quarta-feira, 25 de maio de 2022

BEBIDAS ENERGÉTICAS E EFEITOS ADVERSOS À SAÚDE

 

BEBIDAS ENERGÉTICAS E EFEITOS ADVERSOS À SAÚDE

JOELSO PERALTA

Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 

Olá pessoal, tudo bem? Quem já tomou 1, 2 ou mais bebidas energéticas para treinar ou estudar? Quem já passou mal ingerindo essas bebidas? Quem já misturou bebidas energéticas com bebidas alcoólicas? Que substâncias ou ingredientes existem nestas bebidas energéticas? Pois bem, hoje vamos falar de BEBIDAS ENERGÉTICAS, incluindo o Red Bull, Monster Energy e Full Throttle Energy. Lembre-se de me seguir nas redes sociais: Facebook (Joelso Peralta) e Instagram (@peraltanutri).




AS BEBIDAS ENERGÉTICAS, COMUMENTE USADAS PELAS PESSOAS, INCLUSIVE NO EXERCÍCIO E NO ESPORTE, PODEM CAUSAR EFEITOS ADVERSOS À SAÚDE?

 

Em minha experiência clínica, certamente diria que sim! Ou seja, essas bebidas energéticas, usadas de forma isolada ou em combinação com outras bebidas, suplementos termogênicos e estimulantes e, até mesmo, combinadas com bebidas alcoólicas, podem acarretar prejuízos a saúde do consumidor. Quer dizer, já observei “cada coisa que até Deus dúvida”, digamos assim. Preservando os nomes dos pacientes, obviamente, posso dizer que já presenciei relatos de consultório com homens e mulheres, nas mais diferentes faixas etárias, ingerindo bebidas energéticas para acordar, treinar e estudar. Ou seja, pessoas ingerindo 1, 2, 3, 4 ou 5 energéticos semanalmente. Alguns destes, inclusive, faziam misturas de energéticos, de diferentes marcas. Outros, por sua vez, ingeriam apenas um (01) energético, mas misturavam com cápsulas de cafeína. Existiam pessoas que ingeriam 220 mg, 400 mg, 550 mg e, acima de 600 mg de cafeína para manter o foco e disposição nos treinamentos. Por outro lado, também existiam aqueles que passavam muito mal, cujo relatos eram os mais variados: batimentos cardíacos acelerados, sudorese excessiva, dor no peito, dor de cabeça, náusea e vômito, dor abdominal ou diarreia, tremores nas mãos e pernas, confusão mental ou incoordenação motora e, até mesmo, tontura e desmaio. A ciência, contudo, não tem espaço para achismo e os relatos de casos que observei, durante minha atuação profissional, mesmo que verídicos e interessantes, tem baixo grau de evidência científica. Neste sentido, vamos responder o questionamento observando uma revisão sistemática e meta-análise publicada em 2021: Ibrahim M. Nadeem et al. Energy Drinks and Their Adverse Health Effects: A Systematic Review and Meta-analysis. Sports Health 13(3): 265-277, 2021.

Nesta revisão sistemática e meta-análise, foram incluídos 32 estudos (de uma busca inicial com 2.911 artigos), que atendiam aos critérios de inclusão, o que gerou uma amostra com 96.549 indivíduos (somando todos os indivíduos). Entre os 32 estudos selecionados, publicados entre 2007 e 2018, temos 20 estudos (62,5%) publicados nos últimos 5 anos (2015-2018). Destes, 7 estudos eram evidência de nível 1 (revisão sistemática de ensaios clínicos controlados e randomizados); 1 estudo com evidência de nível 2 (revisão sistemática de estudos de coorte e caso-controle); e 24 estudos com evidência de nível 4 (relato de caso). Cabe lembrar, portanto, que as evidências científicas não são todas iguais. Ou seja, existem uma hierarquia das evidências, onde o mais alto nível de evidência científica está no nível 1 (revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados), enquanto que o menor grau de evidência científica está no nível 5 (opinião desprovida de avaliação crítica). Neste último nível de evidência, estamos falando da “opinião pessoal” que, por mais inteligente e influenciador que a pessoa seja em um grupo ou comunidade, tem pouco ou menor relevância na ciência. Peraí, vamos resumir tudo isso antes de continuar:

 

NÍVEL DE EVIDÊNCIA CIENTÍFICA

(Fonte: Oxford Centre for Evidence-based Medicina, 2001)

 

GRAU DE RECOMENDAÇÃO A: aqui enquadram-se as evidências de nível 1 (1A, 1B e 1C). Dessa forma, a evidência de nível 1A é composta por revisão sistemática de ensaios clínicos controlados e randomizados; a evidência de nível 1B é composta por ensaio clínico controlado e randomizado com intervalo de confiança estreito; e a evidência de nível 1C é composta por resultados terapêuticos do tipo “tudo ou nada”;

GRAU DE RECOMENDAÇÃO B: aqui temos as evidências de nível 2 (2A, 2B, 2C) e nível 3 (3A e 3B). Sendo assim, a evidência de nível 2A é composta pela revisão sistemática de estudos de coorte; a evidência de nível 2B é composta por estudo de coorte, incluindo ensaio clínico randomizado de menor qualidade; a evidência de nível 2C é composta pela observação de resultados terapêuticos e estudos ecológicos; a evidência de nível 3A é composta pela revisão sistemática de estudos caso-controle; e, finalmente, a evidência de nível 3B é composta por estudo caso-controle;

GRAU DE RECOMENDAÇÃO C: apenas evidência de nível 4, ou seja, relato de caso, incluindo coorte ou caso-controle de menor qualidade, enquadram-se nessa categoria;

GRAU DE RECOMENDAÇÃO D: apenas evidência de nível 5, ou seja, opinião desprovida de avaliação crítica (opinião pessoal) ou baseada em matérias básicas, como estudos fisiológicos ou com animais.

 

REPITO: sua “opinião pessoal”, por mais estudado, graduado, inteligente e influenciador que você seja em um grupo ou comunidade, tem pouco ou menor relevância para a ciência. Neste sentido, você imagina a “opinião pessoal” de um indivíduo que nem possui graduação na área de saúde, mas quer dar “pitacos” em assunto relacionados a nutrição, alimentação, medicina, farmacologia, imunologia, etc.?

 

Pois bem, elucidando este assunto, voltamos ao estudo: a revisão sistemática e meta-análise, publicada em 2021, usou 32 estudos, publicados entre 2007 e 2018, onde 20 estudos (62,5%) foram publicados nos últimos 5 anos (2015-2018). Destes, 7 estudos eram evidência nível 1 (maior nível de evidência); 1 estudo de evidência de nível 2; e 24 estudos de nível 4 (menor grau de evidência). Ainda, 19 estudos não eram comparativos, enquanto que 13 estudos eram comparativos. Entre os comparativos, 7 estudos eram ensaios clínicos randomizados (RCT, portanto, excelentes) e 6 eram estudos transversais (ou seja, um tipo estudo observacional que não permite estabelecer causalidade). Somando todos os indivíduos presentes nos estudos, temos 96.549 indivíduos.

Essa revisão sistemática e meta-análise, publicada na Sports Health (2021), utilizou três bancos de dados: PubMed, Embase e Medline. Foram excluídos, portanto, as revisões bibliográficas, os pareceres (conferência e opinião de especialistas), os relatórios de casos, os guias técnicos, os estudos que não foram com humanos, os estudos cadavéricos ou biomecânicos e os estudos clínicos que avaliaram bebidas energéticas, porém que não foram relatados efeitos adversos após consumo das bebidas.

Além disso, a média de idade nesta revisão sistemática e meta-análise foi 15,2 anos (portanto, indivíduos jovens, embora oscilou de 11 a 63 anos a amostra estudada), sendo 52,1% do sexo masculino (47,9% do sexo feminino). As marcas de bebidas energéticas mais consumidas foram: Red Bull (27,2%), Monster Energy (23,1%) e Full Throttle Energy (7,1%). A frequência de consumo das bebidas alcoólicas foi 1 vez por semana (76,4%), mas também havia pessoas que usavam mais de 5 vezes por semana. Além disso, 13 estudos mostraram existir co-ingestão de bebidas energéticas com consumo de álcool.

