BIOHACKERS E NUTRIÇÃO ESPORTIVA, QUAL RELAÇÃO?
JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.
Olá pessoal, tudo bem?
O
ex-pugilista Dana White, com 8,6M seguidores no Instagram, diz se sentir um “super-herói”
após obter grande transformação corporal através de jejum de água de 86 horas
(3,5 dias). Segundo White, ele segue orientações de um biológico e biohacker, que
diz que jejum com água reduz risco de câncer, Alzheimer e outras doenças. Em seguida,
observei alguns profissionais de saúde, incluindo nutricionistas e profissionais
de educação física, hipervalorizando o termo BIOHACKER, afinal “somos hackers
de nossa própria biologia”, dizem. Pois bem, muitas destas pessoas se quer
sabem a definição do termo e, muito menos, as consequências do BIOHACKING. Portanto,
deixa-me explicar o assunto e desmistificar uma relação absurda que querem
estabelecer com a nutrição esportiva.
O QUE SÃO BIOHACKERS?
Os
biohackers são hackers da própria biologia (tradução livre), ou seja, pessoas
que buscam meios de otimizar o funcionamento de seus organismos. Por vezes, são
chamados de “biólogos de garagem”, pois eles aprendem sozinhos, são
autodidatas, trabalham em suas casas ou porões, não estão afiliados a nenhuma
Instituição de Ensino Superior e não seguem regulamentações governamentais. Alguns,
mas não todos, possuem formação superior (mas raramente encontrará um mestre ou
doutor entre os biohackers). Outros se dizem “trans-humanos”, ou seja, usam a
biologia e informática para contornar as imperfeições humanas através da
biotecnologia, formando seres humanos "perfeitos".
Biohacking
são as estratégias, métodos, técnicas e procedimentos, não convencionais e,
muitas vezes, sem quaisquer respaldos científicos, usadas pelos biohackers.
Trata-se, na realidade, de uma mescla, mistura, de técnicas da biologia com
informatização hacker.
Essas
pessoas, os biohackers, acreditam que podem criar “super-humanos” com implantes
de chips (no cérebro e corpo), injeções com substâncias das mais variadas
possíveis (combinação de hormônios, geralmente), manipulação genética, jejum,
dietas mirabolantes, enfim, tudo que você possa ou não imaginar.
O
biohacking tem duas vertentes, basicamente: aqueles que buscam uma vertente
interventiva ou não interventiva. Na primeira, busca-se melhorar ou otimizar
seu próprio corpo com implantes a partir de leituras genéticas. Na segunda,
usa-se elementos externos para melhorar ou otimizar a performance humana. Por exemplo, implantar chips no corpo ou
injetar substâncias nos olhos é interventiva. Todavia, usar luz azul ou jejum
prolongado para aumentar a energia ou “curar” doenças, segundo acreditam, é não
interventiva.
Em 2019,
um documentário do Netflix, chamado “Seleção Artificial”, mostrou Biohackers
utilizando a técnica de edição epigenética CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) para “cortar”
o DNA e, até mesmo, promover rearranjos genômicos capazes, segundo
biohackers, de curar doenças ou criar “seres humanos perfeitos”. O documentário
é muito bom e, ao mesmo tempo, perturbador (vejam para entender).
A partir
de 2020, surgiu uma série sobre o assunto: “Biohackers”. Na série, que só vi a primeira temporada, uma jovem chamada Mia Akerlund (interpretada por Luna
Wedler) acaba de entrar para a faculdade de Medicina, onde conhece alguns
amigos “nada convencionais” (biohackers), digamos assim. Ela é fascinada pelos
estudos de biotecnologia, onde existe um “conflito de interesse” com sua
professor Tanja Lorenz (interpretada por Jessica Schwarz). Tanja é uma renomada
biocientista (e biohacker), mas aí você precisa olhar a série para entender. Aliás,
a série também fala da técnica CRISPR. Na minha visão, esperava mais da série, porém
me parece uma “série adolescente” com poucas informações técnicas, embora nos
ajude a entender um pouco mais sobre os perigos da biotecnologia para humanidade.
Enfim,
deixa-me retomar a história do ex-pugilista Dana White:
White diz
seguir as orientações do biólogo e biohacker Gary Brecka, mas quem é o “mentor”
intelectual do ex-pugilista?
Segundo
site do autor (www.garybrecka.com), Gary
Brecka é um biohacker, biólogo (Graduado pela Frostburg State University) e
cofundador da 10X Health System, com sede em Miami, que busca capacitar pessoas
a se tornarem a melhor versão de si mesmas (como assim?). Ainda, segundo Gary,
ele trabalhou com especialista em modelagem de mortalidade no setor de seguros
de uma empresa (passou da empresa de seguros para biotecnologia anti-aging?),
mas largou tudo para se dedicar ao estudo das melhores maneiras de otimizar a
vida e interromper o processo de envelhecimento humano (e podemos interromper o
processo natural e irreversível de envelhecimento humano?).
