CRONOBIOLOGIA E COVID-19
Você
já observou que, durante a pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus
da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), as pessoas perderam seus horários?
Quer dizer, algumas dormem tarde e acordam tarde, enquanto outras dormem no
horário “normal”, mas ficam “ligadas” na tela do celular ou TV, não é verdade? Você
já pensou que essa luminosidade toda poderia dessincronizar nosso “relógio biológico”
em virtude da interrupção da regularidade do sono? E, ainda, tem aquelas que
estudam e trabalham Home Office nos
mais diferentes horários (afinal, estamos em casa), mas esse cenário remoto não
estaria acabando com nossos horários de refeição, de lazer, de esporte? Se sim,
nosso “relógio biológico” estaria sendo perturbado, dessincronizado,
desregulado? Uma dessincronização ou desregulação do “relógio biológico”
poderia favorecer o surgimento de doenças no contexto da pandemia de COVID-19?
Estes
dias assisti a excelente palestra da Dra. Luísa Klaus Pilz (Currículo lattes
disponível em: http://lattes.cnpq.br/0712780414623832), sobre cronobiologia, no
Seminário Científico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do
Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas: Farmacologia e Terapêutica (PPGFT),
onde faço meu doutorado (que não é sobre este assunto, mas tem muita relação
com as conexões cerebrais, por assim dizer). A Dra. Luísa é graduada em Biomedicina
pela Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
(UFCSPA); Mestre em Ciências Biológicas: Bioquímica pela UFRGS; Doutora (doutorado
sanduíche) em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS e pelo Instituto
de Psicologia Médica da Ludwig Maximilian Universität (LMU, Alemanha); e Pós-doutora
UFRGS/LMU-Alemanha. Ou seja, Dra. Luísa entende muito do assunto. Essa palestra
despertou um antigo interesse que já tinha sobre a cronobiologia. Então, refiz
minhas leituras e pesquisas sobre o assunto e deixo, aqui, algumas
considerações.
MAS, AFINAL, O QUE É CRONOBIOLOGIA?
A
cronobiologia é a ciência que estuda
as características temporais da matéria viva em todos os níveis de organização,
o que inclui o estudo dos ritmos biológicos. Os ritmos biológicos são os fenômenos que se repetem de tempos em tempos
e, portanto, de forma cíclica. Podemos dizer, também, que a cronobiologia é um
ramo da biologia que estuda os ritmos fisiológicos naturais dos organismos e,
neste caso, nós (pessoas) também podemos ser estudados pelos cronobiologistas. Obviamente,
o ritmo circadiano, que tem relação com
nosso sono (ou falta dele), é um dos assuntos mais estudados na cronobiologia.
O QUE É RITMO CIRCADIANO?
Como
o nome o próprio nome diz, os ritmos
circadianos referem-se aos ritmos que se repetem em cada 24 horas (onde no
latim temos ‘circa’ e ‘diem’,
portanto, próximo ou cerca de um dia). Neste sentido, podemos estudar o ritmo de
plantas, animais e, até mesmo, micróbios. Contudo, quando falamos em ritmo
circadiano tenho certeza que, imediatamente, você pensa no sono e na melatonina,
onde tem toda a razão de pensar assim (como veremos).
O
ciclo de sono-vigília ou “acordar e dormir” é um exemplo clássico. Entretanto,
existem outros ritmos nos seres humanos que podem ser estudados: temperatura
corporal, secreção hormonal e funcionamento dos órgãos em um período de 24
horas. Aliás, não é exatamente 24 horas, pois pode ser um pouco menos para
alguns e um pouco mais para outros (oscilação de 20 até 28 horas), o que também
depende da espécie estudada. O ritmo circadiano parece ser algo evolutivo para
garantir a sobrevivência da espécie, embora existam muitas teorias (proteção do
DNA, inativação de espécies reativas do oxigênio, vantagem seletiva, influência
cósmica, etc.) para tentar explicar algo um tanto inexplicável ou não totalmente
compreendido, por assim dizer.
Apenas
a título de curiosidade, por vezes, também se observam os termos ritmos infradianos e ultradianos. Você já ouviu falar
disso?