Enfim, vamos falar dos resultados? KEEP CALM (mantenha a calma), pois antes de continuar apresentando o estudo científico fiz meu “dever de casa”, ou seja, fui pesquisar a composição/ingredientes das bebidas energéticas citadas no estudo. Vejam que interessante:

 

INGREDIENTES DAS BEBIDAS ENERGÉTICAS

Existem vários modelos de Red Bull, embora essencialmente possuem os mesmos componentes com quantidades diferentes. Vejamos:  

Red Bull Energy Drink (tradicional): cafeína, taurina, vitaminas do complexo B, açúcares e água dos Alpes (NOTA: água dos Alpes? O que é isso? É mais pura? Rica em minerais? OK, sem comentários, rsrs).

Red Bull Sugarfree: cafeína, vitaminas do complexo B, taurina, sucralose, acessulfame K e água dos Alpes.

Red Bull Açaí Edition: cafeína, vitaminas do complexo B, açúcares, taurina e água dos Alpes.

Red Bull Tropical Edition: cafeína, vitaminas do complexo B, açúcares, taurina e água dos Alpes.

Red Bull Coconut Edition: cafeína, vitaminas do complexo B, açúcares, taurina e água dos Alpes.

Red Bull Summer Edition: cafeína, vitaminas do complexo B, açúcares, taurina e água dos Alpes.

 

O Monster Energy Drinks possui muitos componentes/ingredientes, realmente muitos, então segura:

·       Água carbonada (água infundida com gás carbônico);

·       Açúcar (embora adição de adoçantes também é possível);

·   Sabores naturais: refere-se aos “sabores naturais” advindo do extrato, óleo essencial, destilado ou qualquer aromatizante de planta;

·       Taurina (que é um aminoácido);

·       Citrato de sódio (sal de sódio do ácido cítrico);

·       Extrato de Ginseng panax (extrato de ginseng, simplesmente);

·   L-carnitina: substância naturalmente encontrada no organismo, formado pelos aminoácidos lisina e metionina, bem como niacina (B3), piridoxina (B6), vitamina C e ferro;

·       L-tartarato (ácido tartárico, que possui função antioxidante);

·     Cafeína (obviamente não poderia faltar, sendo um ingrediente estimulante sempre presentes nas bebidas energéticas);

·       Ácido ascórbico (ou seja, vitamina C);

·       Ácido benzoico (conservante, um agente de ligação de nitrogênio);

·       Niacinamida (nicotinamida ou vitamina B3);

·       Sucralose (que é 600 vezes mais doce que o açúcar de mesa);

·    Sal (eletrólito normalmente encontrado em bebidas energéticas, especialmente para repor as perdas derivadas da sudorese em pessoas submetidas ao exercício prolongado);

·       Inositol (vitamina B8);

·       Extrato de guaraná (estimulante, guaranina);

·       Cloridrato de piridoxina (vitamina B6);

·       Riboflavina (vitamina B2);

·       Cianocobalamina (vitamina B12);

·       Maltodextrina (carboidrato simples).

 

Ufa, como foi dito, Monster Energy Drinks tem muitos ingredientes, sendo, portanto, uma verdadeira “bomba” (no sentido “figurado”, é claro). É plausível esperar efeitos adversos com o consumo desta bebida repleta de ingredientes? Não se engane, ou seja, ter vitaminas não significa ser essencialmente nutritivo e saudável. Vejam, inúmeros biscoitos recheados também possuem vitaminas, mas não são exatamente saudáveis. Alguns alimentos poderiam ser classificados como “falso-saudáveis”, mas isso deixaremos para outro post.

 

E, finalmente, vejamos a composição/ingredientes Full Throttle Energy:

·       Água carbonada;

·     Frutose (high corn syrup, ou seja, elevado conteúdo de frutose advindo do xarope de milho e não da cana-de-açúcar ou beterraba);

·       Sabores naturais e artificiais;

·       Ácido cítrico;

·       Açúcar;

·       Citrato de sódio;

·       Benzoato de sódio;

·       D-ribose;

·       Cafeína (olha ela aí novamente);

·       Niacinamida (B3);

·       D-pantetonato de cálcio (B5);

·       Piridoxina (B6);

·       Cobalamina (B12).

 

Como podemos observar, a cafeína está sempre presente nas bebidas energéticas. E o aporte energético (kcal) destas bebidas? Vejamos:

Red Bull Energy Drink: 80 mg de cafeína em 250 ml (lata). Essa bebida tem 116 kcal/lata.

Monster Energy: 80 mg de cafeína por porção ou 160 mg por lata de 473 ml. Essa bebida tem 93 kcal/lata.

Full Throttle Energy: 160 mg de cafeína por lata (473 ml). Essa bebida tem 46 kcal/lata.

 

Com base nisso, podemos voltar ao estudo relatando os efeitos adversos encontrados na revisão sistemática e meta-análise.

 

EFEITOS ADVERSOS (SOMATÓRIO DA POPULAÇÃO PEDIÁTRICA E ADULTA) APÓS CONSUMO DE BEBIDAS ENERGÉTICAS:

 

Sistema cardiorrespiratório:

26,2% = elevada frequência cardíaca (FC)

20,0% = taquicardia, palpitação

10,3% = dor torácica

13,8% = dispneia

4,3% = arritmia

Sistema gastrintestinal:

18,7% = náusea, vômito, diarreia

17,3% = perda apetite

14,6% = dor abdominal

Reação alérgica: 1,9%

Relatos de tensão ou dor muscular: 14%

Eventos neurológicos:

36,9% = redução na coordenação motora

32,0% = discurso arrastado, dificultoso

29,7% = dificuldade na caminhada, deambular

18,4% = dor de cabeça/cefaleia

12,3% = tontura

12,3% = distúrbio visual

11,4% = tremores

1,1% = convulsão

Outros efeitos adversos:

34,5% = insônia, sono

34,5% = discurso rápido, fala rápida

25,1% = nervosismo, inquietação

18,6% = desidratação

Eventos psicológicos:

35,4% = estresse

24,0% = irritabilidade

23,1% = agitação, ansiedade, nervosismo

23,0% = humor depressivo

19,8% = ideação, plano ou tentativa suicida

Eventos relacionados aos rins:

13% = urinação frequente

0,8% = “dor nos rins" (o que seria dor nos rins, segundo estudo?)

 

Os efeitos adversos apenas na população pediátrica (ou seja, sem somar pediatria e adultos) incluem: insônia (35,4%), estresse (35,4%) e depressão (23,1%). Já em adultos (sem somar pediatria e adultos) temos: insônia (24,7%), nervosismo, inquietação e tremores (29,8%) e distúrbios gastrintestinal (21,6%).

Em minhas aulas de Nutrição e Atividade Física, tanto na graduação, quanto pós-graduação, quando abordava Recursos Ergogênicos – Emagrecimento e Redução da Fadiga, sempre comentava os principais efeitos adversos da cafeína presente suplementos esportivos: taquicardia, dilatação da pupila, aumento da pressão arterial, aumento da frequência cardíaca, arritmia, inquietação, tremores, ansiedade, nervosismo, alucinação, insônia, aumento do volume urinário e secreção aumentada de ácido gástrico. Alguns pacientes também desenvolvem o “vício da cafeína”. Cabe lembrar, também, que em casos de overdose de cafeína, o indivíduo pode evoluir para desmaio, convulsão e, até mesmo, óbito.

Peraí, o que podemos concluir neste momento?

PRIMEIRA CONCLUSÃO:

De forma geral, quando somamos a população pediátrica e adultos, neste estudo (Sports Health, 2021), com 96.549 indivíduos, os efeitos adversos mais frequentes envolvem o sistema cardiorrespiratório, incluindo elevada frequência cardíaca (FC) e taquicardia; seguido do sistema gastrintestinal, incluindo dor abdominal, náusea, vômito, diarreia e perda apetite. Isso lhe parece familiar? Os achados neurológicos também chamam a atenção, incluindo dor de cabeça (cefaleia), discurso arrastado ou dificultoso, dificuldade na caminhada e redução da coordenação motora. Se você fez ingestão de bebidas energéticas, já passou por isso? Não podemos deixar de mencionar a frequência expressiva de insônia, discurso rápido e nervosismo ou inquietação. Curiosamente (e preocupante), temos o achado de tentativa e pensamento suicida quando a ingestão de bebidas energéticas era elevada (5 ou mais vezes por semana). Igualmente preocupante foi o achado, no estudo, do uso concomitante de bebidas energéticas com bebidas alcoólicas, que poderia estar associado aos desfechos psicológicos indesejáveis (irritabilidade, agressividade, agitação, nervosismo).  

