quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

ENEMA DE CAFÉ: UM PROCEDIMENTO BIZARRO E SEM COMPROVAÇÃO

 


SE TEM GENTE PARA COMPRAR, SEMPRE VAI TER GENTE PARA VENDER, MESMO QUE NÃO TENHA SERVENTIA ALGUMA

O episódio anedótico de uma famosa brasileira (e com certeza ela não foi a única) que fez uso de enema de café (ou seja, introdução de café por via retal) para tratar rosácea (doença de pele crônica no rosto) e alergia me deixou pensativo: se tem gente (pessoas leigas, mas também pessoas instruídas) para comprar tratamentos alternativos e bizarros, então sempre teremos gente (profissionais de saúde ou “experts” graduado em nada com coisa nenhuma) para vender tais bizarrices ineficazes.

Sendo assim, sobre o enema de café, vamos ao PRIMEIRO FATO:

A ciência nunca esteve interessada em seu ânus e nenhum pesquisador ou cientista gosta de meter a mão na M* durante seus estudos. É muito mais confortável, digamos assim, realizar experimentos com células (in vitro) ou com animais e humanos (in vivo) do que analisar excrementos, fezes, cocô. Não disse, contudo, que fazer pesquisa (in vitro ou in vivo) seja fácil (muito pelo contrário, não faça confusão), mas estou apenas dizendo que eu, você e muito pesquisador não quer estudar o ânus e cocô.

Ao mesmo tempo, o interesse pela microbiota/microbioma e sua relação saúde-doença, especialmente na área de nutrição, aumentou grandemente. Neste sentido, mesmo sem meter a mão na M*, os estudiosos querem entender melhor o funcionamento do intestino e sua relação com microorganismos. Afinal, pelo que dizem, seu intestino é seu “segundo cérebro” (em outro post podemos falar melhor do eixo intestino-cérebro). Neste sentido, durante as consultas (médicas ou nutricionais), já é comum observar profissionais de saúde questionando seus pacientes sobre a aparência das fezes: Duras ou moles? Parecem caroços ou salsichas? Aquosas ou líquidas? Enfim, aplicação da Escala (de fezes) de Bristol.

Quer dizer, agora estão interessados em nosso “orifício circular localizado região glútea”, responsável pela eliminação das fezes?

Talvez sim, talvez não. Porém, vamos ao SEGUNDO FATO:

Curandeiros e charlatões, bem como picaretas de plantão, vão aproveitar sua ignorância para faturar alto e, você, vai até enfiar 1 ou 2 litros de café no c* sem nem perceber tamanha imbecilidade.

Peraí, professor, imbecilidade? E as alegações para a terapia de enema de café?

Que bom que perguntou, pois vamos justamente aborda-las aqui,

Muita gente gosta de café. Alguns são até “viciados” em café. Outros acham “elegante” tomar um cafezinho. Outros vão entupir o c* de café (no sentido fictício agora), como diria minha vovozinha, e vão ter insônia. Porém, em pleno 2021, alguns vão trocar o consumo de café por via oral para seu consumo via anal. Isso me deixa perplexo, mas vamos discutir a temática.

Para os defensores (sim, defensores em sites, blogs e redes sociais, acreditem) dessa prática “indefensável”, o enema de café é milenar. Quer dizer, o procedimento é praticado na Índia há mais de 200 anos. Curioso, pois “dizem” (dizem porque nunca estive na Índia) que as receitas indianas são maravilhosas, onde o café da manhã típico contém pão de batata (Aloo Paratha) e pão frito com batata refogada (Bedmi Puri e Aloo Sabzi). Outros pratos, consumidos durante o dia, incluem o salgado de cebola (Pyaaz ki kachori), o pão frito com lentilha (Luchi-cholar Dal), o pão com beringela defumada (Sattu ka Paratha), os flocos de arroz com doce frito (Poha-Jalebi), os flocos de arroz com cebola (Kanda Poha), o bolinho salgado (Dhokla), o crepe fino de farinha de arroz (Neer Dosa) e a panqueca de farinha de arroz com curry de leite de coco vegetariano (Appam com vegetais ao curry de leite de coco). Porém, jamais ouvi falar que o café da manhã e outras refeições (por via oral) tinham sido substituídas por café introduzido via retal (por via anal).  

Os defensores também afirmam que Hipócrates, o “Pai da Medicina”, prescrevia enemas para inúmeras situações de saúde. Olhem, cadê as provas deste argumento? Existem muitas “coisas” atribuídas à Hipócrates, mas que não são exatamente do Pai da Medicina. Hipócrates usava, realmente, instrumentos via retal para detectar doenças e estabelecer alguns diagnósticos médicos, mas qual prova que introduzia 1 ou 2 litros de café no ânus das pessoas para curar o câncer, rosácea ou alergias?

Enfim, o pensamento de algumas pessoas é bastante limitado, ou seja, se é milenar e prescrito por autoridade, então só pode ser bom. Todavia, lamento informar, mas É-Ó-B-V-I-O-Q-U-E-N-Ã-O. Não estou dizendo que Hipócrates errou, só estou pedindo provas do uso de enema de café para curar câncer, rosácea e alergia, realizado por Hipócrates. Além disso, lamento dizer, mas os grandes gênios também erram. Charles Darwin, Albert Einstein e Linus Pauling, que são geniais, também erraram. Quer dizer, errar é humano (mas, talvez, persistir no erro é burrice). Somos seres pensantes, por favor, queremos estudos, queremos documentos, queremos provas científicas. “Palavras ao vento”, digamos assim, se perdem aos quatro cantos e não possuem validade.

Alguns defensores do enema de café insistem: o procedimento foi usado durante a Primeira Guerra Mundial para melhorar a saúde dos soldados. GENTEEE querida, por favor, se o indivíduo está no meio de uma guerra, passando fome, sem dormir direito, ele vai preferir enfiar café na boca ou no c*? E, mesmo que assim fosse feito, o objetivo seria curar o câncer, rosácea ou alergia? Vamos pensar antes de abrir da boca, please.

Já que os argumentos acima são fracos e anedóticos, sem nenhuma comprovação de eficácia, os defensores rebatem: o enema de café é baseado na Terapia de Gerson. Já ouviu falar disso? Não, então continue lendo.

O médico alemão Dr. Max Gerson (1881-1959) pode ter dado origem a terapia com enema de café para o tratamento do câncer, o que foi descrito em seu livro (que não é artigo científico aos desavisados): “A Cancer Therapy: Results of 50 Cases”. O livro foi publicado em 1958 e traz o relato de casos de 50 casos. Nem precisaria falar isso, mas vamos lá: existe uma coisa chamada Nível de Evidência Científica, que pode ser representada em uma Pirâmide de Evidência. Neste caso, as evidências mais poderosas (alto nível de evidência) são ditas nível A (1A = revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados ou RCT; e 1B = ensaio clínico controlado e randomizado com intervalo de com confiança estreito), enquanto que aquelas de baixíssima evidência são de nível C (relato de caso, incluindo coorte ou caso-controle) e D (opinião desprovida de avaliação crítica). Alguns estudiosos, pesquisadores e cientistas afirmam, inclusive, não existir evidência em relato de caso ou opinião de especialista, justamente porque precisamos mensuras tais “evidências”. Se você estudar um pouquinho de epidemiologia e bioestatística, vai entender melhor o que estou falando. Ao mesmo tempo, é óbvio, também, que relato de casos e opinião de especialista pode ser provida de “conflito de interesse”, os quais deveriam (mas nem sempre o fazem) declarados no estudo. Sabendo disso, continuamos a discussão sobre a Terapia de Gerson.

Os resultados da Terapia de Gerson jamais foram publicados em uma revista científica séria, devidamente revisada por pares. Aliás, “o pessoal” (pesquisadores e cientistas) da época não levaram “muita fé” nas ideias e falácias do Dr. Gerson, que até perdeu seu título médico durante um determinado período de tempo. Dr. Gerson alegou que ninguém quis publicar seus dados (por que será, mano?). Dr. Gerson acabou falecendo 1959 de pneumonia. Após sua morte, sua filha, Charlotte Gerson (1922-2019), continuou promovendo a terapia com a fundação do Instituto Gerson. Quer dizer, mesmo sem comprovação científica documentada, milhares de pessoas poderiam conhecer a medicina alternativa com enema de café (e outros tratamentos alternativos) promovido pela Instituição. É impressionante, não é mesmo? Peraí, pois não acabou.