Pois
bem, os infradianos são ritmos que ultrapassam
o circadiano ou “além de um dia” (portanto, acima de 24h ou, melhor, acima de
28h, segundo a literatura). Exemplo: o ciclo menstrual (ciclo sexual mensal) se
repete a cada 28 dias, passando pelas fases de menstruação, folicular,
ovulatória e lútea. Com base nisso, podem ser esperadas flutuações dentro deste
ciclo menstrual (nível de energia, alterações de humor ou irritabilidade,
alteração do sistema imune e alterações no padrão do sono) entre as mulheres. A
hibernação que alguns animais realizam também é um exemplo de ritmo infradiano,
que extrapolam o ciclo circadiano. Na hibernação, alguns animais ficam
letárgicos, sonolentos e inativos por um determinado período. Trata-se de um mecanismo
de sobrevivência que alguns animais utilizam para vencer as condições
ambientais desfavoráveis (inverno rigoroso com pequena quantidade de alimentos
disponíveis). O urso polar é, provavelmente, a espécie mais conhecida por
hibernar, mas também hibernam esquilos, morcegos, lagartos, ratos-silvestres,
hamsters e ouriços. Ops, lembrei agora, a mudança nas árvores, que perdem e
renovam suas folhas, durante as diferentes estações do ano (Primavera, Verão, Outono
e Inverno), é um exemplo de ritmo infradiano. Os ritmos ultradianos, por sua vez, são aqueles que se repetem em um período
menor que o circadiano (menos de 20h) ou que se repetem várias vezes em um dia.
Exemplo: batimentos cardíacos, ondas cerebrais e secreções hormonais (cortisol,
leptina, insulina, grelina, testosterona, entre outros).
Ainda
a título de curiosidade, alguns ciclos não se alteram pela inversão do ciclo
claro-escuro (dia-noite), pois seria um caos para manter a sobrevivência da
espécie. Por exemplo, a temperatura corporal em seres humanos se mantém
relativamente constante (36,8ºC), exibindo, apenas, pequenas oscilações (0,5 a
0,6ºC). Ou seja, é um ciclo endógeno
que independe das modificações do meio externo, como a supressão da
luminosidade. Por outro lado, alguns ritmos necessitam de estímulos externo (ciclo exógeno), ou melhor, ocorre
sincronização dos ritmos biológicos com os ciclos ambientais. Complicado?
Peraí, vejam bem: na natureza alguns animais (aves e mamíferos) utilizam os
sinais de luminosidade (prolongamento da luz solar e encurtamento do período
noturno) para sincronizar seus ritmos biológicos com o ciclo ambiental, por
exemplo, para a reprodução. Quando os fatores ambientais regulam o “relógio
biológico” usa-se o termo “Zeitgeber” (do alemão ‘Zeit’, tempo; ‘Geber’, doador) que, em uma tradução grosseira, seria “doadores de
tempo”. Este aspecto, na realidade, é bem complexo de entendimento, mas no
momento basta sabermos que as oscilações externas (ciclo exógeno) sincronizadas
com os ciclos endógenos (“relógio biológico”) são chamadas de Zeitgeber, que é um mecanismo de
temporização das espécies.
Peraí,
voltando a relação cronobiologia e COVID-19:
A
“bagunça” em nossos horários, durante a pandemia, pode estar dessincronizando
nosso ritmo circadiano e abrindo as portas para as doenças, como a depressão e as
doenças neurogenerativas? A interrupção na regularidade dos padrões de sono pode
estar confundindo nosso “relógio biológico” e, dessa forma, impactar negativamente
sobre nossa saúde? Esse impacto pode estar manifestado, de alguma forma, nas
doenças crônico-degenerativas (obesidade, diabetes, hipertensão e doença
cardiovascular)? Ou, pelo contrário, nosso organismo é “esperto” e consegue se
adaptar as mudanças no ciclo de sono-vigília, garantindo a saúde e evitando a
doença? Bem, não sou especialista no assunto (muito longe disso), mas fiz
algumas pesquisas na busca de algumas respostas (afinal, meus horários estão
uma “bagunça”, rs).
COMO SE DÁ A REGULAÇÃO DO RITMO CIRCADIANO?
Os
ritmos biológicos estão em toda parte, basta observar com atenção. Por exemplo,
a migração anual de pássaros é um fenômeno extraordinário, onde centenas de
aves ao redor do mundo percorrem longas distâncias com a mudança das estações
do ano. Embora a migração pareça ter relação com a busca de comida e por climas
mais quentes, trata-se de uma situação rítmica biológica em nosso ecossistema.