 

Beleza, mas acho que falta uma pergunta: porque as pessoas recorrem a ingestão de bebidas energéticas?

Segundo o estudo (e parece óbvio), seu uso pode ser explicado para alívio do cansaço físico e mental, aumentar a concentração para estudar, evitar o sono e, até mesmo, ajudar no emagrecimento. O uso de cafeína para a redução da percepção de fadiga e emagrecimento é evidente entre esportistas e atletas, ou seja, busca-se uma vantagem ergogênica da cafeína.

A lista de efeitos adversos com uso de cafeína (em altas doses), como foi visto, é imensa. Todavia, apenas 3 estudos nessa revisão sistemática com meta-análise mostraram a necessidade de atendimento médico em pacientes, o que seria um total de 165 pessoas (1,7%). Ainda, ninguém evoluiu para o óbito. A maioria dos efeitos adversos foi associado a intoxicação por cafeína acima de 400 mg ou 6,5 mg/kg/dia. Penso, contudo, que outros ingredientes poderiam contribuir para os efeitos adversos, afinal são muitos ingredientes em apenas uma “latinha” de energético. Segundo autores, as bebidas energéticas estudadas tinham 50 a 505 mg cafeína por lata ou garrafa (opa, realmente 505 mg de cafeína é uma “dose cavalar”, ou seja, excessiva).

 

Peraí, mas qual dose de cafeína poderia ser ingerida pelas pessoas?

Lembrando, o Red Bull Energy Drink tinha 80 mg de cafeína (lata: 250 ml), o Monster Energy tem 160 mg de cafeína por lata (lata: 473 ml) e o Full Throttle Energy tem 160 mg de cafeína (lata: 473 ml). Se você ingerir 2 latas de Monster Energy ou Full Throttle Energy, teria 320 mg de cafeína, enquanto que em 2 latas de Red Bull teríamos 160 mg de cafeína. Isso é muito? Isso é pouco?

No exercício e no esporte, a recomendação de cafeína pode oscilar de 3 a 4 mg/kg/dia, embora algumas pessoas, simplesmente, consomem 240, 390, 505 e, até mesmo, 600 mg de cafeína. Seu consumo, nestas situações, ocorre sem critério de gênero, peso corporal ou recomendação de um profissional de saúde. Vejamos, portanto, um cálculo simples:

Um indivíduo de 85 kg, do sexo masculino, devidamente ativo (não necessariamente atleta de alto desempenho), poderia ingerir 255 a 340 mg/dia de cafeína (ou seja: 85 kg x 3 mg = 255 mg/dia; 85 kg x 4 mg = 340 mg/dia).

Uma mulher de 55 kg, acostumada com treinamento (aeróbio e/ou anaeróbio), várias vezes por semana, poderia consumir apenas 165 a 220 mg/dia (ou seja: 55 kg x 3 mg = 165 mg; 55 kg x 4 mg = 220 mg/dia).

Na revisão sistemática e meta-análise aqui apresentada, a intoxicação por cafeína ocorria quando a ingestão era de 6,5 mg/kg/dia ou 400 mg de cafeína em dose única. Recalculando:

Aquele homem de 85 kg estaria ingerindo uma dose tóxica se a ingestão fosse de 552,5 mg/dia de cafeína (ou seja: 85 kg x 6,5 mg = 552,5 mg/dia).

Aquela mulher de 55 kg estaria ingerindo uma dose tóxica se a ingestão fosse de 357,5 mg/dia de cafeína (ou seja: 85 kg x 6,5 mg = 357,5 mg/dia).

Entendeu? Vamos comparar agora:

O homem de 85 kg deveria ingerir, no máximo, 340 mg/dia de cafeína. Uma dose considerada tóxica seria de 552,5 mg/dia de cafeína. Ou seja, uma diferença de 212,5 mg de cafeína.

A mulher de 55 kg deveria ingerir, no máximo, 220 mg/dia de cafeína. Uma dose considerada tóxica seria de 357,5 mg/dia de cafeína. Ou seja, uma diferença de 137,5 mg de cafeína.

Eu diria, em minha experiência clínica, que homens e mulheres, submetidos ao exercício e esporte, poderiam se beneficiar com 100 a 220 mg/dia de cafeína (sim, você não precisaria mais que isso), não havendo necessidade de aproximar de 400 mg/dia de cafeína. Além disso, você não deve esquecer que outras bebidas e comidas também possuem cafeína em sua composição e pode não estar sendo contabilizada. Por exemplo, um cafezinho expresso (150 ml) tem entre 125 a 165 mg de cafeína. Imagine uma situação bastante comum: um indivíduo ingere um cafezinho expresso (150 ml) para “acordar” pela manhã (digamos: 8 horas). Porém, sente-se cansado, desanimado, e ingere uma bebida energética (160 mg de cafeína por lata) como pré-treino para “ficar ligado” (digamos: 10 horas). Quer dizer, a meia-vida da cafeína nem chegou ao seu final, mas o indivíduo já ingeriu 285 a 325 mg de cafeína (ou seja: 125 + 160 = 285 mg; 165 + 160 = 325 mg), entendeu? 

Além disso, os refrigerantes, tipo Coca-Cola, tem 19 mg de cafeína, enquanto que a Coca-Cola light tem 26 mg de cafeína. O chocolate escuro pode conter 20 mg de cafeína. Aliás, uma grande parcela dos suplementos pré-treino (pre-workout), termogênicos “queimadores de gordura” (fat burners) e estimulantes (stimulants) possuem cafeína em sua composição. Então, qual o resultado deste excesso todo de cafeína diariamente? Cabe destacar, também, que alguns suplementos esportivos importados possuem 1,3-N-dipropil-7-propargilxantina, que é um análogo sintético da cafeína, sendo até 100 vezes mais potente que a mesma e, portanto, os efeitos adversos podem ser ainda mais acentuados.

AHHH, só para não deixar passar, caso você seja um atleta competitivo, o Comitê Olímpico Internacional (COI) considera Doping quando encontrar a cafeína na taxa de 12 microgramas por mililitros de urina (12 mcg/mL). Para facilitar o entendimento, isso equivalente ao consumo aproximado de 9 mg/kg/dia de cafeína (embora eu ficaria atento a dose de 6,5 mg/kg/dia, que já traz efeitos adversos).

 

Peraí, o que podemos concluir neste momento?

SEGUNDA CONCLUSÃO:

Essa revisão sistemática e meta-análise, publicada na Sports Health, em 2021, possui pontos fortes e fracos. Os pontos fortes incluem utilização de estudos com evidência de nível 1 a 4, onde os estudos foram coletados em 3 banco de dados distintos (PubMed, Embase e Medline). Em outras palavras, estamos falando de ciência e não aceitando sua “opinião pessoal”. Todavia, os pontos fracos ou limitações são: a maioria dos estudos são transversais (portanto, observacionais, que não podem estabelecer causalidade) e, além disso, a maioria da população estudada era jovem (menos de 19 anos de idade).

 

Ainda quero, obviamente, falar da bioquímica da cafeína (sim, sou o fanático da bioquímica, rs). Todavia, lembrei que as pessoas podem confundir facilmente “efeito adverso” e “efeito colateral”. Neste caso, é importante esclarecer estes conceitos:

Efeito adverso refere-se as respostas indesejadas ou prejudiciais à saúde com o consumo de determinadas substâncias ou fármacos. Este termo é condizente com a “Reação Adversa ao Medicamento” (RAM), que é um termo consagrado na farmacovigilância, segundo Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os efeitos relatados nesta revisão sistemática com meta-análise são efeitos adversos, portanto, indesejáveis e prejudiciais à saúde. Você pode gostar de “ficar ligado”, ter uma palpitação extra no treino, suar excessivamente e, até mesmo, sentir imensa inquietação e vontade de gritar: “Fé, Foco e Força”, após ingerir cafeína. Porém, cuidado: estes podem ser efeitos adversos, dependendo da dose de cafeína administrada.   