Existe uma
grande polêmica envolvendo Gary, que já foi acusado de possuir um
empreendimento fraudulento que cobra caro e não entrega resultados. Contudo,
quero me deter ao fato de jejum com água para viver mais e melhor, curando
doenças graves (e não as “fofocas” que você pode procurar sozinho).
O JEJUM DE ÁGUA PODE REDUZIR SIGNIFICATIVAMENTE O
RISCO DE CÂNCER, ALZHEIMER E UMA SÉRIE DE PROBLEMAS DE SAÚDE?
Vejamos o
que diz a ciência:
A
restrição calórica ou jejum pode exercer alguma ação anticarcinogênica em
estudos pré-clínicos (realizados antes dos ensaios clínicos propriamente ditos
com intuito de avaliar um potencial efeito terapêutico específico ou novo
medicamento, geralmente realizados in
vitro ou animais), afinal você não fornece “alimento” à célula ávida por
nutrientes em virtude do crescimento acelerado e descontrolado. Legal, não é
mesmo? Porém (rs), existem três problemas aqui:
PRIMEIRO,
não existem ensaios clínicos randomizados que confirmem tais benefícios;
SEGUNDO, a
restrição calórica mostra algum efeito somente em experimentos com animais e não
podemos extrapolar facilmente para seres humanos, enquanto que outros estudos
mostram metodologias questionáveis e resultados controversos;
TERCEIRO,
torna-se impossível sustentar um jejum apenas com água para pacientes graves,
como um quadro clínico de câncer, devido caquexia do câncer.
Com base
nisso, aconselho as seguintes leituras:
CA Cancer
J Clin 71(6):527-546, 2021 (doi: 10.3322/caac.21694);
Recent
Results Cancer Res 207:241-266, 2016 (doi: 10.1007/978-3-319-42118-6_12);
PLOS One
11;9(12):e115147, 2014 (doi: 10.1371/journal.pone.0115147).
PERAÍ,
não terminei:
Existe um
estudo de jejum somente com água em pacientes com câncer (Gynecol Oncol
159(3):799-803, 2020; doi: 10.1016/j.ygyno.2020.09.008). Neste estudo, mulheres
com neoplasias ginecológicas receberam os ciclos de quimioterapia e deveriam
manter o jejum, somente consumindo água, de 24h antes e 24h depois (portanto,
48h) dos procedimentos. Quais foram os resultados? Não houve diferença
significa nos escores de qualidade de vida, embora o jejum foi bem tolerado sem
grandes perdas de peso, internações hospitalares ou retardar a dose de
quimioterapia.
OK, OK,
OK, qualquer afirmação de jejum com água para curar o câncer é, portanto, pura
especulação (se você for profissional de saúde, é um ato antiético e
criminoso). E para outras doenças, o jejum com água ajuda?
Vejamos
uma busca no PubMed:
Usando
como descritores “Water only fasting”
(jejum somente com água) aparece apenas 1 resultados: Glob Adv Health Med, 2021
(doi: 10.1177/21648561211031178). Neste trabalho, 12 homens, adultos, foram
submetidos ao jejum com água por 8 dias. Como resultado, os indivíduos perderam
peso, houve cetogênese, hiperuricemia, redução da glicemia e hiponatremia. Os
autores concluíram que manter o jejum por mais dias, em decorrência dos efeitos
metabólicos, seria prejudicial à saúde.
Que
loucura, não é mesmo? Peraí, tem mais:
Vamos
tentar refinar a pesquisa usando “Water
only fasting and Alzheimer”. Neste caso, nenhum resultado é obtido. Ou seja,
não existem estudos neste sentido e, portanto, não faça “pseucociência”
extraindo informações (falsas ou equivocadas) de sua “mente criativa”.
E se
optar por restrição calórica, apenas?
HUMMMM,
aí apareceu Eur J Nutr 62(2):573-588, 2023 (doi: 10.1007/s00394-022-03036-1).
Segundo autores, a restrição calórica reduz o peso corporal e aumenta a
expectativa de vida em modelos animais, que também parece regular o
desenvolvimento e progressão de algumas doenças neurológicas, incluindo
epilepsia, acidente vascular cerebral (AVC), Alzheimer e Parkinson, porém se
desconhece o mecanismo para tais efeitos. Peraí, trata-se de um estudo com modelos
animais e você realmente quer usar este estudo para estabelecer protocolos ou
procedimentos para seres humanos? Peraí, alguma metanálise? Peraí, algum ensaio
clínico randomizado e controlado? Não, não existem resultados! Traduzindo: seu
achismo e pseudociência pode ser “engraçadinho”, mas, na realidade, é
prejudicial à saúde das pessoas.