Segundo o Portal São Francisco (https://www.portalsaofrancisco.com.br/biologia/migracao-de-aves),
a andorinha-do-mar ártica, que procria no norte do Círculo Ártico, voa quase 18
mil quilômetros para o Sul, em direção à Antártica, quando chega o inverno no
Norte. Já o beija-flor-de-pescoço-vermelho (Archilochus
colubris), que é uma ave minúscula, consegue voar mais de 800 quilômetros,
do litoral Sul da América do Norte à Península Yucatan no México para se alimentar
de flores durante os meses mais frios do inverno. A revista
Superinteressante, em 2018 (https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quais-sao-os-animais-recordistas-em-migracoes), também trouxe uma matéria sobre os animais
recordistas em migrações, onde destaca-se o pássaro brasileiro chamado
bobo-escuro (Puffinus griséus), um
parente do albatroz, que viaja 63 mil quilômetros anualmente.
Enfim,
andorinhas, beija-flores, patos, gansos, cisnes, flamingos e cegonhas, bem como
mamíferos (baleias e elefantes-marinhos), insetos e peixes migram, anualmente,
grandes distâncias. Trata-se de um fenômeno que repete de tempos em tempos e
que pode ser estudado na cronobiologia. O comportamento de determinados animais
migratórios, portanto, é mediado pelo “relógio biológico” destes, que depende
da alimentação e temperatura. Além disso, sugere-se que estes animais migram
guiados pelo sol, lua, estrelas, marés e, até mesmo, campos magnéticos
terrestres. Na verdade, não sabemos exatamente como fazem tal façanha
migratória, mas essa situação rítmica tem sido estudada na cronobiologia (e
muitas respostas também foram obtidas). Todavia, entre os ritmos biológicos em
seres humanos, certamente os ritmos circadianos são os mais estudados na
cronobiologia. E, agora, vamos entender como esse processo é regulado em seres
humanos.
No
ritmo circadiano (24h) dos seres humanos podemos observar uma sincronização do meio
externo (ambiente) como o meio interno (“relógio biológico”), onde usamos o
termo Zeitgeber. Todavia, como esse
fantástico processo é regulado? Buenas, agora merece destaque uma pequena região
do cérebro chamada de núcleo
supraquiasmático (SCN, sigla do inglês suprachiasmatic
nucleus). O SCN é o centro primário de regulação dos ritmos circadianos ou,
se preferir, é uma espécie de “marca-passo central”. Alguns estudiosos também o
chamam de “relógio cerebral”. O SCN fica localizado acima do cruzamento dos
nervos ópticos e recebe informações de luz originárias dos olhos,
particularmente da retina. O processamento destes dados é complexo, mas podemos
resumir assim:
·
A
retina recebe informações de luz do ambiente, pois possuem fotorreceptores para
distinguir formas e cores, bem como células glanglionares ricas em melanopsina
(um fotopigmento) que enviam informações ao SCN;
·
O
SCN analisa a informação recebida e envia ao gânglio cervical superior sinais
para a glândula pineal, que secreta (ou não) a melatonina;
·
A
melatonina, que é um hormônio secretada pela glândula pineal, propicia o sono;
·
O
SCQ também envia sinais elétricos e humorais para o córtex cerebral, o
hipotálamo, o cerebelo e o tronco cerebral, além de gerar sinais ritmos que
afetam os órgãos periféricos (estômago, intestino, fígado, coração, pulmões,
músculos esqueléticos e tecido adiposo).
Portanto,
o SCN tem relação direta com a produção de melatonina, o famoso “hormônio do
sono”. Segundo Sandra J. Kuhlman et al.
(Introduction to Chronobiology Cite. Cold Spring Harb Perspect Biol 10:
a033613, 2018), uma lesão no SCN resulta em perda das funções rítmicas,
incluindo o ciclo de sono-vigília, a produção hormonal e o controle da
temperatura corporal. E, por isso, que sempre falamos dos cuidados com a luminosidade
(celular ou TV) na hora de dormir, pois você pode estar “bagunçando”,
“desregulando”, “dessincronizando” seu SCN e “relógio biológico”, que pode se
manifesta na menor biossíntese e liberação de melatonina.