Efeito colateral é qualquer resposta diferente do organismo em virtude da substância/fármaco utilizado. Em outras palavras, o efeito adverso pode ser bom/benéfico ou indiferente, mas não necessariamente indesejável/ruim. O termo efeito colateral foi muito usado no passado para descrever efeitos negativos ou não favoráveis, o que é incorreto, pois também carrega efeitos positivos ou favoráveis. O efeito colateral, portanto, não é sinônimo de efeito adverso ou reação adversa. Se você ingeriu cafeína, em doses usuais ou recomendadas, e sentiu-se alerta, disposto, pode ser um efeito colateral (e, veja, não é algo ruim). Outra pessoa pode ingerir cafeína, mesmo em doses não elevadas, e sentir desconforto abdominal. Neste caso, temos um efeito colateral, aparentemente ruim, mas não exatamente tóxico. Uma terceira pessoa, por sua vez, pode ingerir cafeína pela “boca, olhos e narizes”, por assim dizer, e não sentir absolutamente nada. Quer dizer, o uso de cafeína, para essa pessoa, é indiferente.

 

Agora, considerando que a cafeína é o ingrediente comum nas bebidas energéticas, bem como bebidas esportivas, não seria legal entender seu mecanismo de ação? Claro que SIM e, neste caso, vamos à bioquímica.

 

MECANISMO DE AÇÃO DA CAFEÍNA

A cafeína (1,3,7-trimetilxantina) é o componente mais comum nas bebidas energéticas e esportivas. A cafeína possui rápida absorção intestinal e, consequentemente, rápido pico de concentração na corrente sanguínea (15 a 30 minutos). Ao mesmo tempo, a cafeína é metabolizada no fígado em três metilxantinas: paraxantina (1,7-dimetilxantina), teofilina (1,3-dimetilxantina) e teobromina (3,7-dimetilxantina). Para sua metabolização, destaca-se o citocromo P450, essencialmente a isoforma CYP1A2 nos hepatócitos.

Como sabemos, a cafeína é um estimulante do sistema nervoso central (SNC) e, dessa forma, reduz a percepção da fadiga. Este fato, obviamente, justifica seu uso por indivíduos sedentários, esportistas e atletas. Quer dizer, as pessoas buscam o alívio da fadiga, evitar a sonolência e aumentar a concentração para treinar e/ou estudar com o uso da cafeína.

A cafeína é um antagonista dos receptores de adenosina (substância envolvida no sono, por exemplo), o que resulta na liberação aumentada de dopamina (DA), norepinefrina (NE) e serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT) no cérebro. Quer dizer, a cafeína é um antagonista dos receptores A1 e, portanto, ao impedir sua interação com a adenosina, aumenta os níveis de adenosina monofosfato cíclico (AMPc). Este fato, promove a liberação aumentada de catecolaminas. Um aumento de dopamina (DA) está relacionado a sensação de prazer, enquanto que aumento de norepinefrina (NE) estimula o processo lipolítico, favorecendo a lipólise e emagrecimento. Além disso, a cafeína inibe a fosfodiestarase em adipócitos, que converte AMPc em 5'-AMP. Em outras palavras, AMPc (que não foi degradada) ativa proteína quinase A (PKA) e, em seguida, ativa a lipase hormônio sensível (LHS). A LHS promove a hidrólise dos triacilgliceróis ou triglicerídeos (TG) em ácidos graxos e glicerol.  Os ácidos graxos resultantes são oxidados na beta-oxidação mitocondrial para a geração de energia (ATP).

Você conhece os receptores de adenosina? Adenosina é uma molécula de sinalização intracelular, onde existem 4 tipos de receptores da adenosina: A1, A2A, A2B e A3. Os receptores A1 e A3 interagem com a proteína G (família Gi), inibindo adenilil ciclase (A.C.) e, consequentemente, reduzindo AMPc intracelular. A sinalização dos receptores A2A e A2B envolvem outras famílias de proteína G (Gs e G0) que, neste caso, estimulam A.C. e aumentam AMPc. Como vimos, a cafeína é um antagonista dos receptores A1, ou seja, bloqueia os receptores A1. Dessa forma, teremos aumento do AMPc (ao invés de redução), pois deixamos a A.C. (enzima) livre para ação catalítica (ATP para AMPc). A partir daí você já conhece e vamos resumir a equação:

CAFEÍNA ® AUMENTO DE AMPc ® ATIVA PKA ® ESTIMULA LHS ® PROMOVE LIPÓLISE NO TECIDO ADIPOSO ® ÁCIDOS GRAXOS CIRCULANTES ® OXIDAÇÃO DE ÁCIDOS GRAXOS ® EMAGRECIMENTO.

Cafeína também inibe FOSFODIESTARASE em adipócitos (AMPc não é convertido em 5'-AMP) e, dessa forma, tudo se repete: AMPC, PKA, LHS, lipólise e beta-oxidação de ácidos graxos nas mitocôndrias dos músculos esqueléticos.

 

TERCEIRA (E ÚLTIMA) CONCLUSÃO:

A cafeína é uma excelente substância presente na vida dos sedentários, esportistas e atletas. É encontrada em diversas bebidas e alimentos, mas também pode ser administrada isoladamente, geralmente na forma de cápsulas. Tudo que você precisa, ao meu ver, seria usar racionalmente a cafeína. As bebidas energéticas, que foi o foco deste post, também precisa administrada com moderação e racionalidade. Enfim, é simples assim!

 

Se gostou, compartilha, desde que citado a fonte: Prof. Nutr. Joelso Peralta (https://peraltanutri.blogspot.com/).

terça-feira, 24 de maio de 2022

EPILEPSIA: BIOQUÍMICA, MEDICAMENTOS E DIETA

EPILEPSIA: BIOQUÍMICA, MEDICAMENTOS E DIETA

Joelso Peralta, Nutricionista, Mestre, Doutorando.

 

Olá pessoal, tudo bem? Estou um tanto enferrujado, sumido, desaparecido aqui nos posts, devido outras tarefas/compromissos e estudos relacionados ao meu doutorado. Contudo, no Facebook (Joelso Peralta) e Instagram (@peraltanutri) consigo fazer posts rápidos, caso queiram acompanhar. Ao mesmo tempo, gosto de “textão” e hoje vamos falar de EPILEPSIA, especificamente sobre os mecanismos bioquímicos na epilepsia. Existem dois momentos em que tive contato, tecnicamente falando, com essa doença. A primeira foi em 2012, quando orientei o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de graduação em Nutrição da aluna Gabrielle Ferreira Gazzo. O TCC chamava-se: “Papel Neuroprotetor da Dieta Cetogênica no Controle da Epilepsia em Pacientes Jovens”. O segundo momento foi recentemente (03/05/2022), durante uma disciplina de Elaboração de Artigo Científico (PPG em Farmacologia e Terapêutica-UFRGS). Nessa ocasião, eu e outro colega apresentamos um seminário relacionado ao seguinte artigo científico: “Um estudo sobre a atividade convulsiva otimizada em Caenorhabditis elegans para identificar drogas antiepilépticas e seus mecanismos de ação”. Caenorhabditis elegans (C. elegans) é um nematódeo (nematelminto), popularmente conhecido como lombriga, mas falaremos deste estudo mais adiante. Dessa forma, sinto-me confortável em abordar esse interessante assunto, porém trazendo algumas atualizações e novidades. Espero que gostem e, se compartilhar, favor citar a fonte!


INTRODUÇÃO

Epilepsia é uma doença em que ocorre perturbação na atividade das células nervosas, temporárias e reversíveis, com manifestações motoras, sensitivas e/ou psíquicas, ocorrendo na forma de crises repetidas, comumente chamadas de ataques epilépticos, segundo o Código Internacional de Doenças (CID-10, G40). Ou, ainda, epilepsia é um distúrbio cerebral que resulta no desenvolvimento de redes neuronais predispostas à ocorrência e recorrência de crises epilépticas sintomáticas.