A Terapia de Gerson e o Instituto Gerson tomaram xeque-mate quando o Instituto Nacional do Câncer (INCA) revisou o livro do Dr. Gerson e concluiu não existir qualquer evidência para as alegações apresentadas. Charlotte Gerson diz ter levado os prontuários médicos dos curados de câncer pela Terapia de Gerson, mas a indústria farmacêutica não estaria interessada nos resultados de cura. HUMMM, teoria da conspiração? Perseguição? É normal observar esse tipo de comportamento, favorável as teorias conspiracionistas, quando suas ideias não são aceitas, não é mesmo? Todavia, como vamos aceitar estratégias mirabolantes, invencionices e maluquices sem qualquer comprovação científica e dados que possam ser reproduzidos? A ciência também não se fez com pequeníssima amostra, baseada em opinião de especialista, portanto, só nos resta continuar o debate, enquanto vou tomar um café por via oral (rs).

De qualquer forma, a American Cancer Society (ACS) e Cancer Research UK também afirmaram não existir evidência científica sobre a terapia Gerson no tratamento do câncer. Para maiores detalhes, vejam a publicação da American Cancer Society (ACS) sobre a Terapia de Gerson: “Unproven methods of cancer management. Gerson method of treatment for cancer. CA Cancer J Clin 23 (5): 314-7, 1973” (ou seja, posicionamento sobre os métodos não comprovados de gerenciamento do câncer pelo Dr. Gerson). AHHH, não acabou.

Segundo Dr. PhD. Edzard Ernst (que dispensa apresentações): “A Terapia Gerson: possivelmente o pior de charlatão de todos”. Aconselho, portanto, acompanhar o Dr. Edzard Ernst e ler, pelo menos, um dos seus inúmeros estudos publicados: “Edzard Ernst. Colonic irrigation and the theory of autointoxication: a triumph of ignorance over science. J Clin Gastroenterol 24 (4): 196-8, 1997”. Quer dizer, segundo Dr. Ernst: “Existe um triunfo da ignorância sobre a ciência”.

Neste momento crucial da leitura, você deveria se perguntar:

Como defender um procedimento sem estudos pré-clínicos?

Como defender um procedimento sem ensaios clínicos randomizados?

Como defender um procedimento baseado em relato de caso não publicado?

Como defender um procedimento condenado pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), American Cancer Society (ACS) e Cancer Research UK?

Como defender um procedimento criticado por Dr. PhD. Edzard Ernst, que passou a vida estudando a medicina alternativa à luz da ciência, ou seja, colocando a medicina baseada em evidências em nossa cabeças?

Como defender um procedimento que diz curar o câncer (sem comprovação) se existem inúmeros e diferentes tipos de câncer, inclusive em diferentes locais do corpo?

Como você caiu nessa de enema de café em pleno ano de 2021, onde vivemos a pandemia de Covid-19? Não tem coisa melhor para se preocupar?

KEEP CALM (mantenha a calma), pois agora chegamos no TERCEIRO FATO:

Se tem alguém para comprar, sempre teremos alguém para vender, mesmo sem serventia alguma do procedimento vendido. Mas, professor, qual mecanismo é alegado para o uso de café no ânus? Creio que faltou discutir isso, não é? Claro, faltou sim. Vamos lá, mas pega um “cafezinho” para ficar “ligado”, porém por via oral, please.

Buenas, agora começa o “ENROLATION” por parte dos defensores do enema de café, onde alguns simplesmente exercem a estratégia do “copia e cola” (CRTL C e CTRL V) dos colegas. Em outras palavras, existe um personagem da comédia brasileira que pode ilustrar muito bem minha explicação: o senhor Rolando Lero, conhecem? Rolando Lero é um dos personagens brasileiros da famosa “Escolinha do Professor Raimundo”, criada pelo humorista Chico Anysio (1931-2012). O personagem Rolando Lero é interpretado pelo humorista Rogério Cardoso Furtado (1937-2003) na série original; e por Marcelo França Adnet na versão de 2015. Enfim, Rolando Lero "ENROLAVA", mas nunca respondia às perguntas (rsrs). Da mesma forma, os defensores do enema de café “ENROLAM”, mas não explicam nada e não provam coisa nenhuma.

Retomando a pergunta: qual mecanismo de ação para usar café no ânus? Segundo defensores do tipo “Rolando Lero”, o enema de café teria um efeito “detox” no organismo. Ou seja, seria capaz de detoxificar ou desintoxicar o organismo, eliminando determinadas substâncias tóxicas. E quais substâncias tóxicas estão se referindo? Óbvio que os defensores do enema de café não explicam (ou não sabem), mas tudo bem, vamos continuar. Essas substâncias tóxicas seriam, posteriormente, eliminadas nas fezes ou urina. Segundo eles, essas substâncias precisam ser eliminadas, por podem causar males, inclusive o câncer. Ao mesmo tempo, alegam que a cafeína possui antioxidantes, que podem “varrer” radicais livres. E, por fim, alegam que o café possui palmitatos, os quais estimulariam o fígado para produzir GST (glutationa-S-transferase). Essa enzima seria responsável pela remoção de radicais livres, promover detoxificação hepática e ação anticâncer. Impressionante, não é mesmo? Porém, vamos aos fatos.

Primeiro, me respondam, por favor: o café foi ingerido (via oral) ou introduzido via anal? Se for via oral (cavidade bucal), então seus componentes (antioxidantes e palmitatos) poderiam chegar ao fígado, onde podem ser metabolizados. Neste caso, poderíamos esperar algum efeito, que pode ser positivo ou negativo. Todavia, se o café foi inserido no ânus (via retal), como foi parar no fígado? AINNN, mas você pode alegar que teve absorção intestinal, não é? Porém, como foi facilmente absorvido se o mesmo foi inserido no intestino grosso e não intestino delgado? Não seria o intestino delgado o local de maior capacidade absortiva para a grande maioria dos nutrientes e outras substâncias? Bah, estou sendo chato? Tudo bem, continuamos.

Segundo, vamos assumir que o café introduzido no ânus faça as pessoas “correrem” ao vaso sanitário (e realmente ocorre após 15 minutos de procedimento ou, até mesmo, em menor tempo). Então, seria essa “diarreia de café” capaz de limpar (lavagem local) e eliminar as substâncias tóxicas potencialmente danosas ao organismo? Se sim, quais são as substâncias tóxicas e porque seriam danosas? Ainda, como se comportaria o balanço de bactérias colônicas no intestino grosso após essa enxurrada de café? Você sabia que existem bactérias “boas” e “ruins”, onde o desbalanço ou desequilíbrio destas é um problema?

Terceiro, como o café introduzido no ânus, via intestino grosso, ganhou o sangue e chegou no fígado, por favor? Além disso, como isso poderia aumentar a enzima glutationa-S-transferase (GST) no fígado?

CARACAS, são muitas informações desconexas e anedóticas, sem qualquer sentido fisiológico ou bioquímico. Como sou amigo de vocês, vamos rapidamente esclarecer alguns pontos.

Primeiro, a absorção no intestino delgado é facilitada pela presença de microvilosidades (borda em escova), o que não ocorre no intestino grosso (cólon). Neste sentido, o intestino grosso se limita em absorver água e íons.

Segundo, o sistema excretor humano (via excreção urinária e fecal) é capaz de eliminar algumas substâncias tóxicas endógenas, incluindo amônia, ácido úrico, creatinina e uréia. Estes são eliminados via excreção renal, enquanto que alguns resíduos e bactérias são eliminados via excreção fecal. Algumas substâncias exógenas, digamos “restos de medicamentos”, podem ser eliminadas via renal e/ou fecal.  

Terceiro, GST (glutationa-S-transferase) faz parte do Sistema de Metabolização de Xenobióticos de Fase II no tecido hepático, que catalisa a conjugação de glutationa (GSH) a uma variedade de substratos hidrofóbicos e eletrofílicos (que geralmente seriam citotóxicos), que podem ser eliminados. Afinal, formam-se conjugados solúveis em água, reduzindo qualquer toxicidade de uma determinada substância. Ao mesmo tempo, GST pode reduzir o peróxido de hidrogênio (H2O2) e peróxidos lipídicos, envolvidos em processo oxidativos prejudiciais ao organismo.