A
melatonina (N-acetil-5-metoxitriptamina), produzida pela glândula pineal, tem
um papel central no sono e, qualquer dificuldade neste sentido poderá
prejudicar seu pleno, acolhedor e tranquilo sono. Ou seja, cabe destacar que a biossíntese
e liberação de melatonina depende da ausência de luminosidade no ambiente. Além
do sono, a melatonina desempenha outras funções em nosso organismo, incluindo
ação antioxidante e imunomoduladora (modulação do sistema imunológico). Sabendo
disso, você ainda pretende dormir olhando TV ou “curtindo” seu FACE e
Instagram? Ao mesmo tempo, especula-se se uma disfunção do SCN poderia
acarretar doenças em órgãos periféricos, por exemplo, fígado gorduroso,
cirrose, hepatite e, até mesmo, câncer de fígado. Pois é, esse assunto vai
longe, mas é interessantíssimo.
Mas,
voltamos a regulação do ritmo circadiano. Não quero entrar em uma discussão bioquímica
“pesada” e prolongada aqui, mas os mecanismos moleculares do ciclo circadiano
em mamíferos envolvem determinados genes, como o CLOCK (clock controlled genes ou relógio controlado por genes). Muitas
vezes, o CLOCK é acompanhado do BMAL1 (brain
and muscle Arnt-like protein-1 ou proteína-1 cerebral e do músculo ligada
ao Arnt), portanto, CLOCK:BMAL1. BMAL1, segundo outros autores, é chamada
simplesmente de Arnt3 ou MOP3. Então, bem rapidamente: a retina recebe informações
de luz ambiental, onde as células glanglionares contém um fotopigmento chamado melanopsina.
Com base nisso, são liberados glutamato (GLU) e peptídeo ativador adenilato
ciclase da pituitária (PACAP), que são neurotransmissores que medeiam as propriedades
sincronizadoras da luz. Estes (GLU e PACAP) interagem com receptores em
neurônios do SCN, onde é liberado cálcio no citossol. Ocorre fosforilação do
CREB (cAMP response element-binding
protein ou proteína de ligação em resposta ao AMP cíclico), que desencadeia
a ativação do CLOCK:BMAL1. Por fim, ocorre a transcrição de genes circadianos conhecidos
como Period (Per1 e 2), Cryptochrome (Cry1 e 2), Rev-erb (Reverba
e β) e Ror (Rora, β e g).
A partir daí o assunto torna-se cada vez mais complexo e, aos curiosos e estudiosos,
aconselho a leitura de Alexandra J. Trott; Jerome
S. Menet. Regulation of circadian clock transcriptional output by CLOCK:BMAL1.
PLOS Genetics 1-34, 2018.
PODEMOS ALTERAR NOSSO “RELÓGIO BIOLÓGICO”?
Essa
é uma dúvida interessante, ou seja, como se comporta o ritmo circadiano das
pessoas que trabalham a noite, mas dormem durante o dia (seguranças,
vigilantes, profissionais de saúde e pilotos de avião)? Para responder a essa
pergunta, precisamos entender o conceito de “jetlag” e “jetlag
social”.
O
chamado “jetlag” é uma experiência
comum entre as pessoas que viajam para lugares com fusos horários diferentes e,
certamente Eu, Você e Todos Nós já sentimos isso. E, se a diferença entre os
lugares (ou países) for muito grande, então nosso corpo ficará muito confuso
quanto ao horário de acordar, dormir ou realizar as refeições diárias. Já
passou por isso? Lembra-se como foi ruim? Já o “jetlag social” é semelhante, mas não depende de viagens e, sim, da
discrepância no tempo de sono em relação as nossas atividades diárias ou
cotidianas, incluindo os tempos livres.
Como
assim, professor? Beleza, deixa-me explicar melhor.