PROFESSOR, OS BIOHACKERS PODEM CRIAR SUPER-HUMANOS?
Algumas
pessoas acreditam que podem hackear o corpo e a mente das pessoas na tentativa
de criar “super-humanos”, mas se seu conceito de “super-humanos” são personagens
da Marvel Comics, com poderes especiais, capazes de combater todo o mal do
planeta Terra, então deixa te falar uma coisa: Isto Non Ecziste!
O que
podemos chamar de “super-humanos” (embora eu não goste deste termo) faz
referências às pessoas, determinadas pessoas, quem possuem capacidades físicas
e mentais extraordinárias. Alguns tornam-se excelentes atletas, enquanto que
outros habilidosos matemáticos. Outros, simplesmente, conseguem viver mais sem
apresentar doenças (pessoas centenárias e supercentenárias). Para todos estes
casos, a ciência diz existir uma espécie de “componente genético”, embora
outros cientistas dizem que tais “genes” sofrem influências comportamentais,
ambientais e fisiológicas. Em outras palavras, esses “super-humanos” não são resultados
de manipulações genéticas, mas, sim, provavelmente foram criados dessa forma. Eles
não são melhores ou piores do que nós, mas apenas diferentes.
Falando em
viver mais, deixa-me contribuir:
É POSSÍVEL INTERROMPER OU RETARDAR O PROCESSO DE
ENVELHECIMENTO HUMANO COM BIOTECNOLOGIA BIOHACKING?
A “galera”
do anti-aging (antienvelhecimento) diz que sim, ou seja, que podemos retardar
ou desacelerar o envelhecimento com procedimentos estéticos, dieta detoxificante,
modulação hormonal sintética e bioidêntica, suplementação nutracêutica
funcional e exercício físico. Os biohackers, portanto, estão “surfando”
facilmente nesta onda e prometem “vender dias de vida”, futuramente. Já a
“galera” da medicina baseada em evidência (MBE) diz que não, pois não podemos
retardar ou desacelerar um ciclo natural da vida.
Eu, por
sua vez, perguntaria:
Como
podemos medir o envelhecimento biológico e, dessa forma, saber se a estratégia
X ou Y funciona? Quero dizer, opinião pessoal ou discurso de autoridade não me
serve, cadê as provas científicas?
Em outras
palavras:
Você pode
medir o envelhecimento “apenas” e “unicamente” pelos cabelos brancos ou
presença de rugas que uma pessoa deixou de ter?
Você pode
medir o envelhecimento apenas pela redução nas taxas hormonais (estrógenos,
testosterona, T3/T4, GH ou IGF1)?
Existe um
marcador biológico que pode ser mensurável para avaliar o processo de envelhecimento
humano?
Sim, o
assunto é polêmico, onde as pessoas tentam entender e explicar:
Em 2012,
um estudo abordou a “Lei da Mortalidade” ou “Lei de Gompertz”, que explicava o
envelhecimento matematicamente. As variáveis dessa equação eram as forças da
natureza (processo intrínseco, decorrente de processos fisiopatológicos) e
fatores extrínseca (acidentes, desastres naturais, predadores, suicídios,
envenenamento, etc.). Experimentos posteriores mostraram falhas nessa teoria
(Sitientibus Série Ciências Físicas 08: 1-10, 2012), o que descredibilizou o
estudo matemático.
Em 2017,
outro estudo dizia que é “matematicamente impossível interromper o
envelhecimento”, onde algumas células inevitavelmente perderão suas funções,
enquanto outras irão acumular mutações potencialmente perigosas (Intercellular
competition and the inevitability of multicellular aging. Proc Natl Acad Sci
USA 5;114(49):12982-12987, 2017).
Em 2019, surgiu
o documentário do Netflix “Seleção Artificial” (que falamos anteriormente),
mostrando biohackers utilizando a técnica de edição epigenética CRISPR para
“cortar” o DNA e, até mesmo, promover rearranjos genômicos capazes de curar
doenças ou criar seres humanos perfeitos.
Finalmente,
em 2022, um estudo relatou ser possível medir o processo de envelhecimento
observando a metilação e desmetilação do DNA nuclear (A pan-tissue
DNA-methylation epigenetic clock based on deep learning. Japanese Society of
Anti-Aging Medicine 8:4, 2022). E, novamente, cientistas e pesquisadores
criticaram a hipótese e argumentos empregados, deixando mais uma “pulga atrás
da orelha”.