Quarto, a cafeína (via oral, não anal) possui rápida absorção intestinal (intestino delgado) e pico sanguíneo dentro de 15 ou 20 minutos (o que parece justificar seu uso no período que antecede o treinamento, por exemplo). É metabolizada no fígado em três metilxantinas: a paraxantina, a teofilina e a teobromina. Pode ser considerado um estimulante do sistema nervoso central (SNC), reduzindo a percepção da fadiga. Além disso, parece aumentar as concentrações do neurotransmissor dopamina (DA), o que estaria relacionado às sensações de prazer. Alega-se que cafeína estimula o processo lipolítico por inibição da enzima fosfodiestarase, responsável pela degradação da norepinefrina (NE), o que teria bastante lógica. Quer dizer, o efeito adrenérgico da epinefrina (adrenalina) e norepinefrina (noradrenalina) se dão pela formação de adenosina monofosfato cíclico (AMPc), que após uma cascata de reações dominadas por proteínas-quinases ativam a lipase hormônio sensível (LHS). A LHS é a enzima responsável pela degradação do triglicerídeo (TG) em ácidos graxos, os quais são completamente oxidados na mitocôndria para a geração de energia. Estes processos são conhecidos bioquimicamente como lipólise (degradação do TG) e beta-oxidação dos ácidos graxos (geração de energia a partir de gordura). O efeito adrenérgico é normalmente interrompido pela degradação do AMPc em 5’-AMP pela fosfodiesterase. Assim, a inibição da fosfodiestarase pela cafeína levaria à promoção do emagrecimento (lipólise), justamente porque o AMPc e a norepinefrina (NE) não são degradados. Lembro, também, que a cafeína tem meia-vida de 2 até 4 horas e, sendo assim, deve-se evitar a associação de suplementos contendo cafeína com cafezinho. Exemplos: 150 ml de café expresso tem 125-165 mg de cafeína; bebidas energéticas pode conter até 80 mg de cafeína; refrigerantes tipo Coca-Cola tem 19 mg de cafeína e refrigerante tipo Coca-Cola light tem 26 mg de cafeína. E, até mesmo o chocolate escuro, contém 20 mg de cafeína. Alguns suplementos esportivos têm 100, 200, 300 e até 400 mg de cafeína (cuidado). A recomendação de uso para cafeína é de 3 a 4 mg/kg de peso corporal/dia (Exemplo: Uma mulher de 55 kg só poderia ingerir 165 mg/dia de cafeína, ou seja, 55 kg x 3 mg = 165 mg). O excesso de cafeína (via oral, please), pode trazer efeitos colaterais: taquicardia, dilatação da pupila, aumento da pressão arterial, aumento da frequência cardíaca, arritmia, tremores, ansiedade, nervosismo, alucinação, insônia, aumento do volume urinário, secreção aumentada de ácido gástrico e pepsina e “vício da cafeína”.

Com base nisso, vamos de novo:

Como o café via anal chegou ao fígado?

Como o café via anal aumentou GST?

Como o café anal eliminou substâncias tóxicas e quais são elas?

Como provar tudo isso se não existem dados científicos devidamente publicados sem “Rolando Lero”?

Conclui-se, portanto, que você deve ter muito cuidado com as pessoas e redes sociais que anda de “conectando” ou vai acabar enfiando café em qualquer orifício não adaptado para tal finalidade.

Ao mesmo tempo, pensem comigo: depois de todos estes anos, desde a Terapia Gerson de 1950, como não temos nenhum estudo sério publicado sobre o assunto em 2021? Mesmo assim, você prefere enfiar café no ânus e, pior, pagar caro ($$$) por isso? Por que as pessoas, famosas ou não, gastam fortunas com tratamentos alternativos, bizarros e ineficazes? Por que as pessoas acreditam em curandeiros, charlatões e picaretas? E que tipo de profissional de saúde é você, que defende tais procedimentos estapafúrdios? Se você é profissional de saúde, por acaso, perdeu as aulas de bioquímica, fisiologia, imunologia, epidemiologia e bioestatística? Coitado do fígado e dos rins, que perderam seus papéis “detox" do organismo (rs), não é mesmo?  

Neste momento crítico, chegamos, finalmente, ao QUARTO FATO, que é o último:

Como reconhecer um profissional de saúde PICARETA (que é uma pessoa desonesta e de má índole) e um profissional de saúde CHARLATÃO (que é uma pessoa dita curandeiro e que lhe apresenta cápsulas mágicas e soluções milagrosas)? As informações abaixo são para reconhecimento de profissionais de saúde picaretas e charlatões, pois reconhecer falsos curandeiros leigos, como o famoso João de Deus (também chamado de João Curador ou João de Abadiânia ou John of God) é fácil. Ou melhor, não é tão fácil, pois muita gente acreditou no João de Abadiânia por anos e anos. Finalmente, o criminoso curandeiro e médium João de Deus foi pego com as “calças na mão”, por assim dizer, e encontra-se sob prisão (embora foi preso somente em dezembro de 2018, ou seja, tardiamente, pois aos 79 anos de idade vai cumprir o quê de prisão?). Mas, beleza, preste atenção neste checklist para não cair nas mãos de picaretas e charlatões:

1.    Todo PICARETA e CHARLATÃO que se preze, cobra bem caro por sua consulta ou consultoria, especialmente na primeira consulta, pois ele pode ser desmascarado em seguida (mas aí você já perdeu seu dinheiro);

2.    Todo PICARETA e CHARLATÃO odeia quando é desafiado ou questionado, pois não teria como responder suas dúvidas e, assim, sua cara de malvado ou de raiva assusta você (e traz uma segurança ou tranquilidade interna para esse pobre cidadão malfeitor);

3.    Todo PICARETA e CHARLATÃO tenta inventar uma “roda quadrada”, aquela que você nunca ouviu falar, mas ficou refletindo sobre essa possibilidade. Criam-se, assim, maluquices e invencionices, garantindo mais discípulos ou seguidores em redes sociais;

4.    Todo PICARETA e CHARLATÃO, quando desmascarado, não aceita seu erro e colocará a culpa em você (isso mesmo). Por vezes, colocam a culpa na indústria farmacêutica, no governo, na ciência que não escuta suas baboseiras. Neste sentido, você errou por não seguir o plano alimentar monótono e monocromático. Você errou por ter perdido um ou outro treino. Você errou por ter usado o medicamento de forma errada. Você errou porque não completou o tratamento de enfiar café no c*. Enfim, você errou, pois não cumpriu os ensinamentos deste “falso guru” ou “pseudo-sábio”;

5.    Todo PICARETA e CHARLATÃO que se preze, nos dias atuais, tem um excelente Site ou Blog. Tem milhares de seguidores no Face e Instagram. Se comunica diariamente no Twitter. Os mesmos exibem fama e fortuna, pois “pessoas que aparentam sucesso só podem ter dado certo na vida”. Exibem um largo sorriso no rosto, como se todos os problemas do mundo não afetassem esta nobre espécie humanóide. A regra é simples: “Fale mal, mas fale de mim”.

Em suma:

"Você pode enganar uma pessoa por muito tempo; algumas por algum tempo; mas não consegue enganar todas por todo o tempo".

Então:

Espero ter ajudado, pois tudo começa por VOCÊ e suas ESCOLHAS.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

DOENÇA DE ALZHEIMER

 


DOENÇA DE ALZHEIMER

 As doenças neurodegenerativas são caracterizadas por lesões e morte de neurônios, de forma progressiva e irreversível, incapacitando determinadas funções do sistema nervoso, que é acompanhada com prejuízos na vida de relação das pessoas. Entre as doenças neurodegenerativas, podemos citar: doença de Alzheimer (DALZ), doença de Parkinson (DPARK), Demência com Corpos de Lewy (DCL), Demência Frontotemporal (DFT), Esclerose Múltipla (EM), Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) e doença de Huntington (DH). Hoje, vamos nos deter a DALZ que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), afeta 35,6 milhões de pessoas em todo o mundo e estima-se que o número tende a dobrar até 2030. No Brasil, os números podem chegar a 1,2 milhões de pessoas.

Mas, afinal, o que é a doença de Alzheimer (DALZ)?

A DALZ foi descoberta, em 1906, pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer (Aloysius Alzheimer, 1864-1915) e trata-se de uma doença neurodegenerativa e progressiva do sistema nervoso central (SNC), onde observa-se a redução do volume cerebral e na quantidade de neurônios, bem como prejuízo nas sinapses entre as células nervosas. A DALZ é mais comum em pessoas acima dos 65 anos de idade e, embora não tenha cura, existem vários tratamentos capazes de alterar o curso da doença, como veremos mais adiante.   

Quais são os sintomas da DALZ?

Antes de falarmos dos principais sinais e sintomas da doença, vejamos alguns famosos que tiveram Alzheimer: ator Gene Wilder (1933-2016), que interpretou Willie Wonka da "A Fantástica Fábrica de Chocolate" de 1971; o ator Charles Bronson (1921-2003), que fez sucesso como "durões" em filmes de faroeste; e o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan (1911-2004), tendo sido o 40º presidente dos EUA (1981-1989).

Na DALZ ocorre deterioração das funções cerebrais e o paciente evolui para demência, ou seja, deterioração das capacidades intelectuais, que incluem a perda de memória e desorientação, a dificuldade de linguagem (falada e escrita), as alterações de comportamento e a incapacidade de cuidar de si próprio. A perda de memória acaba sendo uma característica bastante triste, pois o paciente com DALZ acaba esquecendo de fatos recentes (Onde está a chave do carro? Onde deixei o lápis que estava aqui? Será que já tomei café da manhã?), enquanto que no avançar da doença, não lembra mais quem são seus filhos, parentes e amigos. Por vezes, o paciente com DALZ não consegue completar uma frase inteira ou apresenta frases sem quaisquer conexões.

