BCAA: útil ou inútil? Tudo o que você precisa
saber para não passar vergonha
Certa vez um ex-aluno me disse:
- Profe, tu viu que aquele suplemento que ensinava em aula
não serve para nada?
Aí, perguntei:
- Opa, não vi. Não sabia que eu ensinava tanta inutilidade
assim (rs). Qual suplemento está se referindo?
O ex-aluno disse:
- BCAA, profe. Esse negócio não serve para nada.
Aí, perguntei:
- Qual ou quais estudos você leu para dizer isso?
O ex-aluno respondeu:
- Não li nenhum, profe. Mas vi posts nas mídias sociais, particularmente
Instagram.
Finalmente, respondi:
- Você não acha a palavra “nada” muito abrangente? Por acaso,
BCAA é estudado apenas na nutrição esportiva? Qual papel do BCAA na nutrição
clínica? Que relação existe entre BCAA e encefalopatia hepática? Que relação
existe entre BCAA e atenuação do dano muscular induzido pelo treinamento? E as vias
metabólicas dos aminoácidos ramificados, não é um interesse bioquímico de
estudo, independente do exercício e do esporte? Os
objetivos de minhas aulas eram mostrar o BCAA como “mocinho” ou “vilão” ou
descrever as rotas bioquímicas de alguns aminoácidos e proteínas? No exercício
e no esporte, o que sabemos sobre os BCAAs na redução da fadiga? E na
hipertrofia? E na relação com quinureninas, o que sabe sobre isso? Embora
existam excelentes perfis nas mídias sociais, você não acha que deve ter
cuidado com a “Ciência do Instagram”? Se não pesquisou o assunto, você não está
sendo apenas um “papagaio de pirata” (indivíduo sem
conhecimento, que apenas repete o que os outros falam, acreditando que as
informações sejam verdadeiras, mesmo sem verificar)?
Finalmente, o ex-aluno respondeu:
- Bah Profe, agora você me deixou com VERGONHA.
Salvo a brincadeira, o que sabemos sobre
os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA)?
– PARTE 1 –
Recentemente uma avalanche de pessoas em mídias sociais afirmam
(e compartilham afirmações) que os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA, do inglês
“branched-chain amino acids”) não
servem para nada (também dizem outras palavras impróprias para a leitura). Todavia,
a palavra “nada” não lhe parece muito abrangente? Outros afirmam que os BCAAs
são inúteis. Entretanto, “útil” para qual finalidade e “inútil” em qual
situação? Além disso, ninguém sabia dessa inutilidade do BCAA no passado? De
certa forma, fomos arrastamos para o uso de BCAA, que é inútil, até os dias
atuais? Esportistas e atletas estavam, no passado e atualmente, gastando
dinheiro com algo tão inútil? Os profissionais de saúde, incluindo nutricionistas,
estavam prescrevem BCAAs por ignorância, burrice ou má índole? BCAA não possui
papel algum na nutrição clínica? Aliás, os mesmos nutricionistas que
prescreviam BCAA no passado não são os mesmos que hoje falam mal do produto
(vou poupar de citar nomes, pois sou um cara legal)? E as Instituições de
Ensino Superior (EIS), especialmente no curso de Nutrição, estavam fazendo seus
alunos perderem tempo (e dinheiro), onde os professores estavam ensinando algo
que não serve para nada, chegando a ser inútil? E os livros de nutrição, incluindo
nutrição e atividade física, tinham capítulos mentirosos sobre o BCAA?
KEEP CALM (mantenha a calma), só estou aguçando o debate, pois
colocar “pimenta nos olhos dos outros é refresco” (sendo irônico, rs). Claro,
não podemos esperar um verdadeiro “milagre” com apenas três aminoácidos
(leucina, isoleucina e valina), mas sem querer ser o “advogado de defesa”, todos
não seriam inocentes até que se prove o contrário? Em outras palavras, todos os
acusados de um ato delituoso são, presumidamente, inocentes até que a sua
culpabilidade fique legalmente provada? Sendo assim, os BCAAs são culpados ou
inocentes dessa alegação de inutilidade?
