quinta-feira, 30 de setembro de 2021

BCAA: útil ou inútil? (Parte 2)

 


BCAA: útil ou inútil? (Parte 2)

Olá, você leu a “Parte 1”? Não? Então, caro leitor, leia antes de continuar, afinal: “A mente é como uma paraquedas, só funciona quando aberta”. Já leu? Perfeito, vamos ver as demais alegações em relação ao uso de aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA).

– ALEGAÇÃO N.2 –

Manutenção da aminoacidemia e fornecimento de nitrogênio aos processos metabólicos

Essa alegação, na realidade, nem precisaria ser discutida, afinal já foi abordada e parece tão óbvia. Quer dizer, os aminoácidos (não somente os BCAAs) são fonte de nitrogênio ao organismo e, estes, podem ser usados para a biossíntese de proteínas musculares (miofibrilas) e síntese de substâncias nitrogenadas com diferentes funções, tais como: hemoglobina (proteína que transporta o oxigênio no sangue), mioglobina (proteína presente nos músculos e, portanto, envolvida na contração muscular), lipoproteínas plasmáticas (compostos responsáveis pelo transporte lipídico no meio aquoso plasmático), porfirinas (pigmentos que podem se ligar facilmente à metais, onde destaca-se a heme pertencente da hemoglobina e mioglobina), ácidos nucléicos (moléculas que podem transmitir informações genéticas e, aliás, os mais “famosos” deste grupos incluem o DNA e RNA), ferritina (proteína que armazena ferro nos tecidos, particularmente o fígado) e transferrina (proteína sérica transportadora de ferro, sendo uma proteína produzida pelo fígado).

Sendo assim, é importante manter os aminoácidos no sangue (aminoacidemia), pois seu organismo agradece. Todavia, o que ocorre se você não ingerir uma fonte proteica diariamente? Será que as funções acima citadas vão deixar de existir? Claro que não, caso contrário em um jejum prolongado ou exercício de longa duração já estaríamos todos “mortos”, por assim dizer. Em outras palavras, seu corpo vai buscar aminoácidos (e nitrogênio) de seus músculos esqueléticos (catabolismo proteico ou proteólise). Também ocorrerão gliconeogênese (por isso deve ler a Parte 1) a fim de manter a glicemia. De fato, em qualquer livro de bioquímica básica poderá encontrar um capítulo sobre o Equilíbrio Dinâmico das Proteínas (“pool” de aminoácidos), sendo um processo dinâmico de síntese (proteinogênese) e degradação (proteólise). Enfim, só para deixar claro, aminoácidos são importantes para inúmeras funções no organismo, mas isso não significa que você deve ingerir apenas BCAA, percebeu? 

 

– ALEGAÇÃO N.3 –

Fornecimento de energia, especialmente usado antes do treino ou competição

Os aminoácidos possuem um esqueleto carbônico, que podem ser usados para a geração de glicose (gliconeogênese) no períodos de jejum prologando ou exercício de longa duração. No estado alimentado, contudo, os aminoácidos podem ser usados para a geração de energia (desaminação oxidativa). OK, no estado realimentado inicial também ocorre gliconeogênese a partir de aminoácidos (com duração de apenas poucos minutos), porém com o intuito de formar glicogênio. Todavia, esse processo é um capítulo adicional, pouco discutido, somente apresentado em tópicos avançados em bioquímica (que poucos conhecem ou já ouviram falar). Não discutiremos isso aqui, ficando para uma próxima postagem.

Voltando ao foco, 20% dos aminoácidos da dieta correspondem aos BCAAs, os quais chegam ao fígado pela veia porta hepática. Todavia, o fígado metaboliza praticamente todos os aminoácidos, exceto os BCAAs. Quer dizer, 50% dos aminoácidos que saem do fígado são BCAAs, os quais se direcionam ao músculo esquelético. STOP, vamos explicar isso melhor para não deixar “buracos”. Os BCAAs são degradados nos músculos esqueléticos, principalmente, onde encontramos altas concentrações de BCAT (aminotransferase de cadeia ramificada) e BCKADH (a-cetoácido desidrogenase de cadeia ramificada). Aliás, lembrei de um estudo interessante sobre o catabolismo de BCAA em humanos e a distribuição de BCAT/BCKADH: John T. Brosnan; Margaret E. Brosnan. Branched-Chain Amino Acids: Enzyme and Substrate Regulation. J. Nutr. 136: 207S-211S, 2006. Relatando apenas o ponto que interessa, o estudo mostra que os BCAA são degradados basicamente no tecido muscular esquelético e, em pequenas taxas, também no tecido adiposo, rins, cérebro, fígado, intestino e coração.

Mas, professor, os BCAAs podem ser usados como fonte de energia celular? Sim, claramente que sim. Vou usar o estudo de Brosnan & Brosnan (2006), supracitado, para explicar melhor. Os BCAAs (leucina, isoleucina e valina) sofrem transaminação (leia a Parte 1, já falei, rs) pela BCAT, gerando cetoácidos de cadeia ramificada (KA). Os KAs incluem o ácido a-cetoisocaproato (KIC), o ácido a-ceto-β-metilvalerato (KMV) e o ácido a-cetoisovalerato (KIV). Complicou? Não diga isso, apenas “decore” as siglas KIC, KMV e KIV. Estes, por sua vez, sofrem descarboxilação oxidativa pela BCKADH, gerando, agora, isovaleril-CoA (a partir do KIC), metilbutiril-CoA (a partir do KMV) e isobutiril-CoA (a partir do KIV). Por fim, estes últimos componentes sofrem desidrogenação, gerando produtos intermediários do ciclo de Krebs (ciclo dos ácidos tricarboxílicos ou TCA): succinil-CoA e acetil-CoA. O ciclo TCA, por sua vez, consegue gerar equivalentes de redução (NADH e FADH2), que serão usados para a geração de energia (ATP, adenosina trifosfato) na cadeia oxidativa mitocondrial transportadora de elétrons (COMTE) ou, simplesmente, cadeia respiratória. Resumidamente: os BCAAs podem ser usados para a geração de energia celular.  

Entretanto, é sério que alguém pretende gastar o “suado dinheiro” comprando BCAA para obter energia (kcal) ao organismo, especialmente usando como refeição pré-treino? Não seria mais barato (e inteligente) comer uma maçã, banana, batata-doce ou qualquer carboidratos de seu interesse? AHHH, mas você é contra o consumo de carboidratos (e acha isso inteligente)? Bem, está na hora de consultar um bom profissional nutricionista, ler menos “posts” em redes sociais e mais livros, artigos científicos e diretrizes.

 

– ALEGAÇÃO N.4 –

BCAA e a hipótese de prevenção da fadiga central

A suplementação de BCAA tem sido vinculada à prevenção da fadiga central em atletas submetidos ao exercício de longa duração, como é o caso de maratonistas, triatletas e ultramaratonistas.

Mas, professor, o que seria fadiga central? Aliás, qual diferença entre fadiga central e periférica?

A fadiga central pode estar relacionada à hipoglicemia ou relacionada à síntese do neurotransmissor 5-hidroxitriptamina (5-HT), também conhecido como serotonina. A hipoglicemia é fácil de entender, pois os baixos níveis de glicose no sangue resultam em neuroglicopenia e seus sintomas clássicos: tontura, sudorese, fraqueza e desmaio. Em casos graves, a hipoglicemia pode conduzir ao coma e óbito. Neste sentido, em casos hipoglicêmicos, medidas de emergências devem ser tomadas para salvar o paciente e evitar maiores complicações neuronais, por exemplo. Já a fadiga central relacionada ao 5-HT (serotonina) é mais complexo, mas vamos “mastigar” o assunto. Mas, antes, deixa-me falar da fadiga periférica, embora não seja o foco deste capítulo.