A epilepsia é uma das condições neurológicas mais prevalentes e acomete cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Existem, atualmente, mais de 20 medicamentos antiepilépticos (AEDs, antiepileptic drugs) aprovados para uso na doença. Todavia, estes medicamentos não “curam” a epilepsia, mas apenas aliviam as convulsões. Estes medicamentos também são incapazes de prevenir a epileptogênese. Segundo Alexandre Valotta da Silva e Francisco Romero Cabral em 2008 (Ictogênese, epileptogênese e mecanismo de ação das drogas na profilaxia e tratamento da epilepsia. J Epilepsy Clin Neurophysiol 14(Suppl 2):39-45, 2008), epileptogênese é o processo no qual um cérebro previamente assintomático torna-se capaz de gerar crises epilépticas espontâneas. Além disso, 70% dos pacientes respondem ao tratamento com AEDs, porém 30% restantes são refratários aos medicamentos disponíveis. Quer dizer, existem pacientes que resistem as melhorias clínicas ou que obtiveram resultados pouco satisfatórios, mesmo após terem recebido o tratamento farmacológico e, até mesmo, psicossocial.

Com base nisso, surgem as perguntas:

O que causa epilepsia?

Qual mecanismo bioquímico poderia explicar a epilepsia?

Como funcionam os medicamentos antiepilépticos (AEDs, antiepileptic drugs) na doença?

Que relação existe entre epilepsia e dieta cetogênica?

E, finalmente, porque estudar o verme Caenorhabditis elegans (C. elegans) para identificar drogas antiepilépticas?

 

O QUE CAUSA EPILEPSIA?

Não existe uma única explicação para justificar a etiologia da epilepsia, sendo, portanto, multifatorial. Contudo, aceita-se que o mecanismo envolva um desequilíbrio entre os sinais inibitórios e excitatórios no sistema nervoso central (SNC). Ocorre, então, uma hiperexcitabilidade neuronal, conduzindo as chamadas crises epilépticas. Outras causas podem ser levantadas: dano cerebral por lesões pré-natais ou perinatais; dano cerebral em decorrência de traumatismo na infância, adolescência ou vida adulta; anormalidades congênitas ou malformações cerebrais; decorrente de acidentes vasculares cerebrais (AVC), tumores cerebrais e malformações vasculares em nível cerebral; e em decorrência de doenças metabólicas e infecciosas (meningite, encefalite e neurocisticercose). Meningite é uma inflamação das meninges, uma membrana protetora que reveste o cérebro e medula espinal. Encefalite é o termo utilizado para se referir a inflamação do cérebro. Neurocisticercose é uma parasitose que afeta o SNC, causado pela Taenia solium (tênia da carne de porco). Até mesmo a febre alta, em uma ou outra ocasião na vida do indivíduo, pode causar epilepsia. Enfim, como foi dito, não existe uma única explicação para explicar a causa da epilepsia, mas aqui vamos nos deter aos mecanismos bioquímicos.


QUAL MECANISMO BIOQUÍMICO PODERIA EXPLICAR A EPILEPSIA?



O impulso nervoso (IN) se propaga pelo neurônio pré-sináptico para o pós-sináptico, onde é liberado o ácido g-aminobutírico (GABA) pelas vesículas transportadoras. GABA é o principal neurotransmissor (NT) inibitório do sistema nervoso central (SNC), enquanto que glutamato (Glu) é o principal excitatório. Para tanto, GABA é liberado na fenda sináptica, onde se liga aos receptores ionotrópicos GABA-A do neurônio pós-sináptico, cujo alteração conformacional do receptor causa a abertura dos canais de cloro (Cl). O influxo (entrada) de íons cloro dentro dos neurônios pós-sinápticos deixa o neurônio hiperpolarizado (ou seja, demasiadamente em repouso, onde a membrana apresenta cargas negativas no meio interno e positivas no meio externo). A hiperpolarização faz com que a despolarização (estado estimulado) fique mais difícil de ocorrer, o que dificulta a propagação do IN. Claro, também podemos observar abertura dos canais de potássio (K+) no neurônio pós-sináptico, ou seja, enquanto cloro entra (influxo), os íons potássio saem (efluxo), o que resulta em hiperpolarização (neurônio em repouso). Certamente essa explicação, envolvendo o GABA e canais de cloro e potássio, é a mais comum encontrada na literatura. Todavia, vamos complicar, bioquimicamente, um pouquinho mais (rs) (AHHH, a figura acima é de autoria própria, pois gosto de montar minhas próprias ilustrações bioquímicas).

Ao mesmo tempo, aqueles GABAs que não foram usados para exercer sua função inibitória no SNC podem ser recaptados pelo neurônio pré-sináptico pelo transportador-1 de GABA (GAT-1) ou podem ser capturados pelas células gliais pelo transportador-3 de GABA (GAT-3). GABA recaptado por GAT-1 são incorporados nas vesículas transportadoras para uso futuro, enquanto que GABA captado pelas células gliais seguem uma rota metabólica complexa. Neste momento, pegue um copo de água ou café, pois a explicação será longa. Vamos lá?

Quer dizer, na célula glial, GABA é degradado em semialdeído succínico pela transaminase do GABA (GABA-T) e, em seguida, é oxidado em succinato, que é um componente do ciclo de Krebs (ciclo dos ácidos tricarboxílicos, ciclo TCA) na mitocôndria. Essa reação (semialdeído succínico para succinato) é catalisada pela succinato semialdeído desidrogenase (SSADH). Succinato poderia ser usado no ciclo de Krebs, que tem como função produzir equivalentes reduzidos (NADH e FADH2) com liberação de dióxido de carbono (CO2), que é acoplado a geração de energia (adenosina trifosfato, ATP) pela cadeia oxidativa mitocondrial transportadora de elétrons (COMTE) ou, simplesmente, cadeia respiratória. Todavia, succinato acaba gerando a-cetoglutarato (a-KG), que transamina para formar glutamato (Glu) por uma transaminase (aminotransferase). O Glu, gerado pelo processo de transaminação, forma glutamina (Gln) pela glutamina sintetase (Gln-sintetase). A Gln, então, é encaminhada ao neurônio pré-sináptico. Peraí, pois não acabou!  

Recapitulando, GABA que adentrou na célula glial acaba gerando Glu, que forma Gln. Gln é transportado da célula glial para o neurônio pré-sináptico, onde volta a ser Glu pela glutaminase. Como já sabemos, GABA é inibitório, enquanto que Glu é excitatório do SNC. Enfim, Glu é convertido em GABA pela descarboxilase do ácido glutâmico (GAD). Ou seja, os estoques de GABA nas vesículas transportadoras são repostas por essa interação entre a célula glial e o neurônio pré-sináptico. Agora você já conhece a trajetória: GABA é liberado na fenda sináptica para interagir com receptores GABA-A do neurônio pós-sináptico, exercendo sua função inibitória do SNC.

Além disso, existem outros receptores de GABA que merecem menção. Os neurônios pós-sinápticos possuem apenas receptores GABA-A (que abrem canais de cloro), enquanto que os receptores GABA-B podem ser encontrados em neurônios pré e pós-sinápticos. Os receptores GABA-A, quando ativados, abrem canais de cloreto (influxo de íons de cloro), causando hiperpolarização (repouso em demasia). Consequentemente, também teremos abertura dos canais de potássio (efluxo dos íons potássio) no neurônio pós-sináptico. Os GABA-B (metabotrópicos) estão ligados a proteína G (ptnG) e permitem a abertura dos canais de cálcio (Ca+2) nos neurônios pré-sinápticos e canais de potássio (K+) nos neurônios pós-sinápticos. Os receptores GABA-B, quando ativados nos terminais pré-sinápticos, reduzem a liberação de GABA (ou seja, uma espécie de feedback negativo ao observar excesso de GABA na fenda sináptica). Com a abertura dos canais de potássio (hiperpolarização, repouso), evita-se a abertura dos canais de sódio no neurônio pré-sináptico. Peraí, creio que deu um “nó no cérebro” com tantos canais iônicos, portanto, vamos resumir essa sinalização elétrica:

Canais de sódio e cálcio abertos: permitem a entrada de Na+ e Ca2+, que conduzem a despolarização (neurônio estimulado).