O que causa a DALZ?

Como causa, destacam-se a predisposição genética, incluindo mutações nos genes da proteína percursora amiloide (APP) e na presenilina 1 e 2 (PSEN1/2); e o acúmulo de placas extracelulares “pegajosas”, ou seja, presença do peptídeo beta-amilóide (Aβ). Todavia, nas bases moleculares da doença também existem outras hipóteses: disfunção colinérgica (envolvendo a acetilcolina) e glutaminérgica (referente ao glutamato), bem como presença de emaranhados intracelulares ou agregados fibrilas intracelulares, originários da proteína Tau hiperfosforilada. Alguns trabalhos, inclusive, sugerem que o acúmulo de beta-amilóide (Aβ) seria um ativador da hiperfosforilação da proteína Tau.

Em resumo, os fragmentos proteicos tóxicos ocupam os neurônios e espaços entre eles, causando perda das funções neuronais no hipocampo e córtex cerebral. Alguns estudiosos sugerem que a deposição Aβ ocorre no início da DALZ, enquanto que os agregados da Tau ocorrem no decorre e final da doença. De qualquer forma, parece existir forte relação entre estas alterações, que resultam nas lesões cerebrais na doença.

Qual relação existe entre o sistema imunológico e DALZ?

Este é um questionamento interessante, pois o sistema imunológico (SI) nas doenças neurodegenerativas, incluindo a DALZ, sempre foi deixada em segundo plano ou considerada como secundária à doença. Uma grande parcela dos estudos explorava o acúmulo do peptídeo b-amilóide (Ab) e da proteína Tau, bem como os sintomas e possíveis tratamentos na DALZ. Porém, especialmente a partir dos anos 2000, começaram a “explodir” diversos estudos destacando o sistema imune (SI) como o “ator central” no início e na progressão das doenças neurodegenerativas e DALZ. Aliás, em uma busca simples no PubMed, usando como descritores "Alzheimer disease and immune system" (doença de Alzheimer e sistema imunológico) aparecem 4.430 estudos. Se usarmos um filtro de 10 anos (2011-2021) no PubMed, aparecem 2.663 estudos. De fato, as doenças neurodegenerativas envolvem uma complexidade de interações imunológicas, genéticas e de danos neurais, que resultam em fenótipos cognitivos debilitantes. Atualmente podemos encontrar inúmeros estudos sobre microbiota intestinal e DALZ, que são achados fantásticos, embora de bastante complexos e, portanto, deixaremos este assunto para outro post.

E, falando em sistema imune (SI) e DALZ, vamos dar uma atenção especial a micróglia. As micróglias são células imunológicas cerebrais, cujo principal função é inspecionar o microambiente local e responder a lesões pela liberação de moléculas pró-inflamatórias (citocinas) e fagocitar patógenos e células mortas (células apoptóticas). Em condições fisiológicas, as micróglias mantêm a homeostase local. Porém, na doença, as micróglias mudam sua morfologia e estão envolvidos na resposta inflamatória persistente (neuroinflamação) e lesões degenerativas (neurodegeneração).

Como assim, professor?

Perfeito, acho que precisamos “mastigar” um pouco mais essa temática para não deixar nenhum “grão” no prato, por assim dizer. Sendo assim, vamos lá.

A micróglia em repouso (M0), em sua forma com ramificações, possui receptores do tipo toll-like (TLRs), que é um exemplo de receptores de reconhecimento de padrão (PRRs, pattern recognition receptors). Ou seja, os TLRs nas micróglias reconhecem padrões moleculares associados a patógenos (PAMPS, pathogen-associated molecular pattern) e padrões moleculares associados a danos (DAMPS, damage-associated molecular pattern). Por vezes, a sigla PAMPS pode ser substituída por padrões moleculares de reconhecimento de microorganismos (MAMPS), dependendo da fonte consultada. Os PAMPS (ou MAMPS) podem ser vírus (contendo DNA ou RNA), bactérias (contendo lipopolissacarídeos ou LPS, que são endotoxinas das bactérias gram-negativas, como Escherichia coli; e glicolipídeos, glicoproteínas e peptidoglicanos das bactérias gram-positivas, como Staphylococcus aureus) e fungos (contém zimosan, como Candida albicans). Já os DAMPS são substâncias endógenas produzidas ou liberadas por células danificadas ou mortas (células apoptóticas).

Pois bem, após o reconhecimento de PAMPS/DAMPS, as micróglias (M0) sofrem alterações fenotípicas para micróglias do tipo M1 (que são pró-inflamatórias e citotóxicas) ou tipo M2 (que são anti-inflamatórias e neuroprotetoras), ambas com forma ameboide (e não mais ramificada). A micróglia (M1), cronicamente ativada, libera citocinas pró-inflamatórias e espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species). Entre as citocinas liberadas pela micróglia do tipo M1 podemos citar: interleucina-1b (IL-1b), interleucina-6 (IL-6), interleucina-18 (IL-18) e fator de necrose tumoral-a (TNFa). Já entre as ROS, podemos citar: radical superóxido (O2-·), peróxido de hidrogênio (H2O2) e radical livre hidroxil (OH·). A micróglia M2, por sua vez, libera interleucina-10 (IL-10), que é um inibidor da micróglia M1, o que justifica seu papel anti-inflamatório e neuroprotetor.

Quer dizer, os patógenos que porventura consigam invadir o sistema nervoso central (SNC) são atacados por micróglias (M1) e astrócitos (outro tipo de célula no SNC) ativados, que exercem funções neuroprotetoras e reparadoras neste microambiente. Além disso, os linfócitos T (células imunes periféricas) também podem ser recrutadas para atuar contra os patógenos.

Beleza, mas se micróglias, astrócitos e até linfócitos T atacam patógenos e protegem nosso cérebro, como justificar as doenças neurodegenerativas e a neuroinflamação?

Pois bem, vamos as problemáticas. Os depósitos de b-amilóide (Aβ), mencionados anteriormente, ativam as micróglias. As micróglias, então, fagocitam peptídeos Aβ e liberam substâncias tóxicas associadas a morte neuronal. Além disso, a micróglia também possui receptor de ligação b do tipo 1 e 2 (TGFBR1/2) para o fator de crescimento transformante-β (TGFβ), que é uma citocina neuroprotetora. Quer dizer, TGFβ regula a neurogênese, gliogênese, mielinização e sinapse, bem como reduz a placa amilóide e evita a morte neuronal. Todavia, em algumas doenças neurodegenerativas, como a DALZ, os receptores de TGFβ (chamados de TGFBR1/2), encontrados na superfície celular de neurônios e micróglia, não reconhecem TGFβ e, dessa forma, perde-se o efeito neuroprotetor desta citocina.

Uau, não é mesmo? Porém, ainda não acabou.

As micróglias também possuem um receptor chamado receptor transmembrânico expresso em células mieloides 2 (TREM2). A inibição ou mutação de TREM2 diminui o número de micróglias, aumenta a quantidade de proteína Tau e parece estar envolvida no envelhecimento. Ao mesmo tempo, dependendo o ligante, a ativação do TREM2 resulta em ativação exacerbada do fator nuclear kappa B (NFkB), que responde com sinalização inflamatória persistente. A expressão da enzima indoleamina-2,3-deoxigenase (IDO) também é observada na micróglia. Quer dizer, esta enzima (IDO) está envolvida no catabolismo do aminoácido triptofano (TRP) para formar quinurerina. A quinurenina é um metabólito do aminoácido TRP usado na produção de niacina (vitamina B3). Em mamíferos, apenas 5% do TRP é catabolizado através da via da serotonina (5-hidroxitriptamina ou 5-HT), pois a grande maioria do TRP é metabolizada na via da quinurerina. Pois bem, os metabólitos do TRP induzem a apoptose em células vizinhas (formam-se células apoptóticas). Essa pode ser considerada uma barreira imunológica que protege o SNC, desde que não exagerada (afinal, não queremos “morte” exagerada de células nervosas). No exercício e no esporte, como sabemos, o excesso de quinurenina e ácido quinurínico no cérebro de roedores estão implicados com a fadiga central (já fiz um debate sobre os BCAAs – aminoácidos de cadeia ramificada –, triptofano, quinureninas e fadiga central neste Blog).

E os astrócitos, professor?

Buenas, podemos falar rapidamente sobre eles.