Nos
finais de semana você costuma acordar mais tarde quando comparado aos dias de
semana? Se sim (e certamente é um SIM, rs), notou que segunda-feira, vindo de
um domingo, seu dia começou com dificuldade para acordar e, provavelmente, não
cumpriu com adequação suas atividades diárias? Você parecia “lento” e
“preguiçoso”? Pois bem, aí está o “jetlag
social”, que ocorre de forma corriqueira em todas as pessoas que trabalham
com horários predeterminados durante a semana, mas adoram ficar até mais tarde
na cama no sábado e domingo. A pergunta de um “zilhão de dólares” seria: o “jetlag social” pode estar desalinhando ou
dessincronizando meu “relógio biológico” ao ponto de causar doenças? Como eu
disse, não sou especialista no assunto, mas fui atrás de algumas respostas.
Continue a leitura.
O
que sabemos, atualmente, segundo a Dra. Luísa Klaus Pilz, durante sua palestra
que mencionei anteriormente, é que quanto menor for o “jetlag social”, melhor seria a saúde do indivíduo. Ao mesmo tempo,
quanto maior for o “jetlag social”,
mais prejuízos de saúde podem ser esperados. Em outras palavras, muitos
horários diferentes durante um período de 24 horas, durante semanas ou meses, prejudicam
o ciclo circadiano, podendo prejudicar sua saúde. Neste sentido, ser mais
regular em suas atividades diárias, mantendo, dentro do possível, seu horário comum
de acordar e dormir, poderá lhe manter ou promover a saúde. Mas, professor, e o
trabalhador, que trabalha a noite, mas dorme durante o dia? E, ao mesmo tempo,
está me dizendo que não posso mais dormir até tarde nos finais de semana?
Buenas, não estou afirmando nada, mas me arriscaria dizer três coisas:
·
Primeiro,
se o trabalhador faz isso sempre da mesma forma, nos mesmos horários, durante
muitos meses ou anos, o corpo vai terminar se acostumando;
·
Segundo,
nosso ritmo circadiano não se modifica facilmente (pois é um processo evolutivo
e bioquimicamente bem regulado) e, dessa forma, a primeira premissa pode estar
errada;
·
E,
terceiro, Eu e Você continuaremos dormindo até meio-dia no domingo, mesmo que a
ciência mostre que estamos errados (rs) (Não é verdade?).
E,
agora? O que fazer? O que pensar? Assunto interessante, não é mesmo? Pois bem,
não espere uma resposta exata para tudo isso, pois simplesmente não existe. Ao
mesmo tempo, sabe-se muita coisa. Então, vamos continuar essa leitura
“biologicamente programada”, embora não obrigatória (rs).
EXISTE ALGUMA RELAÇÃO ENTRE A DESREGULAÇÃO DO
“RELÓGIO BIOLÓGICO” E O SURGIMENTO DE DOENÇAS, ESPECIALMENTE NO CONTEXTO DA
PANDEMIA?
Uma
matéria em uma revista eletrônica, não científica, chamada “A Mente é
Maravilhosa” (https://amenteemaravilhosa.com.br/efeitos-de-trabalhar-a-noite/),
relata que trabalhar à noite, como ocorre entre os seguranças, vigilantes,
pilotos de avião e profissionais de saúde, pode reduzir significativamente a
qualidade de vida das pessoas. Segundo a matéria, nosso cérebro desenvolveu um
mecanismo para descansar a noite e a mudança no horário “normal” de dormir
prejudica a qualidade de sono e produção de melatonina. Os prejuízos, portanto,
se manifestam nas irregularidades menstruais, no aumento da irritabilidade e na
possibilidade de desenvolver doenças, especialmente a doença cardiovascular.
Além disso, as pessoas relatam alterações digestivas, insônia, fadiga crônica e
redução da vida social e familiar. Claro, essa não é uma matéria científica,
como foi dito (e nem exibe os estudos utilizados no texto). Sendo assim, o que
dizem os estudos científicos?
Um
estudo publicado pela International Journal of Obesity, em 2015 (Social jetlag, obesity and metabolic disorder:
investigation in a cohort study. International
Journal of Obesity 39: 842-848, 2015) encontrou correlação entre o “jetlag social”, a disfunção metabólica,
a obesidade e o diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Trata-se de um estudo de coorte
longitudinal com 1037 voluntários (lembre-se: estudos observacionais possuem
menor grau de evidência quanto comparados aos estudos randomizados,
duplo-cegos, controlados, mas é o que temos sobre o assunto). Neste estudo, viver
“contra nosso relógio interno” pode contribuir para disfunções metabólicas e
doenças. Segundo os autores, a ruptura circadiana causa sintomas metabólicos
desfavoráveis em animais e humanos.