Vamos, agora, conhecer profundamente os BCAAs.
O que é um BCAA?
Os seres humanos sobrevivem pelo fluxo contínuo de energia, provenientes
dos nutrientes da dieta. Entre estes nutrientes, temos os macronutrientes:
carboidrato, lipídeo e proteína. Estes, quando fornecidos em quantidades
adequadas, garantem a saúde e sobrevivência da espécie humana. Todavia, essa
necessidade é bastante individualizada, pois depende do gênero (masculino e
feminino), idade (jovens, adultos e idosos), nível de atividade física, cenário
hormonal e estado fisiológico (ou fisiopatológico) vivido. Entre os
macronutrientes, as proteínas sempre foram alvo de admiração e polêmica.
Proteína é um assunto interessantíssimo (que merece outra postagem), mas hoje
ficaremos nos aminoácidos ou, melhor, nos BCAAs.
Os aminoácidos, advindos das proteínas, são fundamentais para
nossa sobrevivência (e não pensem que estou falando apenas de músculos
esqueléticos, necessários para nos locomovermos e “puxar um ferrinho”). E por
que precisamos deles diariamente? Essa não é uma resposta simples, mas vou
tentar resumir várias e várias páginas dos livros de bioquímica básica da seguinte
maneira: os aminoácidos exercem diferentes funções em nosso organismo, onde o nitrogênio
dos aminoácidos é utilizado para a biossíntese de proteínas musculares
(miofibrilas), para síntese de substâncias nitrogenadas com diferentes funções
(hemoglobina, mioglobina, lipoproteínas, porfirinas, ácidos nucléicos,
ferritina e transferrina) e para síntese de outros aminoácidos (via metabólica
conhecida como transaminação). Em excesso, contudo, os aminoácidos são oxidados
para a geração de energia (desaminação oxidativa).
Aliás, existe uma polêmica se o excesso de proteínas e
aminoácidos são convertidos em triglicerídeos (lipogênese) e armazenados no
tecido adiposo. Da mesma forma, existe a polêmica sobre a sobrecarga hepática e
renal com o excesso proteico. Podemos discutir essas polêmicas em outro
“textão”, mas no momento cabe dizer que as proteínas possuem inúmeras funções
em nosso organismo e, seu excesso, será utilizado para a geração de energia
celular (produção de adenosina trifosfato, ATP). É pouco provável que sejam
convertidos em “gordura” para armazenamento. Ao mesmo tempo, em indivíduos
saudáveis, sem danos hepáticos e renais prévios, a proteína não é responsável
por “falência” do fígado ou rins.
Entre os diferentes aminoácidos (que podem possuir diferentes
funções), destaca-se os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA). São
considerados BCAAs os aminoácidos leucina (Leu), isoleucina (Ile) e valina
(Val), que são aminoácidos essenciais ou indispensáveis. Então, antes de
continuar, precisamos esclarecer algumas “coisinhas”:
1.
Aminoácidos são os constituintes das proteínas e possuem um
átomo de carbono central (a), onde
estão ligados um amino-grupo (NH2), um grupo ácido ou carboxílico
(COOH), um átomo de hidrogênio (H) e uma cadeia lateral (R). Os aminoácidos,
portanto, diferem uns dos outros através de sua estrutura de cadeias laterais
(R).
2.
A união de dois resíduos de aminoácidos forma um dipetídeo,
enquanto que aquela que contém três formaria um tripeptídeo e assim por diante.
Neste sentido, quando temos um grande número de aminoácidos temos um
polipeptídeo ou cadeia polipeptídica. Os polipeptídeos, portanto, são formados
pela união de aminoácidos através da ligação peptídica, isto é, a ligação entre
o amino-grupo (NH2) e o grupo carboxila (COOH) com a liberação de uma molécula
de água. A união de vários polipeptídeos, portanto, formam as proteínas.
3.