Os astrócitos são células do tipo neuroglia (neuróglia, células da glia ou, simplesmente, glia), que são células do sistema nervoso central (SNC) que proporcionam suporte e nutrição aos neurônios. Os astrócitos são os tipos celulares mais abundantes no SNC (50% do número total de células do SNC). Pois bem, os astrócitos expressam receptores que são membros do fator de necrose tumoral (TNF), envolvidos na regulação da morte celular. Quer dizer, astrócitos expressam o ligante FasL, que interagem com Fas (também chamado de CD95 ou Apo-1 ou TNFRSF6) em linfócitos T autoativos, resultando em apoptose dos linfócitos que poderiam ser potencialmente danosos ao SNC. Em outras palavras, a morte mediada pela interação Fas-FasL garante a homeostase imunológica, “eliminando” uma resposta exacerbada dos linfócitos no SNC. Outros autores dizem que os astrócitos desempenham um papel de barreira sangue-cérebro (evitando a entrada de moléculas grandes, como os anticorpos e o sistema do complemento) e, consequentemente, modulando a resposta imune inflamatória. As células da glia também liberam o fator neurotrófico derivado do cérebro (BNDF), envolvido na neuroplasticidade. Astrócitos também liberam o fator de crescimento transformante-β (TGFβ), que é uma citocina neuroprotetora, como já discutido. Por fim, em condições normais o SNC é anti-inflamatório (protegido por IL-10 e TGFb, por exemplo) e as citocinas pró-inflamatórias estão presentes em condições basais. Porém, durante um estado inflamatório exacerbado, como na doença, um excesso de citocinas e ROS prejudicam o SNC, o que também compromete o funcionamento dos astrócitos. Aliás, a função dos astrócitos também está comprometida no envelhecimento, o que poderia justificar o avanço das doenças neurodegenerativas com a idade avançada.

Qual tratamento da DALZ?

O tratamento na DALZ é baseado na intervenção farmacológica e não farmacológica. Na farmacológica, destaca-se os inibidores da acetilcolinesterase (AChE), os antagonistas de receptores de N-metil-D-aspartato (NMDA), os agentes quelantes de metais e a terapia de suporte (ou seja, uso de fármacos específicos para tratar outros distúrbios neuropsiquiátricos, como a depressão, mas usados também no Alzheimer). Não pretendo apresentar e discutir aqui os diferentes tipos de medicamentos na terapêutica da DALZ, onde podem encontrar maiores detalhes nas referências bibliográficas após o texto.

Quanto aos recursos não farmacológicos podemos citar a terapia com música (musicoterapia) e com animais (pet terapia) e a fonoaudiologia (essencial para preservar a comunicação, fala, leitura, mastigação e deglutição). Na realidade, a terapia comportamental e ocupacional é muito abrangente e útil no Alzheimer.

E a Nutrição, professor e nutricionista, não é uma estratégia viável de tratamento na DALZ?

Sim, com certeza. A nutrição é um campo fértil de estudo na DALZ. Existem estudos sobre a vitamina E e C, quercetina, coenzima Q10, ácido lipóico, resveratrol, curcuma/curcumina, beta-glucana, lactoferrina, probióticos e ácido docosahexaenoico (DHA, que é um ácido graxo ômega-3). Quanto ao DHA, por exemplo, parece que ameniza o Alzheimer por inibição da apoproteína E4 (ApoE4), que é um fator de risco para DALZ. Novamente, para maiores detalhes seguem as referências ao final do texto.

E as novidades na terapêutica da DALZ?

Sim, também existem novidades. Recentemente foi divulgada uma vacina contra a DALZ, sendo a primeira vacina para testes clínicos em humanos (leia: https://canaltech.com.br/saude/por-que-o-brasil-e-o-unico-a-adotar-a-terceira-dose-da-vacina-da-janssen-202258/). A vacina chamada ALZ-101, da empresa sueca Alzinova, faz parte de um estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, com 26 voluntários diagnosticados no estágio inicial da doença. Essa vacina carregaria anticorpos sintéticos, que miram uma proteína tóxica chamada beta-amilóide (Ab), que se acumula nos neurônios e ao seu redor. Algum tempo atrás também tinha sido anunciado uma nova vacina nasal para prevenir e retardar a progressão da DALZ (leia: https://www.brighamandwomens.org/about-bwh/newsroom/press-releases-detail?id=4029). Neste caso, o Brigham and Women’s Hospital, em Massachusetts, nos EUA, haviam anunciado uma vacina nasal. A vacina nasal usaria um modulador imunológico chamado protolina, derivado de bactérias, capaz de ativas leucócitos em linfonodos nas regiões do pescoço, que migrariam até regiões cerebrais para degradar a beta-amilóide (Ab).

Referências:

Alzheimer’s disease – The Lancet. Disponível em: https://www.thelancet.com/clinical/diseases/alzheimers-disease#:~:text=Alzheimer%27s%20disease%2C%20the%20most%20prevalent%20cause%20of%20dementia%2C,causality%20as%20proposed%20in%20the%20original%20amyloid%20hypothesis.

Anna De Falco et al. Doença de Alzheimer: hipóteses etiológicas e perspectivas de tratamento. Quím Nova 39(1): 63-80, 2016.

Can you recognize the warning signs of Alzheimer’s disease? – Harvard Health Publishing. Disponível em: https://www.health.harvard.edu/mind-and-mood/can-you-recognize-the-warning-signs-of-alzheimers-disease#:~:text=Wandering%2C%20becoming%20agitated%2C%20hiding%20things%2C%20wearing%20too%20few,if%20a%20person%20hasn%27t%20behaved%20that%20way%20earlier.

Cody M. Wolfe et al. The Role of APOE and TREM2 in Alzheimer’s Disease - Current Understanding and Perspectives. International Journal of Molecular Sciences.

Instituto Alzheimer Brasil (www.institutoalzheimerbrasil.org.br). Disponível em:  https://www.institutoalzheimerbrasil.org.br/epidemiologia/?pag=epidemiologia/

 Luca Muzio et al. Microglia in neuroinflammation and neurodegeneration: from understanding to therapy. Frontiers in Neuroscience 15:742065, 2021.

Rhonda P. Patrick. Role of phosphatidylcholine-DHA in preventing APOE4-associated Alzheimer's disease. FASEB J 33(2):1554-1564, 2019.

Stages of Alzheimer’s – Alzheimer’s Association. Disponível em: https://www.alz.org/alzheimers-dementia/stages#:~:text=Alzheimer%E2%80%99s%20disease%20typically%20progresses%20slowly%20in%20three%20general,%E2%80%94%20or%20progress%20through%20the%20stages%20%E2%80%94%20differently.

Timothy R. Hammond et al. Immune Signaling in Neurodegeneration. Immunity 50: 955-974, 2019.

Vacina do Alzheimer. Disponível em: https://canaltech.com.br/saude/por-que-o-brasil-e-o-unico-a-adotar-a-terceira-dose-da-vacina-da-janssen-202258/

Vacina nasal no Alzheimer. Disponível em: https://www.brighamandwomens.org/about-bwh/newsroom/press-releases-detail?id=4029

What Are the Signs of Alzheimer’s Disease? – National Institutes of Health (NIH). Disponível em: https://www.nia.nih.gov/health/what-alzheimers-disease#:~:text=Memory%20problems%20are%20typically%20one%20of%20the%20first,signal%20the%20very%20early%20stages%20of%20Alzheimer%E2%80%99s%20disease.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

CRONOBIOLOGIA E COVID-19

 

CRONOBIOLOGIA E COVID-19

Você já observou que, durante a pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), as pessoas perderam seus horários? Quer dizer, algumas dormem tarde e acordam tarde, enquanto outras dormem no horário “normal”, mas ficam “ligadas” na tela do celular ou TV, não é verdade? Você já pensou que essa luminosidade toda poderia dessincronizar nosso “relógio biológico” em virtude da interrupção da regularidade do sono? E, ainda, tem aquelas que estudam e trabalham Home Office nos mais diferentes horários (afinal, estamos em casa), mas esse cenário remoto não estaria acabando com nossos horários de refeição, de lazer, de esporte? Se sim, nosso “relógio biológico” estaria sendo perturbado, dessincronizado, desregulado? Uma dessincronização ou desregulação do “relógio biológico” poderia favorecer o surgimento de doenças no contexto da pandemia de COVID-19?

Estes dias assisti a excelente palestra da Dra. Luísa Klaus Pilz (Currículo lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/0712780414623832), sobre cronobiologia, no Seminário Científico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas: Farmacologia e Terapêutica (PPGFT), onde faço meu doutorado (que não é sobre este assunto, mas tem muita relação com as conexões cerebrais, por assim dizer). A Dra. Luísa é graduada em Biomedicina pela Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); Mestre em Ciências Biológicas: Bioquímica pela UFRGS; Doutora (doutorado sanduíche) em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS e pelo Instituto de Psicologia Médica da Ludwig Maximilian Universität (LMU, Alemanha); e Pós-doutora UFRGS/LMU-Alemanha. Ou seja, Dra. Luísa entende muito do assunto. Essa palestra despertou um antigo interesse que já tinha sobre a cronobiologia. Então, refiz minhas leituras e pesquisas sobre o assunto e deixo, aqui, algumas considerações. 

MAS, AFINAL, O QUE É CRONOBIOLOGIA?