Isso
poderia explicar, em parte, a epidemia de obesidade que vivemos? Não sei, pois
a obesidade é uma doença multifatorial, mas certamente uma “pulga atrás da
orelha” consegui deixar. Aliás, você pode estar sofrendo de “jetlag social” e nem imaginava, não é
mesmo? Para tanto, pense se seus horários de acordar e dormir são sempre os
mesmos durante a semana e os finais de semana. Além disso, pense se você
prepara o ambiente para dormir (quarto escuro, ambiente silencioso) ou prepara
o ambiente para não dormir (TV ligada, celular na mão ou fazer uma “DR”, ou
seja, “discutir a relação”, rs). Por fim, pense se seus horários, durante a
pandemia, não estão uma verdadeira “bagunça”.
Mas,
atenção, cada pessoa tem uma cronotipo
específico e, portanto, individual. Em outras palavras, cada pessoa sabe seu
melhor horário para acordar, trabalhar, dormir. Cronotipo seria uma espécie de
preferência por determinados horários do dia. Algumas pessoas funcionam melhor
pela manhã, enquanto outras (como eu) são imprestáveis neste horário. Outras
pessoas são verdadeiras “corujas” e funcionam melhor a noite (estou nesta
lista). Outras, por sua vez, são verdadeiras “cotovias”, um pequeno passarinho
que acorda cedo e cheio de energia (que inveja, não?). Então, imaginem alguém
que “odeia” acordar cedo (“corujas”) ter que se deslocar até a Escola, pela
manhã, para estudar? Este fato não lhe é familiar? Será que as falhas de
memória e aprendizado, em alguns casos reais da vida, tem relação com o ciclo
circadiano dos estudantes? Se sim, como os professores e as Instituições de
Ensino poderiam resolver isso? Ou, pelo contrário, você não é um adolescente
“coruja”, mas vai usar esse argumento com seus pais para conseguir dormir até meio-dia
(rs)? Já o outro adolescente poderá usar este argumento para justificar sua permanência
na frente do computador madrugada à dentro, enganando, novamente, seus pais
(rs)? E, nestes casos, como avaliar o cronotipo de uma pessoa? Aos curiosos,
aconselho a leitura do estudo de Márcia Finimundi
et al. (Validação da escala de ritmo circadiano – ciclo vigília/sono para
adolescentes. Rev Paul Pediatr 30(3):409-414, 2012), que traz a
validação de uma escola de ritmo circadiano.
E
na COVID-19, o que dizem os estudos de cronobiologia? Claro, vamos lá.
Segundo
Marco Túlio de Mello et al. (Sleep and COVID-19:
considerations about immunity, pathophysiology, and treatment. Sleep Sci.
200-209, 2020), o medo e a incerteza de dias melhores (sem o desemprego,
por exemplo), associada a quarentena (isolamento social), causadas pela
pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), colocaram as pessoas em situação de
estresse (crônico) e insônia. Essas situações são acompanhadas por ansiedade e
depressão. Neste triste cenário, onde o sono certamente teve prejuízos, a
produção de melatonina também foi afetada. A privação do sono prejudica a
qualidade de vida do indivíduo, incluindo a redução da defesa imunitária, o que
pode abrir as portas para as doenças e a neurodegeneração. Os distúrbios do
sono podem agravar a inflamação sistêmica e pulmonar (que são dois fatores de
grande atenção durante a pandemia). Especula-se que estes aspectos, somados,
podem deixar as pessoas mais vulneráveis a infecção viral, como SARS-CoV-2.