A fadiga periférica está associados aos fatores que prejudicam a contração muscular (junção neuromuscular), tais como: depleção de fosfocreatina (CP), depleção de glicogênio muscular, redução do pH intramuscular e a hiperlactatemia (aumento do lactato circulante) e déficit de ATP (aumento do ADP, adenosina difosfato), bem como disfunção do retículo sarcoplasmático, liberação ou absorção inadequada de cálcio pelo retículo sarcoplasmático, presença de espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species) e de nitrogênio (RNS, reactive nitrogen species). Enfim, são inúmeros fatores que podem, inclusive, resultar em desnaturação proteica, redução da sensibilidade da troponina e competição entre cátios de hidrogênio (H+) e cálcio (Ca2+) na fibra muscular. Havendo, portanto, um prejuízo no mecanismo contráctil temos a fadiga periférica.

Na realidade, acredito que ambas as fadigas (central e periférica) podem estar interligadas e presentes em um atleta que desistiu de uma competição. Mas, voltando à fadiga central e sua relação com BCAA, podemos dizer que existe intima relação com hipoglicemia (onde devemos observar as reservas iniciais de glicogênio hepático do atleta) e/ou relacionada à síntese de 5-HT (serotonina). A serotonina age sobre a regulação do ciclo sono-vigília, a modulação da dor e a regulação da atividade motora. Sendo assim, qualquer fator que altere essa relação pode prejudicar ou otimizar o desempenho atlético. Sabe-se, portanto, que durante o exercício prolongado (especialmente em maratonistas, triatletas e ultramaratonistas) ocorre um aumento na produção de serotonina pela maior disponibilidade do precursor plasmático, que seria o aminoácido aromático triptofano (TRP). Aliás, usaremos o termo TRPL (triptofano livre) quando nos referirmos ao aminoácido que atua como transportador.

A hipótese diz que os BCAAs retardam a fadiga central no exercício e no esporte prolongado. Como assim? Não é simples, mas é interessante e, portanto, torna-se simples (rs). Vamos lá.

Um aumento de TRPL está diretamente relacionado ao aumento de ácidos graxos circulantes (AGL). Em outras palavras, durante o exercício prolongado ocorre a mobilização dos triglicerídeos (TG) do tecido adiposo (lipólise), catalisada pela lipase hormônio sensível (LHS). Estes ácidos graxos serão, posteriormente, usados como fonte energética (β-oxidação dos ácidos graxos), que é um processo mitocondrial bem complexo (vamos evitar essa complexidade neste momento). Todavia, tanto o TRPL, quanto os AGL, necessitam de albumina para serem transportados no plasma. Albumina sérica é uma proteína produzida pela fígado. Como a lipólise está acelerada nestes exercícios de longa duração, acaba sobrando TRPL pela indisponibilidade de albumina, que se ligou aos ácidos graxos. Em suma, o “coitado” do TRP ficou sem albumina para seu transporte (por isso, TRPL), enquanto que os AGL estão “felizes” da vida com tanta albumina para seu transporte. Como consequência do fato acima, o TRPL atravessa a barreira hematoencefálica (BHE) para formar serotonina (5-HT), que está relacionado à fadiga central e a desistência do atleta frente ao esforço físico. Legal, bioquimicamente falando, não é? Mas, peraí, cadê os BCAAs nessa “historinha”? Claro, vamos lá.

Os BCAAs podem competir pelo sítio de ligação do TRPL e, consequentemente, limitar a entrada do TRPL através da barreira hematoencefálica (BHE). Aliás, essa competição não se dá apenas com TRP, pois os BCAAs também competem com Phe (fenilalanina) e tirosina (Tyr). Em outras palavras, a redução da fadiga central pode ocorrer pelo decréscimo da produção de serotonina, quando os BCAAs estiverem presentes, o que reduziria a captação de TRP. AHHH, professor, então não teria nenhuma lógica o uso de BCAA no pré-treino de musculação (exercício de alta intensidade e curta duração)? O que você acha “pequeno gafanhoto”?

Além disso, os níveis plasmáticos de BCAAs diminuem consideravelmente durante o exercício prolongado, decorrente de uma maior solicitação destes pelos músculos esquelético como fonte de energia (já vimos isso, leia “Alegação n.3”). Além disso, exceto pela leucina (Leu) e lisina (Lys), todos os demais aminoácidos podem ser utilizados na gliconeogênese (também já vimos isso, leia “Parte 1”).

Mas, professor, quais trabalhos posso confirmar suas palavras? Bah, não confia em mim (rs)? Brincadeira, a hipótese de redução da fadiga central com a suplementação de BCAA pode ser encontrada em alguns livros de Nutrição e Atividade Física, por exemplo:

·   Ronaldo J. Maughan e Loiuse M. Burke. Nutrição Esportiva. ArtMed: Porto Alegre, 2004.

·     Christine A. Rosenbloom. Sports Nutrition – A guide for the professional working with active people. The American Dietetic Association, Chicago, Illinois, 2000.

Estes são, apenas, alguns livros (antigos) que tenho em minha estante (já gastei muito dinheiro com livros). Já vou lhe apresentar estudos novos, mas deixa-me explorar um pouco mais estes livros. No livro de Ronaldo J. Maughan e Loiuse M. Burke (Nutrição Esportiva. ArtMed: Porto Alegre, 2004), os autores relatam que a hipótese de fadiga central e o uso de BCAA surgiu em 1986, pelo pesquisador Dr. Eric Newsholme. Todavia, embora atraente, a hipótese não foi confirmada quando se administra BCAA (ou mesmo triptofano, esperando “maior fadiga”) durante o exercício prolongado. Ao mesmo tempo, como destacado por Christine A. Rosenbloom (Sports Nutrition – A guide for the professional working with active people. The American Dietetic Association, Chicago, Illinois, 2000), os estudos sobre BCAA e fadiga são equivocados e limitados. Quer dizer, alguns estudos (entre 1992 e 1995) traziam o uso de BCAAs concomitantemente com bebidas glicídicas, que poderiam facilmente “mascarar” os possíveis benefícios atribuídos aos BCAAs. Ainda, altas doses de BCAAs durante o esforço físico são lentamente absorvidos pelo trato gastrintestinal (TGI), não justificando seu uso (ou abuso).

Em outros livros, você não encontrará explicações sobre a suplementação de BCAA, mas, sim, a descrição da via metabólica em que os BCAAs aparecem durante o exercício. Já Nancy Clark (1998), não faz menção alguma sobre os BCAAs no esporte. Estes livros são descritos abaixo (sim, tenho todos eles):

·      Ira Wolinsky e James F. Hickson Jr. Nutrição no Exercício e no Esporte. São Paulo: Editora Roca, 1996. 

·       William D. McArdle, Frank I. Katch e Victor L. Katch. Nutrição para o Esporte e o Exercício. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2014.

·       Nancy Clark. Guia de Nutrição Desportiva. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

Existem livros, contudo, que falam abertamente sobre a suplementação de BCAA no esporte, embora com foco na hipertrofia muscular (que discutiremos mais adiante) e uma abordagem breve e superficial do BCAA na fadiga. São eles (novamente, tenho todos os livros citados):

·      Frédéric Delavier e Michael Gundill. Guia de Suplementos para Atletas. São Paulo: Malone, 2009.

·      Carlos Alberto Werutsky. Nutrologia Esportiva. Porto Alegre: AGE editora, 2013.