A cronobiologia é a ciência que estuda as características temporais da matéria viva em todos os níveis de organização, o que inclui o estudo dos ritmos biológicos. Os ritmos biológicos são os fenômenos que se repetem de tempos em tempos e, portanto, de forma cíclica. Podemos dizer, também, que a cronobiologia é um ramo da biologia que estuda os ritmos fisiológicos naturais dos organismos e, neste caso, nós (pessoas) também podemos ser estudados pelos cronobiologistas. Obviamente, o ritmo circadiano, que tem relação com nosso sono (ou falta dele), é um dos assuntos mais estudados na cronobiologia.

O QUE É RITMO CIRCADIANO?

Como o nome o próprio nome diz, os ritmos circadianos referem-se aos ritmos que se repetem em cada 24 horas (onde no latim temos ‘circa’ e ‘diem’, portanto, próximo ou cerca de um dia). Neste sentido, podemos estudar o ritmo de plantas, animais e, até mesmo, micróbios. Contudo, quando falamos em ritmo circadiano tenho certeza que, imediatamente, você pensa no sono e na melatonina, onde tem toda a razão de pensar assim (como veremos).

O ciclo de sono-vigília ou “acordar e dormir” é um exemplo clássico. Entretanto, existem outros ritmos nos seres humanos que podem ser estudados: temperatura corporal, secreção hormonal e funcionamento dos órgãos em um período de 24 horas. Aliás, não é exatamente 24 horas, pois pode ser um pouco menos para alguns e um pouco mais para outros (oscilação de 20 até 28 horas), o que também depende da espécie estudada. O ritmo circadiano parece ser algo evolutivo para garantir a sobrevivência da espécie, embora existam muitas teorias (proteção do DNA, inativação de espécies reativas do oxigênio, vantagem seletiva, influência cósmica, etc.) para tentar explicar algo um tanto inexplicável ou não totalmente compreendido, por assim dizer.

Apenas a título de curiosidade, por vezes, também se observam os termos ritmos infradianos e ultradianos. Você já ouviu falar disso?

Pois bem, os infradianos são ritmos que ultrapassam o circadiano ou “além de um dia” (portanto, acima de 24h ou, melhor, acima de 28h, segundo a literatura). Exemplo: o ciclo menstrual (ciclo sexual mensal) se repete a cada 28 dias, passando pelas fases de menstruação, folicular, ovulatória e lútea. Com base nisso, podem ser esperadas flutuações dentro deste ciclo menstrual (nível de energia, alterações de humor ou irritabilidade, alteração do sistema imune e alterações no padrão do sono) entre as mulheres. A hibernação que alguns animais realizam também é um exemplo de ritmo infradiano, que extrapolam o ciclo circadiano. Na hibernação, alguns animais ficam letárgicos, sonolentos e inativos por um determinado período. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência que alguns animais utilizam para vencer as condições ambientais desfavoráveis (inverno rigoroso com pequena quantidade de alimentos disponíveis). O urso polar é, provavelmente, a espécie mais conhecida por hibernar, mas também hibernam esquilos, morcegos, lagartos, ratos-silvestres, hamsters e ouriços. Ops, lembrei agora, a mudança nas árvores, que perdem e renovam suas folhas, durante as diferentes estações do ano (Primavera, Verão, Outono e Inverno), é um exemplo de ritmo infradiano. Os ritmos ultradianos, por sua vez, são aqueles que se repetem em um período menor que o circadiano (menos de 20h) ou que se repetem várias vezes em um dia. Exemplo: batimentos cardíacos, ondas cerebrais e secreções hormonais (cortisol, leptina, insulina, grelina, testosterona, entre outros).  

Ainda a título de curiosidade, alguns ciclos não se alteram pela inversão do ciclo claro-escuro (dia-noite), pois seria um caos para manter a sobrevivência da espécie. Por exemplo, a temperatura corporal em seres humanos se mantém relativamente constante (36,8ºC), exibindo, apenas, pequenas oscilações (0,5 a 0,6ºC). Ou seja, é um ciclo endógeno que independe das modificações do meio externo, como a supressão da luminosidade. Por outro lado, alguns ritmos necessitam de estímulos externo (ciclo exógeno), ou melhor, ocorre sincronização dos ritmos biológicos com os ciclos ambientais. Complicado? Peraí, vejam bem: na natureza alguns animais (aves e mamíferos) utilizam os sinais de luminosidade (prolongamento da luz solar e encurtamento do período noturno) para sincronizar seus ritmos biológicos com o ciclo ambiental, por exemplo, para a reprodução. Quando os fatores ambientais regulam o “relógio biológico” usa-se o termo “Zeitgeber” (do alemão ‘Zeit’, tempo; ‘Geber’, doador) que, em uma tradução grosseira, seria “doadores de tempo”. Este aspecto, na realidade, é bem complexo de entendimento, mas no momento basta sabermos que as oscilações externas (ciclo exógeno) sincronizadas com os ciclos endógenos (“relógio biológico”) são chamadas de Zeitgeber, que é um mecanismo de temporização das espécies.   

Peraí, voltando a relação cronobiologia e COVID-19:

A “bagunça” em nossos horários, durante a pandemia, pode estar dessincronizando nosso ritmo circadiano e abrindo as portas para as doenças, como a depressão e as doenças neurogenerativas? A interrupção na regularidade dos padrões de sono pode estar confundindo nosso “relógio biológico” e, dessa forma, impactar negativamente sobre nossa saúde? Esse impacto pode estar manifestado, de alguma forma, nas doenças crônico-degenerativas (obesidade, diabetes, hipertensão e doença cardiovascular)? Ou, pelo contrário, nosso organismo é “esperto” e consegue se adaptar as mudanças no ciclo de sono-vigília, garantindo a saúde e evitando a doença? Bem, não sou especialista no assunto (muito longe disso), mas fiz algumas pesquisas na busca de algumas respostas (afinal, meus horários estão uma “bagunça”, rs).

COMO SE DÁ A REGULAÇÃO DO RITMO CIRCADIANO?

Os ritmos biológicos estão em toda parte, basta observar com atenção. Por exemplo, a migração anual de pássaros é um fenômeno extraordinário, onde centenas de aves ao redor do mundo percorrem longas distâncias com a mudança das estações do ano. Embora a migração pareça ter relação com a busca de comida e por climas mais quentes, trata-se de uma situação rítmica biológica em nosso ecossistema. Segundo o Portal São Francisco (https://www.portalsaofrancisco.com.br/biologia/migracao-de-aves), a andorinha-do-mar ártica, que procria no norte do Círculo Ártico, voa quase 18 mil quilômetros para o Sul, em direção à Antártica, quando chega o inverno no Norte. Já o beija-flor-de-pescoço-vermelho (Archilochus colubris), que é uma ave minúscula, consegue voar mais de 800 quilômetros, do litoral Sul da América do Norte à Península Yucatan no México para se alimentar de flores durante os meses mais frios do inverno. A revista Superinteressante, em 2018 (https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quais-sao-os-animais-recordistas-em-migracoes), também trouxe uma matéria sobre os animais recordistas em migrações, onde destaca-se o pássaro brasileiro chamado bobo-escuro (Puffinus griséus), um parente do albatroz, que viaja 63 mil quilômetros anualmente.

Enfim, andorinhas, beija-flores, patos, gansos, cisnes, flamingos e cegonhas, bem como mamíferos (baleias e elefantes-marinhos), insetos e peixes migram, anualmente, grandes distâncias. Trata-se de um fenômeno que repete de tempos em tempos e que pode ser estudado na cronobiologia. O comportamento de determinados animais migratórios, portanto, é mediado pelo “relógio biológico” destes, que depende da alimentação e temperatura. Além disso, sugere-se que estes animais migram guiados pelo sol, lua, estrelas, marés e, até mesmo, campos magnéticos terrestres. Na verdade, não sabemos exatamente como fazem tal façanha migratória, mas essa situação rítmica tem sido estudada na cronobiologia (e muitas respostas também foram obtidas). Todavia, entre os ritmos biológicos em seres humanos, certamente os ritmos circadianos são os mais estudados na cronobiologia. E, agora, vamos entender como esse processo é regulado em seres humanos.  

