em 2019, um documentário do Netflix, chamado “Seleção Artificial”, mostrou Biohackers utilizando a técnica de edição epigenética CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) para “cortar” o DNA e, até mesmo, promover rearranjos genômicos capazes, segundo biohackers,  de curar doenças ou criar “seres humanos perfeitos”. O documentário é muito bom e, ao mesmo tempo, perturbador (vejam para entender).

A partir de 2020, surgiu uma série sobre o assunto: “Biohackers”. Na série, que só vi a primeira temporada, uma jovem chamada Mia Akerlund (interpretada por Luna Wedler) acaba de entrar para a faculdade de Medicina, onde conhece alguns amigos “nada convencionais” (biohackers), digamos assim. Ela é fascinada pelos estudos de biotecnologia, onde existe um “conflito de interesse” com sua professor Tanja Lorenz (interpretada por Jessica Schwarz). Tanja é uma renomada biocientista (e biohacker), mas aí você precisa olhar a série para entender. Aliás, a série também fala da técnica CRISPR. Na minha visão, esperava mais da série, porém me parece uma “série adolescente” com poucas informações técnicas, embora nos ajude a entender um pouco mais sobre os perigos da biotecnologia para humanidade.

 

Enfim, deixa-me retomar a história do ex-pugilista Dana White:

 

White diz seguir as orientações do biólogo e biohacker Gary Brecka, mas quem é o “mentor” intelectual do ex-pugilista?

 

Segundo site do autor (www.garybrecka.com), Gary Brecka é um biohacker, biólogo (Graduado pela Frostburg State University) e cofundador da 10X Health System, com sede em Miami, que busca capacitar pessoas a se tornarem a melhor versão de si mesmas (como assim?). Ainda, segundo Gary, ele trabalhou com especialista em modelagem de mortalidade no setor de seguros de uma empresa (passou da empresa de seguros para biotecnologia anti-aging?), mas largou tudo para se dedicar ao estudo das melhores maneiras de otimizar a vida e interromper o processo de envelhecimento humano (e podemos interromper o processo natural e irreversível de envelhecimento humano?).

Existe uma grande polêmica envolvendo Gary, que já foi acusado de possuir um empreendimento fraudulento que cobra caro e não entrega resultados. Contudo, quero me deter ao fato de jejum com água para viver mais e melhor, curando doenças graves (e não as “fofocas” que você pode procurar sozinho).

 

O JEJUM DE ÁGUA PODE REDUZIR SIGNIFICATIVAMENTE O RISCO DE CÂNCER, ALZHEIMER E UMA SÉRIE DE PROBLEMAS DE SAÚDE?

 

Vejamos o que diz a ciência:

 

A restrição calórica ou jejum pode exercer alguma ação anticarcinogênica em estudos pré-clínicos (realizados antes dos ensaios clínicos propriamente ditos com intuito de avaliar um potencial efeito terapêutico específico ou novo medicamento, geralmente realizados in vitro ou animais), afinal você não fornece “alimento” à célula ávida por nutrientes em virtude do crescimento acelerado e descontrolado. Legal, não é mesmo? Porém (rs), existem três problemas aqui:

 

PRIMEIRO, não existem ensaios clínicos randomizados que confirmem tais benefícios;

SEGUNDO, a restrição calórica mostra algum efeito somente em experimentos com animais e não podemos extrapolar facilmente para seres humanos, enquanto que outros estudos mostram metodologias questionáveis e resultados controversos;

TERCEIRO, torna-se impossível sustentar um jejum apenas com água para pacientes graves, como um quadro clínico de câncer, devido caquexia do câncer.

 

Com base nisso, aconselho as seguintes leituras:

CA Cancer J Clin 71(6):527-546, 2021 (doi: 10.3322/caac.21694);

Recent Results Cancer Res 207:241-266, 2016 (doi: 10.1007/978-3-319-42118-6_12);

PLOS One 11;9(12):e115147, 2014 (doi: 10.1371/journal.pone.0115147).