Enfim, se os BCAAs não servem para “nada” ou são “inúteis” (e não estou dizendo que você deveria compra-los e usa-los, não faça confusão), então como existem livros abordando o assunto? AHHH, mas tem livro “para tudo”, não é mesmo? Perfeito, mas será que temos estudos científicos sobre o assunto? HUMMM, vejamos.

Recapitulando, através de uma pergunta:

Existem estudos científicos (atuais) sobre a atividade serotoninérgica (relativo a serotonina), BCAA e a redução da fadiga central?

Inicialmente, vejamos alguns estudos mais antigos:

·       Eric A. Newsholme; Eva Blomstrand. Branched-chain amino acids and central fatigue. J Nutr 136(1 Suppl): 274S-6S, 2006.

Neste trabalho, descreve-se a hipótese de fadiga central pelo aumento do TRP e administração de BCAA justamente para reduzir a fadiga. Também é elucidado as causas da fadiga periférica (depleção de glicogênio e fosfocreatina, aumento de lactato e H+) e fadiga central (hipoglicemia, aumento do TRP com decréscimo de BCAA). Mas, obviamente, descreve a hipótese e comprova exatamente a mesma.

·     Eva Blomstrand. A role for branched-chain amino acids in reducing central fatigue. J Nutr 136(2):544S-547S, 2006.

Já neste estudo, temos praticamente a mesma explicação. Quer dizer, um aumento de TRP no cérebro seria responsável pela fadiga. De fato, ocorre competição de TRP com BCAA pela BHE (barreira hematoencefálica). Além disso, explica a presença de TRP livre (TRPL), devido desvio de albumina sérica para AGL (ácidos graxos livres). Ou seja, já viu isso comigo anteriormente.

·       Romain Meeusen e Phil Watson. Amino acids and the brain: do they play a role in "central fatigue"? Int J Sport Nutr Exerc Metab 17 Suppl: S37-46, 2007.

Em 2007, este estudo descreve alguns neurotransmissores (serotonina, dopamina e noradrenalina) envolvido na fadiga induzida pelo exercício prolongado. Além disso, as taxas de síntese de 5-HT (serotonina) depende de TRP (triptofano) e TYR (tirosina) e, estes, competem com BCAA pela BHE (barreira hematoencefálica). Em suma, não há dúvidas que estes aminoácidos (TRP e TYR) estejam envolvidos na fadiga através da geração de 5-HT. Todavia, mas a manipulação de BCAA a fim de reverter a fadiga é controversa e, inclusive, malsucedida.

·    Sujean Choi et al. Oral branched-chain amino acid supplements that reduce brain serotonin during exercise in rats also lower brain catecholamines. 45(5): 1133-42, 2013.

Por fim, o estudo, publicado em 2013, descreve o mecanismo do TRP/BCAA e fadiga, como já descrito inúmeras vezes aqui. Sendo assim, vamos direto as conclusões: a suplementação com BCAA sobre a redução de 5-HT (serotonina) cerebral em ratos. O exercício físico aumenta a liberação de 5-HT (serotonina) no cérebro, mas em humanos, o uso de BCAA na redução da fadiga permanece controverso. Além disso, o uso de BCAA pode diminuir as catecolaminas durante o exercício que, segundo estudo, pode reduzir o desempenho atlético (um aspecto não discutido anteriormente).

Mas, professor, não tem estudos mais novos ou atuais? Claro, queria apenas apresentar um rastreamento dos acontecimentos. Vejamos, se você inserir os descritores “branched-chain amino acids and central fatigue” (aminoácidos de cadeia ramificada e fadiga central) aparecerá, nada mais, nada menos, que 1277 estudos científicos na pesquisa. Neste sentido, vamos filtrar melhor a informação. Para tanto, vamos buscar estudos apenas nos últimos 5 anos e acrescentar o descritor “serotonin” (serotonina). O que temos agora? Temos 205 estudos científicos (lembre-se: estes descritores foram acrescidos no dia 30/09/2021, onde certamente amanhã e depois os números já serão diferentes). Todavia, alguns estudos não envolvem apenas BCAA, mas, sim, BCAA combinado com carboidrato, citrulina, arginina, ornitina, glutamina, etc. Estes, portanto, serão excluídos em nossa discussão. Com base nisso, vejamos alguns que sobraram e cumprem nosso interesse de pesquisa.

·     Mohammad Fayiz AbuMoh'd et al. Effects of Oral BranchedChain Amino Acids (BCAAs) Intake on Muscular and Central Fatigue During an Incremental Exercise. Journal of Human Kinetics 72: 69-78, 2020.

Trata-se de um ensaio randomizado, duplo-cego, controlado por placebo. O protocolo deste estudo consistia do uso de BCAA (20 g/dia, diluído em água) versus placebo em um período de 14 dias. Para tanto, foram selecionados 16 corredores de longa distância, do sexo masculino, adultos, saudáveis. Os indivíduos deveriam se abster de bebidas energéticas e qualquer substância ergogênica durante o experimento.

O estudo visava investigar os efeitos da ingestão de BCAAs orais na fadiga muscular. Para tanto, foram analisando creatina fostoquinase (CPK) e mioglobina, bem como serotonina (5-HT), durante o exercício e o tempo de exaustão. Os participantes recebiam os BCAAs (20 g/dia) ou placebo cerca de 1 hora antes de realizar o esforço físico em esteira (velocidade: 8 km/h e aumentando a cada 5 minutos até a exaustão).

E quais foram os resultados?

Primeiro, os níveis de serotonina eram menores no grupo suplementado com BCAA quando comparado ao placebo, sugerindo que BCAA pode ter limitado a entrada de triptofano (TRP) no cérebro.

Segundo, os níveis de CPK eram maiores no grupo BCAA do que placebo, sugerindo que o treinamento até a fadiga para alterar o marcador bioquímico de lesão muscular, onde BCAA não teve qualquer efeitos “protetor” sobre o fato.

Terceiro, não foi observado qualquer diferença significativa para mioglobina entre os grupos.

Quarto, o tempo de exaustão foi maior no grupo BCAA do que placebo. Explicando de outra forma, os BCAAS permitiram a manutenção do esforço físico exaustivo, retardado a fadiga.

E quais foram as conclusões dos autores?

Os autores concluíram que a ingestão oral de BCAA (20 g/dia), cerca de 1h antes do exercício, reduziu os níveis de serotonina e retardou a fadiga. De acordo com os autores, estes dados são consistentes com os antigos estudos sobre a hipótese de fadiga do BCAA (lembram dos estudos do Dr. Eric Newsholme, em 1986, será que ele tinha razão?). O estudo também descreve as vias metabólicas do TRPL e BCAA, mas isso você já viu comigo no início do “textão”, portanto, não vou repetir. Cabe destacar que o estudo não mediu quaisquer hormônios, os quais poderiam ter implicações importantes na fadiga, por exemplo, prolactina, estrógenos, testosterona, e triiodotironina (T3) e tiroxina (T4).

E você, professor, o que acha disso?

Buenas, embora seja um estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo (portanto, alto grau de evidência científica), a amostra é pequena e o período de estudo é curto (cabe lembrar, também, que estudos deste tipo são onerosos). Além disso, foram avaliados CPK e mioglobina, que nos remete para avaliação de dano muscular e não exatamente fadiga central (embora o estudo também descreve fadiga periférica). Talvez seria interessante avaliar a relação serotonina e quinureninas (explicarei mais adiante). Certamente avaliar alguns hormônios também seria fantástico, especialmente porque o estudo usou apenas BCAA versus placebo.

Vejamos, agora, outro estudo:

·     L.M.S. Cordeiro et al. Physical exercise-induced fatigue: the role of serotonergic and dopaminergic systems. Brazilian Journal of Medical and Biological Research 50(12): e6432, 2017.