No ritmo circadiano (24h) dos seres humanos podemos observar uma sincronização do meio externo (ambiente) como o meio interno (“relógio biológico”), onde usamos o termo Zeitgeber. Todavia, como esse fantástico processo é regulado? Buenas, agora merece destaque uma pequena região do cérebro chamada de núcleo supraquiasmático (SCN, sigla do inglês suprachiasmatic nucleus). O SCN é o centro primário de regulação dos ritmos circadianos ou, se preferir, é uma espécie de “marca-passo central”. Alguns estudiosos também o chamam de “relógio cerebral”. O SCN fica localizado acima do cruzamento dos nervos ópticos e recebe informações de luz originárias dos olhos, particularmente da retina. O processamento destes dados é complexo, mas podemos resumir assim:

·       A retina recebe informações de luz do ambiente, pois possuem fotorreceptores para distinguir formas e cores, bem como células glanglionares ricas em melanopsina (um fotopigmento) que enviam informações ao SCN;

·       O SCN analisa a informação recebida e envia ao gânglio cervical superior sinais para a glândula pineal, que secreta (ou não) a melatonina;

·       A melatonina, que é um hormônio secretada pela glândula pineal, propicia o sono;

·       O SCQ também envia sinais elétricos e humorais para o córtex cerebral, o hipotálamo, o cerebelo e o tronco cerebral, além de gerar sinais ritmos que afetam os órgãos periféricos (estômago, intestino, fígado, coração, pulmões, músculos esqueléticos e tecido adiposo).

Portanto, o SCN tem relação direta com a produção de melatonina, o famoso “hormônio do sono”. Segundo Sandra J. Kuhlman et al. (Introduction to Chronobiology Cite. Cold Spring Harb Perspect Biol 10: a033613, 2018), uma lesão no SCN resulta em perda das funções rítmicas, incluindo o ciclo de sono-vigília, a produção hormonal e o controle da temperatura corporal. E, por isso, que sempre falamos dos cuidados com a luminosidade (celular ou TV) na hora de dormir, pois você pode estar “bagunçando”, “desregulando”, “dessincronizando” seu SCN e “relógio biológico”, que pode se manifesta na menor biossíntese e liberação de melatonina.

A melatonina (N-acetil-5-metoxitriptamina), produzida pela glândula pineal, tem um papel central no sono e, qualquer dificuldade neste sentido poderá prejudicar seu pleno, acolhedor e tranquilo sono. Ou seja, cabe destacar que a biossíntese e liberação de melatonina depende da ausência de luminosidade no ambiente. Além do sono, a melatonina desempenha outras funções em nosso organismo, incluindo ação antioxidante e imunomoduladora (modulação do sistema imunológico). Sabendo disso, você ainda pretende dormir olhando TV ou “curtindo” seu FACE e Instagram? Ao mesmo tempo, especula-se se uma disfunção do SCN poderia acarretar doenças em órgãos periféricos, por exemplo, fígado gorduroso, cirrose, hepatite e, até mesmo, câncer de fígado. Pois é, esse assunto vai longe, mas é interessantíssimo.

Mas, voltamos a regulação do ritmo circadiano. Não quero entrar em uma discussão bioquímica “pesada” e prolongada aqui, mas os mecanismos moleculares do ciclo circadiano em mamíferos envolvem determinados genes, como o CLOCK (clock controlled genes ou relógio controlado por genes). Muitas vezes, o CLOCK é acompanhado do BMAL1 (brain and muscle Arnt-like protein-1 ou proteína-1 cerebral e do músculo ligada ao Arnt), portanto, CLOCK:BMAL1. BMAL1, segundo outros autores, é chamada simplesmente de Arnt3 ou MOP3. Então, bem rapidamente: a retina recebe informações de luz ambiental, onde as células glanglionares contém um fotopigmento chamado melanopsina. Com base nisso, são liberados glutamato (GLU) e peptídeo ativador adenilato ciclase da pituitária (PACAP), que são neurotransmissores que medeiam as propriedades sincronizadoras da luz. Estes (GLU e PACAP) interagem com receptores em neurônios do SCN, onde é liberado cálcio no citossol. Ocorre fosforilação do CREB (cAMP response element-binding protein ou proteína de ligação em resposta ao AMP cíclico), que desencadeia a ativação do CLOCK:BMAL1. Por fim, ocorre a transcrição de genes circadianos conhecidos como Period (Per1 e 2), Cryptochrome (Cry1 e 2), Rev-erb (Reverba e β) e Ror (Rora, β e g). A partir daí o assunto torna-se cada vez mais complexo e, aos curiosos e estudiosos, aconselho a leitura de Alexandra J. Trott; Jerome S. Menet. Regulation of circadian clock transcriptional output by CLOCK:BMAL1. PLOS Genetics 1-34, 2018.

PODEMOS ALTERAR NOSSO “RELÓGIO BIOLÓGICO”?

Essa é uma dúvida interessante, ou seja, como se comporta o ritmo circadiano das pessoas que trabalham a noite, mas dormem durante o dia (seguranças, vigilantes, profissionais de saúde e pilotos de avião)? Para responder a essa pergunta, precisamos entender o conceito de “jetlag” e “jetlag social”.

O chamado “jetlag” é uma experiência comum entre as pessoas que viajam para lugares com fusos horários diferentes e, certamente Eu, Você e Todos Nós já sentimos isso. E, se a diferença entre os lugares (ou países) for muito grande, então nosso corpo ficará muito confuso quanto ao horário de acordar, dormir ou realizar as refeições diárias. Já passou por isso? Lembra-se como foi ruim? Já o “jetlag social” é semelhante, mas não depende de viagens e, sim, da discrepância no tempo de sono em relação as nossas atividades diárias ou cotidianas, incluindo os tempos livres.

Como assim, professor? Beleza, deixa-me explicar melhor.

Nos finais de semana você costuma acordar mais tarde quando comparado aos dias de semana? Se sim (e certamente é um SIM, rs), notou que segunda-feira, vindo de um domingo, seu dia começou com dificuldade para acordar e, provavelmente, não cumpriu com adequação suas atividades diárias? Você parecia “lento” e “preguiçoso”? Pois bem, aí está o “jetlag social”, que ocorre de forma corriqueira em todas as pessoas que trabalham com horários predeterminados durante a semana, mas adoram ficar até mais tarde na cama no sábado e domingo. A pergunta de um “zilhão de dólares” seria: o “jetlag social” pode estar desalinhando ou dessincronizando meu “relógio biológico” ao ponto de causar doenças? Como eu disse, não sou especialista no assunto, mas fui atrás de algumas respostas. Continue a leitura.

O que sabemos, atualmente, segundo a Dra. Luísa Klaus Pilz, durante sua palestra que mencionei anteriormente, é que quanto menor for o “jetlag social”, melhor seria a saúde do indivíduo. Ao mesmo tempo, quanto maior for o “jetlag social”, mais prejuízos de saúde podem ser esperados. Em outras palavras, muitos horários diferentes durante um período de 24 horas, durante semanas ou meses, prejudicam o ciclo circadiano, podendo prejudicar sua saúde. Neste sentido, ser mais regular em suas atividades diárias, mantendo, dentro do possível, seu horário comum de acordar e dormir, poderá lhe manter ou promover a saúde. Mas, professor, e o trabalhador, que trabalha a noite, mas dorme durante o dia? E, ao mesmo tempo, está me dizendo que não posso mais dormir até tarde nos finais de semana? Buenas, não estou afirmando nada, mas me arriscaria dizer três coisas:

·       Primeiro, se o trabalhador faz isso sempre da mesma forma, nos mesmos horários, durante muitos meses ou anos, o corpo vai terminar se acostumando;  

·       Segundo, nosso ritmo circadiano não se modifica facilmente (pois é um processo evolutivo e bioquimicamente bem regulado) e, dessa forma, a primeira premissa pode estar errada;

·       E, terceiro, Eu e Você continuaremos dormindo até meio-dia no domingo, mesmo que a ciência mostre que estamos errados (rs) (Não é verdade?).

E, agora? O que fazer? O que pensar? Assunto interessante, não é mesmo? Pois bem, não espere uma resposta exata para tudo isso, pois simplesmente não existe. Ao mesmo tempo, sabe-se muita coisa. Então, vamos continuar essa leitura “biologicamente programada”, embora não obrigatória (rs). 

EXISTE ALGUMA RELAÇÃO ENTRE A DESREGULAÇÃO DO “RELÓGIO BIOLÓGICO” E O SURGIMENTO DE DOENÇAS, ESPECIALMENTE NO CONTEXTO DA PANDEMIA?

Uma matéria em uma revista eletrônica, não científica, chamada “A Mente é Maravilhosa” (https://amenteemaravilhosa.com.br/efeitos-de-trabalhar-a-noite/), relata que trabalhar à noite, como ocorre entre os seguranças, vigilantes, pilotos de avião e profissionais de saúde, pode reduzir significativamente a qualidade de vida das pessoas. Segundo a matéria, nosso cérebro desenvolveu um mecanismo para descansar a noite e a mudança no horário “normal” de dormir prejudica a qualidade de sono e produção de melatonina. Os prejuízos, portanto, se manifestam nas irregularidades menstruais, no aumento da irritabilidade e na possibilidade de desenvolver doenças, especialmente a doença cardiovascular. Além disso, as pessoas relatam alterações digestivas, insônia, fadiga crônica e redução da vida social e familiar. Claro, essa não é uma matéria científica, como foi dito (e nem exibe os estudos utilizados no texto). Sendo assim, o que dizem os estudos científicos?