Canais de potássio e cloro abertos: permitem a movimentação de K+ (saída) e Cl (entrada), que resulta em hiperpolarização (neurônio em repouso). 

 

Portanto, os mecanismos envolvidos nas crises epilépticas (ictogênese) devem-se ao desbalanço inibitório e excitatório (GABA e Glu) e seus receptores, que estão intimamente ligados aos canais iônicos (cloro, cálcio, potássio e sódio). Uma alteração nos canais de sódio e potássio (bomba de sódio-potássio), por exemplo, pode perturbar o limiar de disparo neuronal. Não discutiremos neste post os mecanismos de ação do glutamato (Glu), um neurotransmissor excitatório do SNC. Todavia, para melhor entendimento, cabe lembrar que o receptor de glutamato pode ser de três tipos: AMPA (ácido a-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazolpropiônico), NMDA (N-metil-D-aspartato) e cainato. Ao mesmo tempo, não discutiremos os genes envolvidos na epilepsia, mas cabe destacar que genes mutados levaria as alterações dos receptores e canais iônicos. Por exemplo, o gene unc-25 codifica a proteína GAD (que converte Glu em GABA), enquanto que o gene unc-49 codifica a proteína receptora GABA-A. Mutações nestes genes, portanto, podem prejudicar a síntese proteica de GAD e GABA-A e, obviamente, desencadear uma crise epiléptica. Como foi dito, o mecanismo para explicar a epilepsia é complexo. Neste ponto da conversa, certamente você já começou a pensar como os medicamentos antiepilépticos funcionam, não é mesmo?


COMO FUNCIONAM OS MEDICAMENTOS ANTIEPILÉPTICOS NA DOENÇA?

O tratamento da epilepsia se baseia na administração de fármacos e dieta cetogênica, bem como cirurgias em algumas situações. Os procedimentos cirúrgicos não serão aqui abordados. Os fármacos antiepilépticos (AEDs, antiepileptic drugs) vão, justamente, corrigir alguns dos problemas mencionados anteriormente, permitindo o equilíbrio entre os sinais inibitórios e excitatórios do SNC.

De acordo com Richard D. Howland e Mary J. Mycek (Farmacologia Ilustrada. Porto Alegre: ArtMed, 2007), os fármacos usados no tratamento da epilepsia podem ser “fármacos primários” (ácido valpróico, carbamazepina, clonazepan, clorazepato, diazepan, etossuximida, fenobarbital, fenitoína, lorazepam, oxcarbazepina e primidona) e “fármacos advujantes” (felbamato, gabapentina, lamotrigina, levetiracetam, tiagabina, topiramato e zonisamida). Sei que existem outras classificações, por exemplo: fármacos de primeira geração (fenobarbital, fenitoína, brometo de potássio e ácido valpróico), fármacos de segunda geração (carbamazepina, valproato e benzodiazepínicos) e fármacos de terceira geração (topiramato, brivaracetam e lacosamida). O objetivo aqui, contudo, não é apresentar os tipos de classificação, tão pouco discutir todos os fármacos antiepilépticos existentes, possíveis e em estudo na epilepsia. Portanto, abaixo vamos apresentar, em ordem alfabética, algumas drogas antiepilépticas apenas para ilustrar o mecanismo de ação discutido anteriormente.

 

ÁCIDO VALPRÓICO

O ácido valpróico (ácido-2-propilpentanóico) aumentando a transmissão GABAérgica no SNC, embora seu mecanismo de ação não esteja totalmente elucidado. Sugere-se que o ácido valpróico se dissocia no íon valproato no trato gastrintestinal e, este, inibe GATA-T (transaminase). Isso aumentaria as concentrações de GABA na fenda sináptica, pois não foi captado pela célula glial. Outros sugerem que sua ação se deve ao bloqueio dos canais de sódio e cálcio no neurônio pós-sináptico. Lembre-se, os canais de sódio e cálcio abertos permitem a entrada destes íons no neurônio pós-sináptico, que conduzem a despolarização do neurônio (estado estimulado), porém buscamos a hiperpolarização (estado de repouso) a fim de inibir o impulso nervoso (efeito inibitório do GABA). Lembre-se, também, que os canais de potássio e cloro abertos permitem a movimentação destes íons (saída de potássio e entrada de cloro), que resulta em hiperpolarização (neurônio pós-sináptico em repouso). Também se investiga sua influência em receptores de Glu tipo NMDA (N-metil-D-aspartato), ou seja, inibição de NMDA evitaria a ação excitatória do Glu.

CARBAMAZEPINA

A carbamazepina (5H-dibenzo-[b,f]-azepina-5-carboxamida) bloqueia os canais de sódio voltagem-dependente, reduzindo os potenciais de ação e estabilizando a hiperexcitação neuronal. Em outras palavras, carbamazepina bloqueia os canais de sódio no neurônio pré-sináptico, que resultaria em despolarização (estado estimulado). O impulso nervoso, portanto, não vai se propagar no sentido pré para o pós-sináptico. Além da carbamazepina, outros medicamentos exercem o mesmo mecanismo de ação: fenitoína, oxcarbazepina, acetato de eslicarbazepina, lamotrigina, lacosamida e zonisamida). 

ETOSSUXIMIDA

Etossuximida reduz a propagação da atividade elétrica anormal inibindo os canais de cálcio no neurônio pós-sináptico. Como vimos, os canais de cálcio (e sódio) abertos permitem a entrada deste íon conduzindo a despolarização do neurônio (estado estimulado). Aliás, voltarei a falar do etossuximida no estudo com Caenorhabditis elegans (C. elegans), referido no início deste post.

FELBAMATO

Algumas literaturas trazem o felbamato como fármacos advujantes na epilepsia. Seu mecanismo de ação deve-se ao bloqueio dos canais de sódio, mas também pode existir competição com receptores de glutamato do tipo AMPA e NMDA. Investiga-se, também, o bloqueio dos canais de cálcio pelo felbamato.

FENITOÍNA

Este já falamos no item sobre carbamazepina, mas vale comentários adicionais. A fenitoína (5-5-difenilmidazolidina-2,4-diona) é um fármaco de primeira escolha para adultos com crises epilépticas tônico-clônicas (chamadas de “grande mal”), cujo mecanismo de ação envolve o bloqueio dos canais de sódio voltagem-dependente, reduzindo os potenciais de ação e estabilizando a hiperexcitação neuronal. Ele se liga ao canal no estado inativo (polarizado), deixando mais lenta sua recuperação ou evitando a despolarização (impede o estado estimulado). O impulso nervoso do neurônio pré-sináptico em direção ao pós-sináptico, portanto, está bloqueado. Em doses maiores, também bloqueia os canais de cálcio.

FENOBARBITAL

O fenobarbital (5-etil-5-fenilpirimidina-2,4,6-triona) é indicado nas crises parciais simples e tônicas, potencializando os efeitos inibitórios do GABA através dos receptores GABA-A. Em outras palavras, a substância barbitúrica estimula os receptores GABA-A, permitindo o influxo de cloro no neurônio pós-sináptico, resultando em hiperpolarização neuronal (estado de repouso, onde o impulso nervoso está inibido). Barbitúricos e benzodiazepinas exercem esse estímulo sobre GABA-A. Além disso, acredita-se que o fenobarbital possa inibir a ação do Glu (que possui três tipos de receptores: AMPA, NMDA e cainato). O Glu, como vimos, exerce ação estimulatória sobre o SNC e sua inibição é vantajosa para reduzir as crises epilépticas. Afirma-se, também, que a droga aumente a sinalização pós-sináptica de receptores envolvendo os canais de cloreto (abertura dos canais de cloro), que resulta em hiperpolarização. Espera-se, ainda, menor receptação de GABA pelo GAT-1 do neurônio pré-sináptico, ou seja, teríamos mais GABA disponível na fenda sináptica.

GABAPENTINA

Gabapentina (2-[1-(aminometil)-ciclohexil]-ácido acético) é um análogo estrutural do GABA, o que também reduz as respostas excitatórias do Glu.