O
Conselho Federal de Medicina (CFM), por sua vez, diz que faltam evidências
científicas que justifiquem a prática da medicina antienvelhecimento, ou
anti-aging. Essa é a conclusão do CFM após extensa revisão de estudos
científicos na literatura.
Enfim, eu
já falei disso aqui no Blog (13/07/2022) sob título: É POSSÍVEL RETARDAR O
PROCESSO DE ENVELHECIMENTO HUMANO COM MODULAÇÃO HORMONAL?
PROFESSOR, EXISTE ALGUMA RELAÇÃO ENTRE BIOHACKERS
E NUTRIÇÃO ESPORTIVA?
AHHHH,
SIMMM, quase estava esquecendo de falar disso:
Embora os
objetivos primordiais dos biohackers pareçam nobres (evitar ou curar doenças;
viver mais e melhor ou prolongar a vida; ter um corpo forte e atraente; melhorar
a mente ou atividade cerebral), as estratégias estão equivocadas, são falsas ou
completamente distorcidas da realidade, pois simplesmente NÃO POSSUEM RESPALDO
CIENTÍFICO.
Na nutrição
esportiva, especificamente, qual objetivo de fazer os pacientes gastarem
verdadeiras fortunas com alimentos mirabolantes e exóticos ou “entupir” os
mesmos com combinações de vitaminas, minerais e oligoelementos, muitos em
megadose, se NÃO TEM QUALQUER NÍVEL DE EVIDÊNCIA CIENTÍFICA?
Qual estudo
científico comprova a combinação de manipulados contendo manganês, magnésio,
cobre, selênio, N-acetilcisteína (NAC), coenzima Q10 e vitamina C para curar todos
os males das pessoas, devido “alto” pode antioxidante?
Qual paper confirma suas prescrições com
excesso de vitamina D, E, K2 e resveratrol?
Curcuma
longa combinado com chá verde, adicionado de licopeno e quercetina, pra quê? De
onde tirou tais combinações (isso que nem falei das dosagens)?
Por que
você fecha “pacotes” de prescrições manipuladas “sem pé, nem cabeça”? Me adira,
até certo ponto, algumas farmácias de manipulações aceitarem tais “aberrações”
sem qualquer discussão ou contraponto, não acha?
É tudo
junto e misturado de tal forma que me pergunto: teve aulas de bioquímica e
interação entre nutrientes, criatura?
Os objetivos
aparentemente nobres, portanto, se perdem facilmente quando “biólogos de garagem”,
ou melhor, “nutris de boteco”, criam protocolos baseados em opinião pessoal e
achismo.
Aliás,
seria melhor dizer algo que li estes dias, mais ou menos assim:
As pessoas
são suficientemente ricas para gastar dinheiro com bobagens; tolas o bastante para
acreditar em curas milagrosas e estratégias mirabolantes sem respaldo
cientifico; e medrosas para assumir as rédeas de suas próprias vidas para
evitar a doença e morte precoce.
Então não,
não, você não é um biohacker! Sua formação é nutricionista!!!
A grande
pergunta que fica seria:
BIOHACKING É UMA REVOLUÇÃO BIOTECNOLÓGICA
MARAVILHOSA OU UMA AMEAÇA À HUMANIDADE?
Provavelmente
retomarei este assunto, mas deixo algumas reflexões:
Manipular
microorganismos, incluindo bactérias, pode ser um caminho para curar doenças ou
um caminho para criar superbactérias resistentes que acabaram com a humanidade?
Manipular
o DNA das pessoas pode ser interessante para evitar doenças antes mesmo do
nascimento ou pode criar “criaturas” e novas doenças jamais vistas na
humanidade?
Os biohackers
estão interessados em curar doenças e prolongar a vida ou se tornarem
terroristas que trabalham de forma obscura para determinados governos?
Se o
objetivo é prolongar a vida e otimizar o corpo e a mente, então porque criar ratos verdes e brilhantes no escuro, novas raças de cães grandes e ferozes, animais com 2
cabeças e 3 pernas?
Os biohackers
querem aprimorar a raça humana ou criar a fantasia infantil de criar mutantes,
super-heróis da Marvel: Hulk, Capitão América, Visão, Thor, Doutor Estranho ou
Loki?
Quem garante,
seguindo nessa linha de pensamento criativo, que não seresmos hackeados
sem autorização? Neste sentido, como funcionaria a cibersegurança?
Se algo
der errado, poderemos reverter a “bocabertice” de um biohacker? Ou seja, é
possível criar livremente, inventar sorridente e hackear pessoas sem
medir as consequências para o presente e futuro?
Abraços e, caso queira compartihar, favor citar a fonte: Prof. Joelso Peralta - Blog: peraltanutri.blogspot.com