Um estudo publicado pela International Journal of Obesity, em 2015 (Social jetlag, obesity and metabolic disorder: investigation in a cohort study. International Journal of Obesity 39: 842-848, 2015) encontrou correlação entre o “jetlag social”, a disfunção metabólica, a obesidade e o diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Trata-se de um estudo de coorte longitudinal com 1037 voluntários (lembre-se: estudos observacionais possuem menor grau de evidência quanto comparados aos estudos randomizados, duplo-cegos, controlados, mas é o que temos sobre o assunto). Neste estudo, viver “contra nosso relógio interno” pode contribuir para disfunções metabólicas e doenças. Segundo os autores, a ruptura circadiana causa sintomas metabólicos desfavoráveis em animais e humanos.

Isso poderia explicar, em parte, a epidemia de obesidade que vivemos? Não sei, pois a obesidade é uma doença multifatorial, mas certamente uma “pulga atrás da orelha” consegui deixar. Aliás, você pode estar sofrendo de “jetlag social” e nem imaginava, não é mesmo? Para tanto, pense se seus horários de acordar e dormir são sempre os mesmos durante a semana e os finais de semana. Além disso, pense se você prepara o ambiente para dormir (quarto escuro, ambiente silencioso) ou prepara o ambiente para não dormir (TV ligada, celular na mão ou fazer uma “DR”, ou seja, “discutir a relação”, rs). Por fim, pense se seus horários, durante a pandemia, não estão uma verdadeira “bagunça”.  

Mas, atenção, cada pessoa tem uma cronotipo específico e, portanto, individual. Em outras palavras, cada pessoa sabe seu melhor horário para acordar, trabalhar, dormir. Cronotipo seria uma espécie de preferência por determinados horários do dia. Algumas pessoas funcionam melhor pela manhã, enquanto outras (como eu) são imprestáveis neste horário. Outras pessoas são verdadeiras “corujas” e funcionam melhor a noite (estou nesta lista). Outras, por sua vez, são verdadeiras “cotovias”, um pequeno passarinho que acorda cedo e cheio de energia (que inveja, não?). Então, imaginem alguém que “odeia” acordar cedo (“corujas”) ter que se deslocar até a Escola, pela manhã, para estudar? Este fato não lhe é familiar? Será que as falhas de memória e aprendizado, em alguns casos reais da vida, tem relação com o ciclo circadiano dos estudantes? Se sim, como os professores e as Instituições de Ensino poderiam resolver isso? Ou, pelo contrário, você não é um adolescente “coruja”, mas vai usar esse argumento com seus pais para conseguir dormir até meio-dia (rs)? Já o outro adolescente poderá usar este argumento para justificar sua permanência na frente do computador madrugada à dentro, enganando, novamente, seus pais (rs)? E, nestes casos, como avaliar o cronotipo de uma pessoa? Aos curiosos, aconselho a leitura do estudo de Márcia Finimundi et al. (Validação da escala de ritmo circadiano – ciclo vigília/sono para adolescentes. Rev Paul Pediatr 30(3):409-414, 2012), que traz a validação de uma escola de ritmo circadiano.

E na COVID-19, o que dizem os estudos de cronobiologia? Claro, vamos lá.

Segundo Marco Túlio de Mello et al. (Sleep and COVID-19: considerations about immunity, pathophysiology, and treatment. Sleep Sci. 200-209, 2020), o medo e a incerteza de dias melhores (sem o desemprego, por exemplo), associada a quarentena (isolamento social), causadas pela pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), colocaram as pessoas em situação de estresse (crônico) e insônia. Essas situações são acompanhadas por ansiedade e depressão. Neste triste cenário, onde o sono certamente teve prejuízos, a produção de melatonina também foi afetada. A privação do sono prejudica a qualidade de vida do indivíduo, incluindo a redução da defesa imunitária, o que pode abrir as portas para as doenças e a neurodegeneração. Os distúrbios do sono podem agravar a inflamação sistêmica e pulmonar (que são dois fatores de grande atenção durante a pandemia). Especula-se que estes aspectos, somados, podem deixar as pessoas mais vulneráveis a infecção viral, como SARS-CoV-2.

Peraí, um pouquinho mais de bioquímica pode explicar os distúrbios do sono durante a pandemia e suas implicações na saúde. Por exemplo, a interleucina-6 (IL-6), que é uma citocina pró-inflamatória secretada por monócitos (mas também macrófagos, células endoteliais e fibroblastos), tem pico entre 19h e 5h da manhã (portanto, noite e madrugada). Porém, se você perdeu o sono, por inúmeros motivos, como fica a produção de IL-6 e a inflamação se às 4h da manhã você ainda não dormiu? Na privação de sono recorrente, a IL-6 vai aparecer mais cedo ou mais tarde em sua vida? Da mesma forma, a secreção do fator de necrose tumoral-a (TNF-a), que é outra citocina inflamatória, poderá ter sua secreção em diferentes horários, devido sua insônia? E se a privação de sono for crítica, como ficar 3, 4 ou 5 noites sem dormir (ou dormir, porém sem qualidade alguma), seu corpo pode estar “inflamado” e, dessa forma, “inflamando” seu cérebro e causando neurodegeneração? Qual impacto da privação de sono, parcial ou total, sobre o sistema imunológico? Por exemplo, sabe-se que a privação do sono reduz a produção de células T e a atividade de Th1-Th2, o que prejudica as células B. Sendo assim, a privação do sono, durante a pandemia, não estaria prejudicando seu sistema imune e facilitando a infecção viral? 

Apenas relembrando: os linfócitos T coordenam o sistema imune para inativar e destruir possíveis patógenos, sendo classificados como T-auxiliares (CD4+) e T-citotóxicos (CD8+). Os CD4+ coordenam a resposta imune e estimulam os linfócitos B, enquanto que os CD8+ reconhecem e destroem patógenos. Os linfócitos B são responsáveis pela produção de anticorpos, que guardam “memória” imunológica para responderem a um novo contato ou contágio. Os linfócitos T e B fazem parte da imunidade adquirida ou adaptativa. Os linfócitos T CD4+ (auxiliares ou Helper) secretam citocinas que estimulam os linfócitos B, mas podem ser divididos em dois subgrupos: Th1 e Th2. Os linfócitos Th1 (T helper 1) produzem citocinas relacionadas com a defesa mediada por fagocitose contra agentes infecciosos intracelulares e, neste caso, destacam-se a interlecuina-2 (IL-2), o interferon-g (INFg) e o fator de necrose tumoral-a (TNFa); enquanto que os linfócitos Th2 (T helper 2) secretam IL-4, IL-5, IL-10 e IL-13, relacionadas com a produção de anticorpos IgE (imunoglobulina E), bem como reações imunes mediadas por eosinófilos e mastócitos contra alérgenos e helmintos.

Em outro estudo, publicado em 2020 (Christine Blume et al.  Effects of the COVID-19 lockdown on human sleep and rest-activity rhythms. Current Biology 30, R783-R801, 2020), existe uma relação de descompasso entre o “jetlag social” e a restrição social do sono, que podem acarretar consequências negativas à saúde. Agora, olhem que interessante: o exercício físico, ao ar livre (exposição solar), parece ser uma estratégia para mitigar os efeitos adversos da privação de sono durante a pandemia (isso até merece um post extra no futuro). E, agora, vamos as considerações finais? Beleza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível (e está claro para mim) que os distúrbios do sono prejudicam a saúde e a qualidade de vida das pessoas, embora não podemos afirmar (mas, sim, especular) que facilite a infecção pelo SARS-CoV-2. Também é possível (e está claro para mim, novamente) que o exercício físico, de forma regular, é uma estratégia não farmacológica, de baixo custo e eficaz, para melhorar a saúde (física e mental), incluindo melhorias na qualidade do sono. O “jetlag social” é uma situação corriqueira entre as pessoas e, especialmente, na pandemia de COVID-19. Quanto maior for o “jetlag social”, maiores seriam os prejuízos de saúde, portanto, reveja seus horários de acordar e dormir (farei o mesmo). Os prejuízos, por sua vez, têm relação com a dessincronização do núcleo supraquiasmático (SCN) e a produção de melatonina na privação do sono. Está claro, portanto, que você deve “dormir melhor”, “treinar com regularidade”, “reduzir as situações estressantes” e, claro, se “alimentar saudavelmente”. Porém, o envelhecimento não poderia alterar esse "relógio biológico", favorecendo a doença neurodegenerativa? Se sim, como “não envelhecer” já que o envelhecimento é um processo natural e irreversível? Pois é, a cronobiologia e os cronobiologistas ainda precisam nos ajudar com algumas respostas e, portanto, valorizem a ciência, os cientistas, os pesquisadores, os docentes e os estudantes de graduação e pós-graduação.

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