PERAÍ, não terminei:

 

Existe um estudo de jejum somente com água em pacientes com câncer (Gynecol Oncol 159(3):799-803, 2020; doi: 10.1016/j.ygyno.2020.09.008). Neste estudo, mulheres com neoplasias ginecológicas receberam os ciclos de quimioterapia e deveriam manter o jejum, somente consumindo água, de 24h antes e 24h depois (portanto, 48h) dos procedimentos. Quais foram os resultados? Não houve diferença significa nos escores de qualidade de vida, embora o jejum foi bem tolerado sem grandes perdas de peso, internações hospitalares ou retardar a dose de quimioterapia.

OK, OK, OK, qualquer afirmação de jejum com água para curar o câncer é, portanto, pura especulação (se você for profissional de saúde, é um ato antiético e criminoso). E para outras doenças, o jejum com água ajuda?

 

Vejamos uma busca no PubMed:

 

Usando como descritores “Water only fasting” (jejum somente com água) aparece apenas 1 resultados: Glob Adv Health Med, 2021 (doi: 10.1177/21648561211031178). Neste trabalho, 12 homens, adultos, foram submetidos ao jejum com água por 8 dias. Como resultado, os indivíduos perderam peso, houve cetogênese, hiperuricemia, redução da glicemia e hiponatremia. Os autores concluíram que manter o jejum por mais dias, em decorrência dos efeitos metabólicos, seria prejudicial à saúde.

 

Que loucura, não é mesmo? Peraí, tem mais:

 

Vamos tentar refinar a pesquisa usando “Water only fasting and Alzheimer”. Neste caso, nenhum resultado é obtido. Ou seja, não existem estudos neste sentido e, portanto, não faça “pseucociência” extraindo informações (falsas ou equivocadas) de sua “mente criativa”.

 

E se optar por restrição calórica, apenas?

 

HUMMMM, aí apareceu Eur J Nutr 62(2):573-588, 2023 (doi: 10.1007/s00394-022-03036-1). Segundo autores, a restrição calórica reduz o peso corporal e aumenta a expectativa de vida em modelos animais, que também parece regular o desenvolvimento e progressão de algumas doenças neurológicas, incluindo epilepsia, acidente vascular cerebral (AVC), Alzheimer e Parkinson, porém se desconhece o mecanismo para tais efeitos. Peraí, trata-se de um estudo com modelos animais e você realmente quer usar este estudo para estabelecer protocolos ou procedimentos para seres humanos? Peraí, alguma metanálise? Peraí, algum ensaio clínico randomizado e controlado? Não, não existem resultados! Traduzindo: seu achismo e pseudociência pode ser “engraçadinho”, mas, na realidade, é prejudicial à saúde das pessoas.


 PROFESSOR, OS BIOHACKERS PODEM CRIAR SUPER-HUMANOS?

 

Algumas pessoas acreditam que podem hackear o corpo e a mente das pessoas na tentativa de criar “super-humanos”, mas se seu conceito de “super-humanos” são personagens da Marvel Comics, com poderes especiais, capazes de combater todo o mal do planeta Terra, então deixa te falar uma coisa: Isto Non Ecziste!

 

O que podemos chamar de “super-humanos” (embora eu não goste deste termo) faz referências às pessoas, determinadas pessoas, quem possuem capacidades físicas e mentais extraordinárias. Alguns tornam-se excelentes atletas, enquanto que outros habilidosos matemáticos. Outros, simplesmente, conseguem viver mais sem apresentar doenças (pessoas centenárias e supercentenárias). Para todos estes casos, a ciência diz existir uma espécie de “componente genético”, embora outros cientistas dizem que tais “genes” sofrem influências comportamentais, ambientais e fisiológicas. Em outras palavras, esses “super-humanos” não são resultados de manipulações genéticas, mas, sim, provavelmente foram criados dessa forma. Eles não são melhores ou piores do que nós, mas apenas diferentes.