Trata-se de um estudo de revisão sobre a serotonina (5-HT) e a dopamina (DA) cerebral, que são neurotransmissores envolvidos na fadiga. A fadiga, por sua vez, leva a redução da intensidade do exercício ou, até mesmo, sua interrupção. Segundo os autores, em experimentos com roedores nota-se claramente que a serotonina e dopamina (via serotoninérgica e dopaminérgica) influenciam no desempenho dos animais, embora os experimentos com seres humanos são conflitantes. O estudo apresenta a definição de fadiga central e periférica que, aliás, já mencionei no início da “Alegação n.4”. Essa descrição, por sua vez, é similar a minha e, portanto, não há necessidade de repetição. Enfim, segundo autores, parece plausível estabelecer uma relação entre fadiga (central e periférica) com exercício físico prolongado ou, até mesmo, exercício sob condições extremas (por exemplo, estresse térmico ambiental). Contudo, errei na seleção deste estudo, pois não faz qualquer menção sobre os BCAAs na fadiga. Por outro lado, a via serotoninérgica e dopaminérgica na fadiga é detalhada, portanto, vale a pena a leitura.

Sendo assim, vejamos outro estudo recente (2020), descrevendo o papel do TRP (triptofano) na fadiga.

·    Masatoshi Yamashita. Potential Role of Neuroactive Tryptophan Metabolites in Central Fatigue: Establishment of the Fatigue Circuit. International Journal of Tryptophan Research 13: 1-15, 2020.

AHHH, este estudo de revisão é muito legal (com figuras muito legais), mas gigantesco. Portanto, vou trazer apenas os tópicos mais importantes para nossa discussão. A fadiga central leva à redução da capacidade de realizar tarefas mentais, tanto na vida cotidiana, quanto durante o esforço físico. O mecanismo neuroquímico envolve o TRP, onde este aminoácido seria captado por determinadas regiões cerebrais, após atravessar a barreira hematoencefálica (BHE), aumentando a produção de serotonina e, portanto, causando fadiga induzida pelo exercício. Quer dizer, já expliquei isso anteriormente, então, tenho certeza que você está “ligado”.

De acordo com os autores, a serotonina (produzida a partir do TRP) pode ser liberada de forma transitória após 30 minutos de corrida em esteira, ou seja, você não precisa ser uma maratonista ou triatleta para experimentar uma fadiga mediada por serotonina (já pensou nisso?). Essa serotonina, contudo, seria metabolizada pela via da quinurenina. Sim, chegamos finalmente neste “senhor” ou “senhora” com nome estranho (rs). A quinurenina, para facilitar o entendimento, é um metabólito do aminoácido TRP usado na produção de niacina (vitamina B3). Dessa forma, quinurenina e o ácido quinurínico no cérebro, pelo menos em roedores, estão implicados na fadiga central. Aliás, em mamíferos, apenas 5% do TRP é catabolizado através da via da serotonina, pois a grande maioria do TRP é metabolizada na via da quinurerina. Percebeu a importância disso? Vejam, talvez toda fadiga induzida pelo exercício, mencionada até agora, dependa da quinurenina e não exatamente da serotonina. Este é um assunto, do ponto de vista bioquímico, fascinante. Todavia, não posso entrar em maiores detalhes para não prejudicar o foco na fadiga central (e não cansar você, caro leitor). Sendo assim, vamos aos principais pontos:

Primeiro, está claro que o TRP/serotonina e/ou TRP/quinurenina estão envolvidos na fadiga. Em estudos com animais e seres humanos, a ingestão excessiva de TRP conduziu a sensação de fadiga e sonolência.  

Segundo, a fadiga não depende apenas das vias TRP/serotonina e TRP/quinurenina, mas, sim, de citocinas pró-inflamatórias (por exemplo, interleucina-1β, IL-1β).

Terceiro, a fadiga é facilitada pela captação de aminoácidos, como TRP, através da barreira hematoencefálica (BHE). No exercício físico prolongado há um aumento nas concentrações de TRP livre (TRPL), devido desvio de albumina para os ácidos graxos livres (AGL). Sendo assim, cabe a pergunta: qualquer fator que reduza essa captação de TRP, como pela competição com os BCAAs na BHE, poderiam reduzir a sensação de fadiga? HUMMM, vejamos o próximo comentário.

Quarto, os pacientes com baixas concentrações de BCAA ou que apresentam mutação de BCKADH podem ter a via TRP/serotonina e TRP/quinurenina exacerbada, favorecendo a fadiga e distúrbios de neurodesenvolvimento. Em outras palavras, um desequilíbrio entre aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA) e aromáticos (TRP, mas possivelmente também Phe e Tyr) pode estar associado a fadiga. Todavia, isso se aplica aos esportistas e atletas, teoricamente, saudáveis? A resposta é: não sei. 

Quinto, segundo os autores, a suplementação de BCAA consegue aliviar a fadiga induzida pela exercício e melhorar, assim, o desempenho atlético. Sugere-se que o BCAA consegue inibir a captação intracerebral de TRP advinda da circulação. Em animais, a suplementação com BCAA reduz o ácido quinurínico no cérebro.

E, para finalizar, o que será que diz o International Society of Sports Nutrition (ISSN), que traz uma “gigantesca” revisão sobre diversos assuntos relacionados a nutrição esportiva?

·       Chad M. Kerksick et al. ISSN exercise & sports nutrition review update: research & recommendations. J Int Soc Sports Nutr. 15: 38, 2018.

Essa é, justamente, uma revisão atualizada do ISSN que todos os interessados em nutrição esportiva deveriam ler (leiam, só tem 57 páginas). Vamos, direto, aos pontos de interesse aqui:

·       Entre os atletas, a recomendação de proteína é cerca de 2 vezes a RDA (ou seja, recomendação de 1,4 a 1,8 g/kg/dia). Aliás, essa é a recomendação para a maioria dos indivíduos que se exercitam, segundo os autores. Doses ainda maiores (acima de 3,0 g/kg/dia) podem ser necessárias em alguns casos (esportes de longa duração, por exemplo);

·       Quando as doses de proteína foram elevadas/agudas, devem ser acompanhadas por 700-3000 mg de leucina, além de um equilíbrio para aminoácidos essenciais;

·   A suplementação do BCAA tem sido relatada para diminuir a degradação da proteína induzida pelo exercício e/ou a liberação de enzimas musculares (um indicador de dano muscular), ou seja, um possível papel “anti-catabólico”. Todavia, esse é um assunto para a “Parte 3”, em breve;

·       A ingestão de BCAA, durante os exercícios prolongados, tem sido sugerida como um recurso para reduzir a percepção psicológica da fadiga (fadiga central). Quando BCAA é combinado com outros suplementos (por exemplo, ornitina), observa-se melhorias em relação à fadiga. Todavia, o mesmo não é obtido quando BCAA é administrado isoladamente. Segundo INSS (2018), a lógica existe para apoiar um desfecho ergogênico do BCAA, porém são necessários mais estudos para sua comprovação.

 Considerações Finais:

Com base nisso, te pergunto: os BCAAs não servem para “nada”? São “úteis” ou “inúteis”? A conclusão deve ser de VOCÊ, caro leitor. O importante, contudo, é perceber a profundidade dos assuntos que não são vistos com essa “profundidade” nas mídias sociais comuns (Facebook ou Instagram). Aguarde a “Parte 3” (Final), onde falaremos do BCAA na hipertrofia muscular e na atenuação do dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”).