LAMOTRIGINA

Lamotrigina (6-(2,3-diclorofenil)-1,2,4-triazina-3,5-diamina) bloqueia canais de sódio, mas também suspeita-se ação sobre os canais de cálcio, ou seja, esse bloqueio não permite a entrada dos íons cálcio e sódio no neurônio pós-sináptico, o que evita a despolarização do neurônio (evita o estado estimulado, mantendo o estado de repouso). Ou, se preferir, a lamotrigina inibe a despolarização da membrana pré-sináptica glutaminérgica, o que reduz a liberação de Glu (que é um neuroquímico excitatório).

LEVETIRACETAM

Sua atividade antiepiléptica é um mistério, mas sugere-se bloqueio dos canais de cálcio (despolarização bloqueada, portanto, não há propagação do impulso nervoso no neurônio pós-sináptico). Neste caso, trata-se do mesmo mecanismo visto com etossuximida.

OXCARBAZEPINA

Assim como fenitoína e carbamazepina, a oxcarbazepina (10,11-diidro-10-oxo-5H-dibenzo-[b,f]-azepina-5-carbamida) bloqueia os canais de cálcio. Releia o item sobre carbamazepina para entender.

PERAMPANEL

Trata-se de um antagonista, não competitivo, do receptor de Glu do tipo AMPA, ou seja, evita a excitabilidade pelo neurotransmissor glutamato.

PREGABALINA

Assim como a gabapentina, este é um análogo sintético do GABA.

RETIGABINA

Retigabina ou ezogabina permite a abertura dos canais de potássio. Como vimos, os canais de potássio e cloro abertos permitem a movimentação destes íons (saída de potássio e entrada de cloro), que resulta em hiperpolarização (neurônio pós-sináptico em repouso).

TIAGABINA

Tiagabina bloqueia recaptação de GABA pelos neurônios pré-sinápticos, permitindo maior quantidade de GABA disponível para ligação com receptor GABA-A do neurônio pós-sináptico. Em outras palavras, permite mais GABA na fenda sináptica já que inibe GAT-1 em neurônios pré-sinápticos.

TOPIRAMATO

Topiramato (2,3:3,5-bis-O-(1-metiletilideno)-b-D-flutopiranosa) bloqueia canais de sódio voltagem-dependente, conduzindo a redução dos disparos espontâneos e diminuição dos potenciais de ação. Todavia, por mecanismos desconhecidos, topiramato também aumenta a ação GABAérgica. Estuda-se a inibição do receptor de Glu (tipo AMPA) para justificar aumento da ação GABAérgica.

ZONISAMIDA

Já vimos este no item sobre carbamazepina, ou seja, carbamazepina, fenitoína, oxcarbazepina, acetato de eslicarbazepina, lamotrigina, lacosamida e zonisamida bloqueiam os canais de sódio e cálcio, reduzindo os potenciais de ação e estabilizando a hiperexcitação neuronal. Espera-se redução na liberação do Glu e aumentando da função em receptores de GABA.

UFA! Como podem notar, existem muitas drogas antiepilépticas (AEDs, antiepileptic drugs), cujo objetivo não foi aprofundar na “bula” do medicamento, digamos assim. Meu objetivo apresentar inúmeras AEDs para ilustrar o mecanismo de ação da epilepsia previamente apresentado. Cabe lembrar que as AEDs apenas aliviam as convulsões (o que é fantástico), mas não “curam” a doença (infelizmente). Além disso, muitos efeitos adversos são documentados com o uso de um ou mais medicamentos: náusea, vômito, anemia megaloblástica, hiperplasia gengival, hirsutismo, ataxia, nistagmo, tremores, arritmias, queda de cabelo, irregularidades menstruais, ganho ponderal, edema, litíase renal e alterações na face. Neste sentido, o tratamento dietético e o papel do profissional nutricionista são fundamentais para garantir o aporte adequado de nutrientes ao paciente. Veremos, agora, o que sabemos sobre a dieta cetogênica na epilepsia.

 

QUE RELAÇÃO EXISTE ENTRE EPILEPSIA E DIETA CETOGÊNICA?

Então, orientar um TCC sempre foi uma atividade prazerosa para mim, especialmente quando nos deparamos com alunos(as) dedicados(as). Orientei, em 2012, um TCC bem legal: “Papel Neuroprotetor da Dieta Cetogênica no Controle da Epilepsia em Pacientes Jovens”, da aluna Gabrielle Ferreira Gazzo. Este foi um excelente exemplo de dedicação, o que resultou em um excelente trabalho. Infelizmente deixamos passar o “trem” da publicação, mas penso em resolver isso brevemente. Sendo assim, vamos os fatos que descobrimos no TCC.

O tratamento dietético, baseado na dieta cetogênica (ou seja, rica em gordura e proteína, mas pobre em carboidratos) traz melhorias em pacientes epilépticos jovens, embora com pouco ou sem sucesso em pacientes adultos. Embora muitos profissionais relatem benefícios da dieta cetogênica em seus pacientes jovens, muitos não sabem explicar o mecanismo responsáveis pela melhoria de saúde em pacientes epilépticos. Essa dúvida foi alimentando nossa curiosidade. Dessa forma, fizemos uma revisão da literatura entre 2002-2012 (já que o TCC foi orientado em 2012) em bases eletrônicas (Medline, Lilacs e Scielo) na busca de respostas, bem como recorremos aos livros didáticos. O que achamos? Beleza, continue lendo.

Primeiramente, a dieta cetogênica é rica em lipídeos e proteínas, mas pobre em carboidratos. Os lipídeos dietéticos, portanto, são degradados pela beta-oxidação dos ácidos graxos a fim de fornecer energia (ATP, adenosina trifosfato), mas também geram corpos cetônicos (cetogênese), que podem ser usados como combustíveis alternativos aos tecidos (cetólise), incluindo o cérebro. Os corpos cetônicos perfazem três componentes: beta-hidroxibutirato (BHB), acetoacetato e acetona.  Cabe lembrar que a cetogênese é um processo hepático e, dessa forma, seu fígado deve estar saudável. Os corpos cetônicos circulantes (cetonemia) são encaminhados aos tecidos para oxidação (cetólise), embora a acetona seja eliminada pela expiração (o que justifica o chamado “hálito cetônico” ou “hálito de maçã verde”). Entre 1920 e 1930, muitos estudos foram direcionados a dietoterapia na epilepsia com dieta cetogênica, onde foram observadas melhorias significativas em pacientes epilépticos jovens, incluindo redução no número de crises epilépticas. Claro, efeitos adversos também foram relatados nestas crianças: náusea, vômito e diarreia. Porém, em 1940 surgiram algumas drogas antiepilépticas, além da possibilidade do tratamento cirúrgico através da leitura de imagens. Obviamente que as melhorias foram acompanhadas de muitos efeitos adversos nestas crianças, afinal muitas drogas eram experimentais e o tratamento cirúrgico estava começando. Porém, os estudos avançaram entre 1940 e 1970.

Na década de 70, contudo, os estudiosos voltaram a enaltecer o tratamento da epilepsia através da dieta cetogênica. Será que a dieta cetogênica, isolada ou combinada com os novos medicamentos, poderia trazer melhorias significativas aos pacientes? Neste caso, a proporção gordura:proteína era de 3:1 (três vezes mais gordura do que proteína), enquanto que gordura:carboidrato é de 4:1 (quatro vezes mais gordura do que carboidrato). Embora as crises epilépticas parecem ser amenizadas com a dietoterapia, a pergunta permanecia: os efeitos benéficos observados devem-se ao excesso de lipídeos ou proteínas ou ambos? Será que os benefícios se devem a redução dos carboidratos, simplesmente? Outros questionamentos surgiram: um excesso proteico não poderia sobrecarregar o fígado e rins e, até certo ponto, causar malefícios nestas crianças? Os níveis elevados de uréia e as alterações no perfil lipídico, são problemas que merecem atenção especial? As alterações gastrintestinais, decorrentes da cetose e acidose metabólica, são problemas que necessitam interrupção do tratamento, afinal estamos falando de crianças? A reduzida ingestão de carboidratos, por longos períodos, poderia ser prejudicial ao cérebro? Como ficam as reservar energéticas de glicogênio (hepático e muscular) com o pequeno aporte de carboidratos nestas dietas? Enfim, muitas perguntas e poucas respostas. Também não abordarei todas as possíveis respostas aqui, pois não é o objetivo e deixaria nosso “textão” ainda maior.