 

Falando em viver mais, deixa-me contribuir:

 

É POSSÍVEL INTERROMPER OU RETARDAR O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO HUMANO COM BIOTECNOLOGIA BIOHACKING?

 

A “galera” do anti-aging (antienvelhecimento) diz que sim, ou seja, que podemos retardar ou desacelerar o envelhecimento com procedimentos estéticos, dieta detoxificante, modulação hormonal sintética e bioidêntica, suplementação nutracêutica funcional e exercício físico. Os biohackers, portanto, estão “surfando” facilmente nesta onda e prometem “vender dias de vida”, futuramente. Já a “galera” da medicina baseada em evidência (MBE) diz que não, pois não podemos retardar ou desacelerar um ciclo natural da vida.

 

Eu, por sua vez, perguntaria:

Como podemos medir o envelhecimento biológico e, dessa forma, saber se a estratégia X ou Y funciona? Quero dizer, opinião pessoal ou discurso de autoridade não me serve, cadê as provas científicas?

 

Em outras palavras:

Você pode medir o envelhecimento “apenas” e “unicamente” pelos cabelos brancos ou presença de rugas que uma pessoa deixou de ter?

Você pode medir o envelhecimento apenas pela redução nas taxas hormonais (estrógenos, testosterona, T3/T4, GH ou IGF1)?

Existe um marcador biológico que pode ser mensurável para avaliar o processo de envelhecimento humano?

 

Sim, o assunto é polêmico, onde as pessoas tentam entender e explicar:

 

Em 2012, um estudo abordou a “Lei da Mortalidade” ou “Lei de Gompertz”, que explicava o envelhecimento matematicamente. As variáveis dessa equação eram as forças da natureza (processo intrínseco, decorrente de processos fisiopatológicos) e fatores extrínseca (acidentes, desastres naturais, predadores, suicídios, envenenamento, etc.). Experimentos posteriores mostraram falhas nessa teoria (Sitientibus Série Ciências Físicas 08: 1-10, 2012), o que descredibilizou o estudo matemático.

Em 2017, outro estudo dizia que é “matematicamente impossível interromper o envelhecimento”, onde algumas células inevitavelmente perderão suas funções, enquanto outras irão acumular mutações potencialmente perigosas (Intercellular competition and the inevitability of multicellular aging. Proc Natl Acad Sci USA 5;114(49):12982-12987, 2017).

Em 2019, surgiu o documentário do Netflix “Seleção Artificial” (que falamos anteriormente), mostrando biohackers utilizando a técnica de edição epigenética CRISPR para “cortar” o DNA e, até mesmo, promover rearranjos genômicos capazes de curar doenças ou criar seres humanos perfeitos.

Finalmente, em 2022, um estudo relatou ser possível medir o processo de envelhecimento observando a metilação e desmetilação do DNA nuclear (A pan-tissue DNA-methylation epigenetic clock based on deep learning. Japanese Society of Anti-Aging Medicine 8:4, 2022). E, novamente, cientistas e pesquisadores criticaram a hipótese e argumentos empregados, deixando mais uma “pulga atrás da orelha”.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), por sua vez, diz que faltam evidências científicas que justifiquem a prática da medicina antienvelhecimento, ou anti-aging. Essa é a conclusão do CFM após extensa revisão de estudos científicos na literatura.

Enfim, eu já falei disso aqui no Blog (13/07/2022) sob título: É POSSÍVEL RETARDAR O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO HUMANO COM MODULAÇÃO HORMONAL?


 PROFESSOR, EXISTE ALGUMA RELAÇÃO ENTRE BIOHACKERS E NUTRIÇÃO ESPORTIVA?