Nota: Seja gentil, gostou, compartilhe, desde que citado a fonte do “querido” professor aqui. 

terça-feira, 28 de setembro de 2021

BCAA: útil ou inútil? Tudo o que você precisa saber para não passar vergonha.

 


BCAA: útil ou inútil? Tudo o que você precisa saber para não passar vergonha

Certa vez um ex-aluno me disse:

- Profe, tu viu que aquele suplemento que ensinava em aula não serve para nada?

Aí, perguntei:

- Opa, não vi. Não sabia que eu ensinava tanta inutilidade assim (rs). Qual suplemento está se referindo?

O ex-aluno disse:

- BCAA, profe. Esse negócio não serve para nada.

Aí, perguntei:

- Qual ou quais estudos você leu para dizer isso?

O ex-aluno respondeu:

- Não li nenhum, profe. Mas vi posts nas mídias sociais, particularmente Instagram.

Finalmente, respondi:

- Você não acha a palavra “nada” muito abrangente? Por acaso, BCAA é estudado apenas na nutrição esportiva? Qual papel do BCAA na nutrição clínica? Que relação existe entre BCAA e encefalopatia hepática? Que relação existe entre BCAA e atenuação do dano muscular induzido pelo treinamento? E as vias metabólicas dos aminoácidos ramificados, não é um interesse bioquímico de estudo, independente do exercício e do esporte? Os objetivos de minhas aulas eram mostrar o BCAA como “mocinho” ou “vilão” ou descrever as rotas bioquímicas de alguns aminoácidos e proteínas? No exercício e no esporte, o que sabemos sobre os BCAAs na redução da fadiga? E na hipertrofia? E na relação com quinureninas, o que sabe sobre isso? Embora existam excelentes perfis nas mídias sociais, você não acha que deve ter cuidado com a “Ciência do Instagram”? Se não pesquisou o assunto, você não está sendo apenas um “papagaio de pirata” (indivíduo sem conhecimento, que apenas repete o que os outros falam, acreditando que as informações sejam verdadeiras, mesmo sem verificar)?

Finalmente, o ex-aluno respondeu:

- Bah Profe, agora você me deixou com VERGONHA.

Salvo a brincadeira, o que sabemos sobre os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA)?

– PARTE 1 –

Recentemente uma avalanche de pessoas em mídias sociais afirmam (e compartilham afirmações) que os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA, do inglês “branched-chain amino acids”) não servem para nada (também dizem outras palavras impróprias para a leitura). Todavia, a palavra “nada” não lhe parece muito abrangente? Outros afirmam que os BCAAs são inúteis. Entretanto, “útil” para qual finalidade e “inútil” em qual situação? Além disso, ninguém sabia dessa inutilidade do BCAA no passado? De certa forma, fomos arrastamos para o uso de BCAA, que é inútil, até os dias atuais? Esportistas e atletas estavam, no passado e atualmente, gastando dinheiro com algo tão inútil? Os profissionais de saúde, incluindo nutricionistas, estavam prescrevem BCAAs por ignorância, burrice ou má índole? BCAA não possui papel algum na nutrição clínica? Aliás, os mesmos nutricionistas que prescreviam BCAA no passado não são os mesmos que hoje falam mal do produto (vou poupar de citar nomes, pois sou um cara legal)? E as Instituições de Ensino Superior (EIS), especialmente no curso de Nutrição, estavam fazendo seus alunos perderem tempo (e dinheiro), onde os professores estavam ensinando algo que não serve para nada, chegando a ser inútil? E os livros de nutrição, incluindo nutrição e atividade física, tinham capítulos mentirosos sobre o BCAA?

KEEP CALM (mantenha a calma), só estou aguçando o debate, pois colocar “pimenta nos olhos dos outros é refresco” (sendo irônico, rs). Claro, não podemos esperar um verdadeiro “milagre” com apenas três aminoácidos (leucina, isoleucina e valina), mas sem querer ser o “advogado de defesa”, todos não seriam inocentes até que se prove o contrário? Em outras palavras, todos os acusados de um ato delituoso são, presumidamente, inocentes até que a sua culpabilidade fique legalmente provada? Sendo assim, os BCAAs são culpados ou inocentes dessa alegação de inutilidade?

Vamos, agora, conhecer profundamente os BCAAs.

O que é um BCAA?

Os seres humanos sobrevivem pelo fluxo contínuo de energia, provenientes dos nutrientes da dieta. Entre estes nutrientes, temos os macronutrientes: carboidrato, lipídeo e proteína. Estes, quando fornecidos em quantidades adequadas, garantem a saúde e sobrevivência da espécie humana. Todavia, essa necessidade é bastante individualizada, pois depende do gênero (masculino e feminino), idade (jovens, adultos e idosos), nível de atividade física, cenário hormonal e estado fisiológico (ou fisiopatológico) vivido. Entre os macronutrientes, as proteínas sempre foram alvo de admiração e polêmica. Proteína é um assunto interessantíssimo (que merece outra postagem), mas hoje ficaremos nos aminoácidos ou, melhor, nos BCAAs.

Os aminoácidos, advindos das proteínas, são fundamentais para nossa sobrevivência (e não pensem que estou falando apenas de músculos esqueléticos, necessários para nos locomovermos e “puxar um ferrinho”). E por que precisamos deles diariamente? Essa não é uma resposta simples, mas vou tentar resumir várias e várias páginas dos livros de bioquímica básica da seguinte maneira: os aminoácidos exercem diferentes funções em nosso organismo, onde o nitrogênio dos aminoácidos é utilizado para a biossíntese de proteínas musculares (miofibrilas), para síntese de substâncias nitrogenadas com diferentes funções (hemoglobina, mioglobina, lipoproteínas, porfirinas, ácidos nucléicos, ferritina e transferrina) e para síntese de outros aminoácidos (via metabólica conhecida como transaminação). Em excesso, contudo, os aminoácidos são oxidados para a geração de energia (desaminação oxidativa).

Aliás, existe uma polêmica se o excesso de proteínas e aminoácidos são convertidos em triglicerídeos (lipogênese) e armazenados no tecido adiposo. Da mesma forma, existe a polêmica sobre a sobrecarga hepática e renal com o excesso proteico. Podemos discutir essas polêmicas em outro “textão”, mas no momento cabe dizer que as proteínas possuem inúmeras funções em nosso organismo e, seu excesso, será utilizado para a geração de energia celular (produção de adenosina trifosfato, ATP). É pouco provável que sejam convertidos em “gordura” para armazenamento. Ao mesmo tempo, em indivíduos saudáveis, sem danos hepáticos e renais prévios, a proteína não é responsável por “falência” do fígado ou rins.     

Entre os diferentes aminoácidos (que podem possuir diferentes funções), destaca-se os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA). São considerados BCAAs os aminoácidos leucina (Leu), isoleucina (Ile) e valina (Val), que são aminoácidos essenciais ou indispensáveis. Então, antes de continuar, precisamos esclarecer algumas “coisinhas”:

1.    Aminoácidos são os constituintes das proteínas e possuem um átomo de carbono central (a), onde estão ligados um amino-grupo (NH2), um grupo ácido ou carboxílico (COOH), um átomo de hidrogênio (H) e uma cadeia lateral (R). Os aminoácidos, portanto, diferem uns dos outros através de sua estrutura de cadeias laterais (R).

2.    A união de dois resíduos de aminoácidos forma um dipetídeo, enquanto que aquela que contém três formaria um tripeptídeo e assim por diante. Neste sentido, quando temos um grande número de aminoácidos temos um polipeptídeo ou cadeia polipeptídica. Os polipeptídeos, portanto, são formados pela união de aminoácidos através da ligação peptídica, isto é, a ligação entre o amino-grupo (NH2) e o grupo carboxila (COOH) com a liberação de uma molécula de água. A união de vários polipeptídeos, portanto, formam as proteínas.