Por fim, nossa investigação concluiu que a melhora clínica em pacientes epilépticos jovens estão relacionados ao BHB (beta-hidroxibutirato), um corpo cetônico, gerado pela cetogênese hepática, em virtude do excesso de lipídeos dietéticos. Como assim? Calma, vamos explicar: os corpos cetônicos são combustíveis alternativos ao cérebro, como sabemos. Em recém-nascidos e crianças, a oferta de lipídeos e a formação de corpos cetônicos poderia reverter a capacidade do SNC em utilizar glicose em virtude de lipídeos. Considerando que em bebês, cujo a única fonte dietética é o leite materno, rico em lipídeos, a explicação começa a fazer sentido. Já em crianças pós-desmame, é possível que uma dieta rica em lipídeos pudesse “ativar” as formas primitivas do metabolismo infantil para utilização preferencial de lipídeos e corpos cetônicos.

Claro, nosso estudo possui limitações. Quer dizer, nosso estudo é uma revisão da literatura e não testou experimentalmente qualquer marcador. Portanto, formulamos perguntas de pesquisa e hipóteses. Todavia, as hipóteses, em ciência, precisam ser testadas experimentalmente em modelos animais e humanos, o que não foi o objeto deste TCC. De qualquer forma, nosso estudo também possui pontos fortes. Ou seja, conseguiu explicar, pela primeira vez, qual o possível mecanismo para justificar as melhorias clínicas em pacientes epilépticos jovens submetidos à dieta cetogênica.

Agora, vamos a última pergunta, lembra?

 

PORQUE ESTUDAR O VERME CAENORHABDITIS ELEGANS (C. ELEGANS) PARA IDENTIFICAR DROGAS ANTIEPILÉPTICAS?

Um estudo publicado Shi Quan Wong et al., em 2018 (A Caenorhabditis elegans assay of seizure-like activity optmised for identifying antiepileptic drugs and their mechanisms of action. Journal of Neuroscience Methods 309: 132-142, 2018) pode nos responder essa pergunta. Trata-se de um estudo experimental que visava estudar a atividade convulsiva em Caenorhabditis elegans para identificar drogas antiepilépticas e seus possíveis mecanismos de ação.

OK, mas o que é Caenorhabditis elegans?

C. elegans é um nematódeo (nematelminto) do filo Nemathelminthes, popularmente conhecido como lombrigas. O “verme tipo minhoca”, transparente, com 1 mm de comprimento, hermafrodita, que vive em ambiente temperado, tem aparecido com frequência nos estudos. Os modelos tradicionais para o estudo da epilepsia são ratos, camundongos, mosca-da-flor (Drosophila melanogaster) e Zebrafish (peixe zebra ou peixe de água doce). Todavia, o uso de C. elegans nos estudos apresenta algumas vantagens: possui apenas 1500 sinapses, 302 neurônios e não possui sistema circulatório ou respiratório. Além disso, C. elegans tem um curto tempo de geração (3 dias) e vida útil (3 semanas). É altamente tratável/modificável geneticamente e, por fim, permite estudos de baixo custo com ausência de regulamentação ética. Claro, também existem desvantagens: não podemos facilmente extrapolar dados, especialmente para seres humanos, afinal são vermes, lombrigas.

Resumidamente, o que estudo de Shi Quan Wong et al. (2018) fez foi induzir convulsão (na realidade, induzir movimentos de cabeça ou cabeçadas; e de corpo inteiro, tipo extensão e retração) em C. elegans (cerca de 30 vermes por experimento) com o uso de pentilenotetrazol (PTZ, 7 mg/ml, já que os vermes foram protocolados em placas). O PTZ é um estimulador do SNC, considerado antagonista não competitivo do GABA. Quer dizer, PTZ é um agente convulsivo amplamente utilizado em modelos animais para investigações envolvendo crises convulsivas. Eu não diria, contudo, que os vermes tiveram epilepsia, mas, sim, “atividades semelhantes à convulsão”.

Os pesquisadores foram mais longe, pois modificaram geneticamente C. elegans para obter cepas mutadas nos genes unc-25 (que codifica GAD, descarboxilase do ácido glutâmico, enzima que converte glutamato em GABA), und-43 (que codifica a proteína quinase dependente de cálcio-calmodulina, CaMKII, que um papel na excitação-contração, biogênese mitocondrial, expressão de GLUT-4, modificação de histona, entre outras) e unc-49 (que codifica o receptor ionotrópico GABA-A). Neste estudo, os vermes mutados para o gene unc-49 (relacionado ao GABA-A) apresentaram a maior incidência de “atividades semelhantes à convulsão”. Interessante este estudo, pois o gene unc-49 também codifica GABA-A em humanos.

 

Em seguida, os vermes foram expostos a etossuximida (4 mg/ml), fármacos antiepilético que estudamos anteriormente. Etossuximida bloqueia os canais de cálcio no neurônio pós-sináptico e, dessa forma, inibe a convulsão. Aliás, a supressão completa do que poderíamos chamar de convulsão foi atingida em 2 horas de exposição com etossuximida. Os pesquisadores ainda compararam etossuximida com succinimida (substância inerte, quimicamente semelhante ao fármaco mencionado). Dessa forma, mostraram que succinimida não protege contra convulsão induzida por PTZ, enquanto que etossuximida reverte convulsão.

Interessante, mas o que podemos concluir?

Primeiro, estudo com C. elegans são promissores, especialmente pela simplicidade do verme e facilidade de manipulação genética.

Segundo, é promissor o uso de C. elegans para o desenvolvimento de novos medicamentos antiepilépticos (AEDs), já que o custo é baixo e dispensa regulamentação ética (pelo menos até o momento) quando comparado aos modelos convencionais de roedores.

Terceiro, não podemos extrapolar dados, pois embora unc-49 codifique o receptor GABA-A (que também ocorre em humanos), o C. elegans não possui canais de cloro. Além disso, a identificação/classificação de “convulsão” no verme é muito subjetiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na epilepsia há um desequilíbrio entre os sinais inibitórios e excitatórios no SNC e, dessa forma, ocorre hiperexcitabilidade neuronal, conduzindo as chamadas crises epilépticas. Esses desequilíbrios devem-se aos desajustes na biossíntese de GABA e acúmulo de Glu. Ao mesmo tempo, uma alteração no gene unc-25 prejudica a síntese da enzima GAD, levando a acúmulo de Glu (neuroquímica excitatório) e redução de GABA (neuroquímica inibitório). Em mamíferos, as alterações em GABA-A estão associadas a mutação no gene unc-49, que codifica o receptor. Outra possibilidade para explicar a epilepsia é a excessiva recaptação de GABA da fenda sináptica para o neurônio pré-sináptico através do GAT-1. Muitos estudos apontam a disfunção do receptor GABA-A, envolvido com a abertura dos canais de cloro, como um dos principais problemas na epilepsia. De qualquer forma, muitas drogas antiepilépticas têm sido estudadas na doença, cujo o mecanismo de ação se direciona para diferentes caminhos metabólicos (farmacodinâmica). Em alguns casos especiais, a dieta cetogênica parece trazer benefícios em pacientes jovens. O mecanismo de ação parece envolver o BHB, que é um corpo cetônico estruturalmente semelhante ao GABA. Dessa forma, BHB poderia desempenhar as funções do GABA, assim como alguns análogos sintéticos atualmente (gabapentina e pregabalina). Por outro lado, BHB e acetoacetato são ácidos e podem alterar o tamponamento celular em algumas crianças, reduzindo o pH do sangue e resultando em acidose metabólica e desnaturação proteica. Enfim, são inúmeras as possibilidades de pergunta, hipótese e pesquisa para melhor auxiliar os pacientes epilépticos. Espero que a leitura tenha sido agradável e, se compartilhar, favor citar a fonte!