 

AHHHH, SIMMM, quase estava esquecendo de falar disso:

 

Embora os objetivos primordiais dos biohackers pareçam nobres (evitar ou curar doenças; viver mais e melhor ou prolongar a vida; ter um corpo forte e atraente; melhorar a mente ou atividade cerebral), as estratégias estão equivocadas, são falsas ou completamente distorcidas da realidade, pois simplesmente NÃO POSSUEM RESPALDO CIENTÍFICO.

Na nutrição esportiva, especificamente, qual objetivo de fazer os pacientes gastarem verdadeiras fortunas com alimentos mirabolantes e exóticos ou “entupir” os mesmos com combinações de vitaminas, minerais e oligoelementos, muitos em megadose, se NÃO TEM QUALQUER NÍVEL DE EVIDÊNCIA CIENTÍFICA?

Qual estudo científico comprova a combinação de manipulados contendo manganês, magnésio, cobre, selênio, N-acetilcisteína (NAC), coenzima Q10 e vitamina C para curar todos os males das pessoas, devido “alto” pode antioxidante?

Qual paper confirma suas prescrições com excesso de vitamina D, E, K2 e resveratrol?

Curcuma longa combinado com chá verde, adicionado de licopeno e quercetina, pra quê? De onde tirou tais combinações (isso que nem falei das dosagens)?

Por que você fecha “pacotes” de prescrições manipuladas “sem pé, nem cabeça”? Me adira, até certo ponto, algumas farmácias de manipulações aceitarem tais “aberrações” sem qualquer discussão ou contraponto, não acha?

É tudo junto e misturado de tal forma que me pergunto: teve aulas de bioquímica e interação entre nutrientes, criatura?

Os objetivos aparentemente nobres, portanto, se perdem facilmente quando “biólogos de garagem”, ou melhor, “nutris de boteco”, criam protocolos baseados em opinião pessoal e achismo.  

Aliás, seria melhor dizer algo que li estes dias, mais ou menos assim:

As pessoas são suficientemente ricas para gastar dinheiro com bobagens; tolas o bastante para acreditar em curas milagrosas e estratégias mirabolantes sem respaldo cientifico; e medrosas para assumir as rédeas de suas próprias vidas para evitar a doença e morte precoce.

Então não, não, você não é um biohacker! Sua formação é nutricionista!!!

 

A grande pergunta que fica seria:

 

BIOHACKING É UMA REVOLUÇÃO BIOTECNOLÓGICA MARAVILHOSA OU UMA AMEAÇA À HUMANIDADE?

 

Provavelmente retomarei este assunto, mas deixo algumas reflexões:


Manipular microorganismos, incluindo bactérias, pode ser um caminho para curar doenças ou um caminho para criar superbactérias resistentes que acabaram com a humanidade?

Manipular o DNA das pessoas pode ser interessante para evitar doenças antes mesmo do nascimento ou pode criar “criaturas” e novas doenças jamais vistas na humanidade?

Os biohackers estão interessados em curar doenças e prolongar a vida ou se tornarem terroristas que trabalham de forma obscura para determinados governos?

Se o objetivo é prolongar a vida e otimizar o corpo e a mente, então porque criar ratos verdes e brilhantes no escuro, novas raças de cães grandes e ferozes, animais com 2 cabeças e 3 pernas?

Os biohackers querem aprimorar a raça humana ou criar a fantasia infantil de criar mutantes, super-heróis da Marvel: Hulk, Capitão América, Visão, Thor, Doutor Estranho ou Loki?

Quem garante, seguindo nessa linha de pensamento criativo, que não seresmos hackeados sem autorização? Neste sentido, como funcionaria a cibersegurança?

Se algo der errado, poderemos reverter a “bocabertice” de um biohacker? Ou seja, é possível criar livremente, inventar sorridente e hackear pessoas sem medir as consequências para o presente e futuro? 


Abraços e, caso queira compartihar, favor citar a fonte: Prof. Joelso Peralta - Blog: peraltanutri.blogspot.com