3.    Aminoácidos essenciais (indispensáveis) são aqueles que não podem ser sintetizados em nosso organismo (não sofrem transaminação, sem entrar em maiores detalhes). Dessa forma, precisam vir da dieta para existirem em nosso organismo. Neste sentido, os aminoácidos não essenciais (dispensáveis) podem ser sintetizados por transaminação e, dessa forma, não precisam vir da dieta para existirem no organismo.

Beleza? Não, porquê? Professor, que “diabos” é transaminação de aminoácidos? Calma “filho”, pois o “diabo” não tem nada a ver com isso (rs). Deixa-me explicar.

A transaminação, simplificando o processo, é quando os aminoácidos ingeridos em excesso nas dietas são transformados naqueles ingeridos em menores quantidades. Para tanto, ocorre a distribuição do nitrogênio entre os vários aminoácidos, onde o aminoácido glutamato tem grande participação. Neste sentido, os aminoácidos não essenciais podem ser sintetizados por transaminação, pois o organismo consegue sintetizar o a-cetoácido correspondente a um determinado aminoácido e ocorre a redistribuição do amino-grupo (por isso não precisam vir da dieta para existirem no organismo). Já os aminoácidos essenciais, como foi dito, devem vir da dieta, pois não podem ser sintetizados por transaminação.

Que tal conhecer (ou “decorar”, se preferir) os aminoácidos essenciais e não essenciais? Para tanto, apresento a sigla “PVT MIT HALL” para os aminoácidos essenciais, cujo cada letra indica um aminoácido em questão, ou seja:

P = Phe (fenilalanina)

V = Val (valina)

T = Trp (triptofano)

M = Met (metionina)

I = Ile (isoleucina)

T = Thr (treonina)

H = His (histidina)

A = Arg (arginina)

L = Leu (leucina)

L = Lys (lisina)

Já para conhecer (ou “decorar”) os aminoácidos não essenciais, pensei na sigla “AAA GGG CT PS”, ou seja:

A = Ala (alanina)

A = Asn (asparagina)

A = Asp (aspartato)

G = Gly (glicina)

G = Glu (glutamato)

G = Gln (glutamina)

C = Cys (cisteína)

T = Tyr (tirosina)

P = Pro (prolina)

S = Ser (serina)

Claro, vai observar que as letras “P” e “T” aparecem no “PVT MIT HALL” e também no “AAA GGG CT PS”, o que poderia “estragar” minha brincadeira para “decorar” (rs). Mas, mesmo assim, acredito que as siglas facilitem bastante a memorização, desde que tome esse pequeno cuidado. Cabe destacar, também, que alguns livros discordam sobre alguns aminoácidos na classificação e, até mesmo, usam o termo semi-essenciais para alguns aminoácidos. Enfim, o objetivo era lhe apresentar os 20 aminoácidos padrão, primários ou universais, que incluem os essenciais e não essenciais.  

Com base nisso, voltemos aos BCAAs, perguntando:

Quais são as propostas mercadológicas associadas aos BCAAs?

Existem, basicamente, seis (06) alegações (em meu ponto de vista) que precisam ser respondidas:

1)  Melhoria clínica na cirrose e encefalopatia, portanto, interesse na área de nutrição clínica;

2) Manutenção da aminoacidemia (concentração de aminoácidos no sangue circulante) e fornecimento de nitrogênio aos processos metabólicos;

3)   Fornecimento de energia, especialmente usado antes do treino ou competição;

4)   Hipótese de prevenção da fadiga central;

5) Auxílio na hipertrofia muscular, especialmente usado depois do treino ou competição;

6) Atenuação do dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”).

Está curioso? Se sim, estou conseguindo sua atenção e percepção que o assunto é muito mais profundo que a “Ciência do Instagram”. Vamos, agora, conhecer as seis (06) alegações, mas, lembre-se: a ciência não existe para agradar a Gregos e Troianos, mas, apenas, para encontrar a melhor resposta para as hipóteses em determinados assuntos ou, se preferir, simplesmente para sanar as dúvidas da sociedade. Sendo assim, segura a “mão do tio” e continue a leitura.

– ALEGAÇÃO N.1 –

BCAA, Cirrose e Encefalopatia Hepática

Um estudo multicêntrico e randomizado, em 2003, comparou a suplementação nutricional de BCAA versus lactoalbumina ou maltodextrina em 174 pacientes com cirrose avançada. Cabe lembrar que a cirrose pode evoluir para encefalopatia hepática (EH). O estudo concluiu que na cirrose avançada, a suplementação de BCAA oral de longo prazo é útil para prevenir a insuficiência hepática progressiva (Nutritional supplementation with branched-chain amino acids in advanced cirrhosis: a double-blind, randomized trial. Gastroenterology 124(7): 1792-1801, 2003).

Em outro estudo randomizado, porém em 2018, observou que o uso de BCAA aumentou a perfusão cerebral de pacientes com encefalopatia hepática (EH). Este estudo comparou a perfusão cerebral e a melhora clínica durante a suplementação de leucina e isoleucina (Which of the branched-chain amino acids increases cerebral blood flow in hepatic encephalopathy? A double-blind randomized trial. Neuroimage Clin 28(19): 302-310, 2018).

Vejamos, agora, o que diz o livro Fundamentos de Nutrição e Dietoterapia (1997), da autora Sue Rodwell Willians, sobre o assunto. Segundo o livro (que é antigo, mas está em minha estante de livros), o acúmulo de substâncias tóxicas no sangue, em decorrência da insuficiência hepática, contribui para a encefalopatia hepática (EH). Quer dizer, o fígado doente não consegue exercer a detoxificação da amônia (NH3) através do ciclo da uréia, cujo NH3 é oriundo de aminoácidos. A terapia nutricional na EH baseia-se na terapia nutricional, controlando o teor proteico e administração de BCAAs. A ingestão proteica deve ser baixa, justamente porque o fígado não consegue lidar com o excesso de nitrogênio oriundo de aminoácidos. O teor proteico diário depende, obviamente, da gravidade da doença. Ao mesmo tempo, os BCAAs não são metabolizados no tecido hepático, mas, sim, nos músculos esqueléticos. Sendo assim, o uso clínico da suplementação de BCAA, em fórmulas de suporte nutricional (enteral e parenteral), torna-se uma importante estratégia na doença hepática e EH. Aliás, neste livro encontramos a seguinte passagem: o uso clínico de BCAA pode aumentar as chances de sobrevivência dos pacientes com EH.

Entendeu? Não? Tudo bem, vamos “mastigar” um pouco mais o assunto com o auxílio de dois excelentes livros de bioquímica: Bioquímica Ilustrada de Harper, de Victor W. Rodwell et al. (2016); e Fundamentos de Bioquímica, de Donald Voet, Judith G. Voet e Charlotte W. Pratt (2000). O sítio primário para a degradação da maioria dos aminoácidos, oriundos da dieta, é o fígado. Isso ocorre porque no tecido hepático temos altas concentrações de enzimas capazes de degradar os aminoácidos, conhecidas como aminotransferases. Todavia, existe uma exceção: os BCAAs. No tecido hepático temos baixas concentrações destas enzimas capazes de degradar aminoácidos de cadeia ramificada, o que resulta em sua liberação para a circulação. Estes BCAAs (não catabolizados no fígado) são captados pelos músculos esqueléticos (mas, também, rins, coração e cérebro). Nos músculos esqueléticos, temos altas concentrações de aminotransferases de cadeia ramificada (BCAT) e de desidrogenases dos a-cetoácidos de cadeia ramificada (BCKADH).