Peraí,
um pouquinho mais de bioquímica pode explicar os distúrbios do sono durante a
pandemia e suas implicações na saúde. Por exemplo, a interleucina-6 (IL-6), que
é uma citocina pró-inflamatória secretada por monócitos (mas também macrófagos,
células endoteliais e fibroblastos), tem pico entre 19h e 5h da manhã
(portanto, noite e madrugada). Porém, se você perdeu o sono, por inúmeros
motivos, como fica a produção de IL-6 e a inflamação se às 4h da manhã você
ainda não dormiu? Na privação de sono recorrente, a IL-6 vai aparecer mais cedo
ou mais tarde em sua vida? Da mesma forma, a secreção do fator de necrose
tumoral-a (TNF-a), que é outra citocina
inflamatória, poderá ter sua secreção em diferentes horários, devido sua
insônia? E se a privação de sono for crítica, como ficar 3, 4 ou 5 noites sem
dormir (ou dormir, porém sem qualidade alguma), seu corpo pode estar
“inflamado” e, dessa forma, “inflamando” seu cérebro e causando
neurodegeneração? Qual impacto da privação de sono, parcial ou total, sobre o
sistema imunológico? Por exemplo, sabe-se que a privação do sono reduz a
produção de células T e a atividade de Th1-Th2, o que prejudica as células B. Sendo
assim, a privação do sono, durante a pandemia, não estaria prejudicando seu
sistema imune e facilitando a infecção viral?
Apenas
relembrando: os linfócitos T coordenam o sistema imune para inativar e destruir
possíveis patógenos, sendo classificados como T-auxiliares (CD4+) e
T-citotóxicos (CD8+). Os CD4+ coordenam a resposta imune e estimulam os
linfócitos B, enquanto que os CD8+ reconhecem e destroem patógenos. Os linfócitos
B são responsáveis pela produção de anticorpos, que guardam “memória”
imunológica para responderem a um novo contato ou contágio. Os linfócitos T e B
fazem parte da imunidade adquirida ou adaptativa. Os linfócitos T CD4+
(auxiliares ou Helper) secretam citocinas
que estimulam os linfócitos B, mas podem ser divididos em dois subgrupos: Th1 e
Th2. Os linfócitos Th1 (T helper 1) produzem citocinas relacionadas com a
defesa mediada por fagocitose contra agentes infecciosos intracelulares e,
neste caso, destacam-se a interlecuina-2 (IL-2), o interferon-g
(INFg) e o fator de necrose tumoral-a
(TNFa); enquanto que os linfócitos Th2 (T helper 2) secretam
IL-4, IL-5, IL-10 e IL-13, relacionadas com a produção de anticorpos IgE
(imunoglobulina E), bem como reações imunes mediadas por eosinófilos e
mastócitos contra alérgenos e helmintos.
Em
outro estudo, publicado em 2020 (Christine Blume et
al. Effects of the COVID-19 lockdown on
human sleep and rest-activity rhythms. Current Biology 30, R783-R801, 2020), existe
uma relação de descompasso entre o “jetlag
social” e a restrição social do sono, que podem acarretar consequências
negativas à saúde. Agora, olhem que interessante: o exercício físico, ao ar
livre (exposição solar), parece ser uma estratégia para mitigar os efeitos
adversos da privação de sono durante a pandemia (isso até merece um post extra
no futuro). E, agora, vamos as considerações finais? Beleza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É
possível (e está claro para mim) que os distúrbios do sono prejudicam a saúde e
a qualidade de vida das pessoas, embora não podemos afirmar (mas, sim,
especular) que facilite a infecção pelo SARS-CoV-2. Também é possível (e está
claro para mim, novamente) que o exercício físico, de forma regular, é uma
estratégia não farmacológica, de baixo custo e eficaz, para melhorar a saúde (física
e mental), incluindo melhorias na qualidade do sono. O “jetlag social” é uma situação corriqueira entre as pessoas e,
especialmente, na pandemia de COVID-19. Quanto maior for o “jetlag social”, maiores seriam os prejuízos de saúde, portanto, reveja
seus horários de acordar e dormir (farei o mesmo). Os prejuízos, por sua vez,
têm relação com a dessincronização do núcleo supraquiasmático (SCN) e a
produção de melatonina na privação do sono. Está claro, portanto, que você deve
“dormir melhor”, “treinar com regularidade”, “reduzir as situações
estressantes” e, claro, se “alimentar saudavelmente”. Porém, o envelhecimento
não poderia alterar esse "relógio biológico", favorecendo a doença neurodegenerativa?
Se sim, como “não envelhecer” já que o envelhecimento é um processo natural e
irreversível? Pois é, a cronobiologia e os cronobiologistas ainda precisam nos
ajudar com algumas respostas e, portanto, valorizem a ciência, os cientistas,
os pesquisadores, os docentes e os estudantes de graduação e pós-graduação.