Enfim, os BCAAs não dependem exatamente do fígado para serem catabolizados, estando o fígado doente ou não. Quer dizer, não faria a menor diferença. Ou, se preferir, os BCAAs podem ser catabolizados independente do fígado saudável ou doente. O paciente com doença hepática (cirrose) e encefalopatia hepática (EH), se pensarmos logicamente sobre o assunto, deveria ter uma dieta com baixo teor proteico e, ao mesmo tempo, poderia se beneficiar com fórmulas contendo BCAAs. Dessa forma, uma fonte energética é garantida, além de uma pequena fonte de nitrogênio para funções básicas de sobrevivência.

Beleza, mas o que diz a literatura à respeito disso? E, professor, poderia falar um pouco mais sobre a encefalopatia hepática (EH) e BCAA? Claro, vamos lá.

A encefalopatia hepática (EH) é uma disfunção cerebral causada por insuficiência hepática e/ou shunt portossistêmico (anomalia vascular que permite a passagem de sangue da veia porta hepática diretamente para a circulação sistêmica e, dessa forma, as toxinas não são removidas e metabolizadas pelo fígado, mas, sim, permanecem na circulação). Em outras palavras, na insuficiência hepática ou shunt portossistêmico as toxinas chegam ao sangue, que acabam promovendo uma disfunção cerebral, incluindo alterações neurológicas e/ou psiquiátricas. Pacientes cirróticos, por exemplo, evoluem para HE, se não tratados. A EH pode ser episódica, recorrente ou persistente, o que requer o diagnóstico e tratamento adequado. O tratamento na EH difere de literatura para literatura, mas uma grande parte sugere manter um aporte calórico elevado (35-40 kcal/kg/dia) com baixo (ou razoável) aporte proteico (1,2 g/kg/dia) a fim de evitar perda de peso e contornar a desnutrição do paciente. O uso de lactulose (dissacarídeo com efeito prebiótico e laxante) e metronidazol (antibiótico) também são observados (embora exista controversa sobre o metronidazol e inúmeros efeitos adversos, incluindo danos renais). Em casos graves de doença hepática, os trabalhos sugerem que o transplante hepático é uma opção viável.

Aliás, vejamos o que diz o famoso livro Robins & Cotran, Patologia – Bases Patológicas das Doenças (2016). A encefalopatia hepática (EH) é manifestada por um espectro de perturbações da consciência, variando de anormalidades comportamentais até confusões acentuadas. A EH pode evoluir para o coma e óbito. Os principais sinais neurológicos incluem rigidez, hiper-reflexia (atividade aumentada dos reflexos) e asterixe/asterixis (tremor no punho ou movimentos de extensão-flexão). Há comprometimento na neurotransmissão no sistema nervoso central (SNC), que também afeta o sistema neuromuscular, estando associada a elevação dos níveis de amônia (hiperamonemia). Ocorre, assim, edema cerebral generalizado.

Já para Krause – Alimentos, Nutrição e Dietoterapia (2018), de L. Kathleen Mahan e Janice L. Raymond, os sintomas da EH apresenta estágios, onde destacam-se: Estágio I (confusão leve, agitação, irritabilidade, transtorno do sono e diminuição da atenção); Estágio II (letargia, desorientação, comportamento inadequado e sonolência); Estágio III (sonolento, porém reativo, fala incompreensível, confuso e comportamento agressivo quando acordado) e Estágio IV (coma).   

Quanto ao suporte nutricional, podemos explorar um “pouquinho” mais o assunto com o estudo de Laís Augusti et al., publicado Nutrire 39(3): 338-347, 2014, cujo título seria “Ingestão proteica na encefalopatia hepática: panorama atual”. Neste estudo, observamos que a EH está presente em 30-45% dos pacientes com cirrose e em 80% dos pacientes com EH mínima. A fisiopatologia na EH é complexa, mas o acúmulo sistêmico de subprodutos do metabolismo, especialmente amônia (NH3), é de grande interesse. A NH3 atravessa a barreira hematoencefálica (BHE), sofrendo conversão para glutamina, que favorece ao edema em astrócitos. Na realidade, ajustando um pouco a rota bioquímica descrita no estudo, glutamato (Glu) + ATP + NH4+ é convertido em glutamina (Gln) + ADP + Pi pela glutamina sintetase.

Estudos da década de 50, interessantemente, mostraram que a restrição proteica poderia controlar as crises de EH, como descrito por Phillips G.B. et al. (The syndrome of impending hepatic coma in patients with cirrhosis of the liver given certain nitrogenous substances. N Engl J Med. 247(7): 239-246, 1952) e Schwartz R. et al. (Dietary protein in the genesis of hepatic coma. N Engl J Med. 251(17):685-9, 1954). Durante muito tempo, portanto, a restrição proteica (20 g/dia) foi utilizada na prática clínica da EH. Porém, como fica a desnutrição do paciente cirrótico neste caso? Boa pergunta, continue lendo.

O Institute of Medicine of the National Academies, em 2002, recomendada 56 g/dia de proteína para adultos saudáveis do sexo masculina e 46 g/dia para mulheres (10-35% do valor energético total, VET), justamente discordando do aporte proteico extremamente baixo (20 g/dia) que poderia favorecer a desnutrição (ou seja, somando complicações de saúde em um paciente já “complicado” pela doença hepática). Cabe lembrar que a recomendação proteica para indivíduos adultos e saudáveis, segundo a Recommended Dietary Allowances (RDA), é de 0,8 g/kg/dia. Aliás, a recomendação normoproteica oscila entre 0,8 e 1,2 g/kg/dia (abaixo disso chamamos de hipoproteica e, acima, hiperproteica).

O problema, contudo, é que 50-90% dos pacientes cirróticos, que podem evoluir para EH, são desnutridos. Então, a redução da ingestão proteica reduz o nitrogênio oriundo das proteínas, que parece interessante em um paciente com doença hepática (local onde a grande maioria dos aminoácidos são degradados). Todavia, a redução proteica também pode favorecer a desnutrição do paciente cirrótico e com EH, que torna-se um importante fator de risco para o óbito. E, agora, como proceder?

Foi proposto, então, um aumento do aporte calórico (dieta hipercalórica), porém com restrição de proteínas. Essa fato poderia reverter a desnutrição associada ao hipercatabolismo e hipermetabolismo em paciente com doenças hepáticas graves. Todavia, na cirrose, os hepatócitos também não armazenam adequadamente glicogênio (um polímero de glicose prontamente disponível para a geração de energia). Aliás, se o fígado está doente, as mais de 400 reações bioquímicas que o fígado realizada podem estar prejudicadas. Por exemplo, pacientes cirróticos apresentam hiperinsulinemia com resistência periférica à insulina, o que prejudica a captação de glicose e glicogênese (formação de glicogênio). E agora, o que pode ser feito? Podemos recorrer a bioquímica a fim de elucidar a questão. Por exemplo, a gliconeogênese (nova formação de glicose a partir de compostos não glicídicos, como as proteínas) poderia ser uma solução, onde as proteínas (na realidade, o esqueleto carbônico das proteínas) poderia gerar glicose (uma “ótima” de fonte energética). Todavia, como lidar com o nitrogênio (amino-grupo) oriundos dos mesmos aminoácidos degradados? Ou seja, como lidar com a amônia (NH3) se o ciclo da uréia (processo hepático de detoxificação da amônia) também não funciona adequadamente? Complicado, não é mesmo? Por isso, reforço: a “Ciência do Instagram” pode ser uma péssima fonte de informação se você não conhece profundamente alguns assuntos.

Em um estudo, de 2013 (Francislene Juliana Martins et al. Nutrição em paciente cirrótico. HU Revista, Juiz de Fora, 39: 3-4, 2013) relata que a restrição proteica na cirrose deve ser adotada de forma personalizada, especialmente nos casos de EH. Neste sentido, a recomendação proteica oscila entre 1,2 e 1,5 g/kg/dia. E os BCAAs, onde entram nessa discussão? Claro, segundo autores, pacientes cirróticos suplementados com BCAA apresentam melhorias significativas do estado nutricional, inclusive estimulação da regeneração hepática. Este estudo traz uma passagem interessante de leitura: a suplementação com BCAA retarda a progressão da enfermidade hepática e prolonga a sobrevivência e a qualidade de vida do paciente com EH. Claro que BCAA, unicamente, não fará “milagres” se o paciente não for submetido a uma dieta adequada. Neste caso, atenção especial é dada as vitaminas (especialmente complexo B) e minerais (especialmente zinco e magnésio), bem como outros aminoácidos (especialmente glutamina), probióticos e prebióticos. 

De acordo com Krause – Alimentos, Nutrição e Dietoterapia (2018), de L. Kathleen Mahan e Janice L. Raymond, a prática da restrição proteica em pacientes com EH de baixo grau é algo ultrapassado, onde a restrição pode agravar as perdas corporais (desnutrição). Neste sentido, a recomendação é para 1,5 g/kg/dia em proteínas. E os BCAAs? Neste ponto, os autores dizem: os estudos conduzidos para avaliar os benefícios da suplementação de BCAA e restrição de aminoácidos aromáticos (AAA) variam muito em tamanho de amostra, composição das fórmulas, grau de EH, duração da terapia e grupos de controle. Segundo Krause, não se verifica nenhuma melhora significativa ou benefício de sobrevida com a suplementação de BCAA nestes pacientes.

Segundo a Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral, o Colégio Brasileiro de Cirurgiões e a Associação Brasileira de Nutrologia, em sua publicação Terapia Nutricional nas Doenças Hepáticas Crônicas e Insuficiência Hepática (2011), não há indicação de restrição proteica de forma contínua para os pacientes com insuficiência hepática. De fato, o fornecimento inadequado de proteína nestes pacientes, por longos períodos, podem contribuir para proteólise intensa de proteínas musculares e viscerais. De acordo com a Diretriz, pacientes com cirrose e EH pode se beneficiar com dietas normocalóricas (30 kcal/dia/dia) com 1,2 g/kg/dia em proteína. E os BCAAs? A Diretriz relata que em pacientes desnutridos, a administração de BCAA pode ser fonte de nutriente importante, especialmente na presença de cirrose. A suplementação com BCAA traz benefícios quanto ao perfil metabólico de aminoácidos, estado nutricional, qualidade de vida, redução do catabolismo proteico e normalização do quociente respiratório, trazendo, portanto, melhorias clínicas na EH. Por fim, na cirrose avançada, a suplementação com BCAA é útil para melhorar a evolução clínica e retardar a progressão da insuficiência hepática. Não há evidências, contudo, da redução de mortalidade nestes pacientes suplementados com BCAA.  

Talvez a melhor resposta seja: nem 8, nem 80. Ou seja, nem a restrição proteica severa, nem o excesso proteico nas doenças hepáticas graves e EH. Mas, professor, e os BCAAs, afinal? KEEP CALM (mantenha a calma) e releia todos “textão” acima (rs). Vejamos, então, dois estudos recentes para finalizar este assunto:

The Korean Association for the Study of the Liver (KASL). KASL clinical practice guidelines for liver cirrhosis: varices, hepatic encephalopathy, and related complications. Clinical and Molecular Hepatology 26:83-127, 2020.

Segundo a Diretriz KASL (Associação Coreana para o Estudo do Fígado), o tratamento na EH envolve a manipulação de dissacarídeos não absorvíveis (lactulose e lactitol) e antibióticos (rifaximina, um derivado da rifamicina). Os medicamentos neomicina e metronidazol, ambos antibióticos, não são recomendados pela KASL, devido efeitos colaterais (nefrotoxicidade e neuropatia periférica). E os BCAAs? Os pacientes cirróticos, que podem evoluir para EH, possuem menor capacidade de armazenamento de glicogênio hepático. Dessa forma, o catabolismo proteico (proteínas da massa muscular, basicamente) torna-se uma importante via metabólica para a gliconeogênese. Os BCAAs, como sabemos, são catabolizados nos tecidos periféricos ou extra-hepáticos e se apresentam em baixas concentrações em pacientes cirróticos. Aliás, estes pacientes apresentam maiores concentrações de aminoácidos aromáticos (Trp, Phe e Tyr). Enfim, segundo a Diretriz KASL, a suplementação do BCAA inibe a proteólise e diminui o fluxo de materiais tóxicos através da barreira hematoencefálica (BHE), minimizando os danos neurológicos na EH. Além disso, os BCAAs desempenham um papel importante no metabolismo muscular, levando à produção de glutamina (Gln), que é útil para desintoxicação da amônia (ciclo glutamato-glutamina).

Peraí, não era você que dizia que BCAA não servem para “nada”? Tudo bem, vejamos outro estudo recente.

Gluud L.L. et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy (Review). Cochrane Database of Systematic Reviews, 2020.

Nessa revisão sistemática de Cochrane, com 11 ensaios clínicos randomizados (RCT) sobre BCAA versus intervenções de controle (placebo, dietas, lactulose ou neomicina) na EH, podemos encontrar algumas respostas interessantes. Aliás, estamos falando de uma revisão sistemática com estudos randomizados, realizado pela Cochrane, portanto, “altíssimo” grau de evidência científica. O estudo é “gigante” (leiam) e, portanto, vamos direto aos resultados e conclusões. Os resultados mostram que o BCAA tem efeito benéfico nas manifestações de EH associada à cirrose. Alguns pacientes, suplementados com BCAA, experimentaram efeitos adversos considerados não graves (sintomas gastrintestinais, como diarreia e náusea). O estudo conclui que não houve evidência para apoiar ou refutar o uso de BCAA na mortalidade por doença hepática e EH. Todavia, a suplementação de BCAA é benéfica na terapêutica da cirrose e EH. Ou seja, se o desfecho for melhorias clínicas, os BCAAs tornam-se viáveis. Entretanto, se o desfecho for mortalidade, mais estudos são necessários. Para constar, sem parecer prescrição (cuidado), a maioria dos estudos nesta revisão usavam doses de 4 até 20 g/dia de BCAA oral.

E, agora, BCAA é útil ou inútil? Será que você não deveria avaliar “útil” para qual finalidade e “inútil” em qual situação?

Considerações Finais:

É óbvio que a suplementação de BCAA na EH, associada à cirrose, não é o único tratamento possível. Quer dizer, devem haver cuidados com as vitaminas do complexo B, alguns minerais (zinco e magnésio), outros aminoácidos (glutamina), probióticos e prebióticos, além do uso medicamentoso. Meu objetivo, contudo, era mostrar que devemos conhecer profundamente um assunto antes de sair “curtindo” tudo que se lê nas mídias sociais. É óbvio, também, que ninguém procura uma loja de suplementos esportivos para comprar BCAAs a fim de tratar cirrose ou EH, não é mesmo? Sendo assim, acredito que muitos estejam interessados no uso do BCAA no exercício e no esporte, embora já devem ter notado que trago neste Blog diferentes assuntos relacionados à saúde, sendo você sedentário, esportista ou atleta. Aguardem a “Parte 2”, pois ainda temos outras alegações sobre o uso de BCAA.