Aminoácidos essenciais (indispensáveis) são aqueles que não
podem ser sintetizados em nosso organismo (não sofrem transaminação, sem entrar
em maiores detalhes). Dessa forma, precisam vir da dieta para existirem em
nosso organismo. Neste sentido, os aminoácidos não essenciais (dispensáveis)
podem ser sintetizados por transaminação e, dessa forma, não precisam vir da
dieta para existirem no organismo.
Beleza? Não, porquê? Professor, que “diabos” é transaminação de
aminoácidos? Calma “filho”, pois o “diabo” não tem nada a ver com isso (rs).
Deixa-me explicar.
A transaminação, simplificando o processo, é quando os aminoácidos
ingeridos em excesso nas dietas são transformados naqueles ingeridos em menores
quantidades. Para tanto, ocorre a distribuição do nitrogênio entre os vários
aminoácidos, onde o aminoácido glutamato tem grande participação. Neste
sentido, os aminoácidos não essenciais podem ser sintetizados por transaminação,
pois o organismo consegue sintetizar o a-cetoácido
correspondente a um determinado aminoácido e ocorre a redistribuição do
amino-grupo (por isso não precisam vir da dieta para existirem no organismo).
Já os aminoácidos essenciais, como foi dito, devem vir da dieta, pois não podem
ser sintetizados por transaminação.
Que tal conhecer (ou “decorar”, se preferir) os aminoácidos
essenciais e não essenciais? Para tanto, apresento a sigla “PVT MIT HALL” para
os aminoácidos essenciais, cujo cada letra indica um aminoácido em questão, ou
seja:
P = Phe (fenilalanina)
V = Val (valina)
T = Trp (triptofano)
M = Met (metionina)
I = Ile (isoleucina)
T = Thr (treonina)
H = His (histidina)
A = Arg (arginina)
L = Leu (leucina)
L = Lys (lisina)
Já para conhecer (ou “decorar”) os aminoácidos não essenciais, pensei
na sigla “AAA GGG CT PS”, ou seja:
A = Ala (alanina)
A = Asn (asparagina)
A = Asp (aspartato)
G = Gly (glicina)
G = Glu (glutamato)
G = Gln (glutamina)
C = Cys (cisteína)
T = Tyr (tirosina)
P = Pro (prolina)
S = Ser (serina)
Claro, vai observar que as letras “P” e “T” aparecem no “PVT MIT
HALL” e também no “AAA GGG CT PS”, o que poderia “estragar” minha brincadeira
para “decorar” (rs). Mas, mesmo assim, acredito que as siglas facilitem
bastante a memorização, desde que tome esse pequeno cuidado. Cabe destacar,
também, que alguns livros discordam sobre alguns aminoácidos na classificação
e, até mesmo, usam o termo semi-essenciais para alguns aminoácidos. Enfim, o
objetivo era lhe apresentar os 20 aminoácidos padrão, primários ou universais,
que incluem os essenciais e não essenciais.
Com base nisso, voltemos aos BCAAs, perguntando:
Quais são as propostas mercadológicas associadas aos
BCAAs?
Existem, basicamente, seis (06)
alegações (em meu ponto de vista) que precisam ser respondidas:
1) Melhoria clínica na cirrose e encefalopatia, portanto, interesse na área de nutrição clínica;
2) Manutenção da aminoacidemia (concentração de aminoácidos no sangue circulante) e fornecimento de nitrogênio aos processos metabólicos;
3) Fornecimento de energia, especialmente usado antes do treino ou
competição;
4) Hipótese de prevenção da fadiga central;
5) Auxílio na hipertrofia muscular, especialmente usado depois do
treino ou competição;
6) Atenuação do dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD, do
inglês “exercise-induced muscle damage”).
Está curioso? Se sim, estou conseguindo sua atenção e percepção
que o assunto é muito mais profundo que a “Ciência do Instagram”. Vamos, agora,
conhecer as seis (06) alegações, mas, lembre-se: a ciência não existe para
agradar a Gregos e Troianos, mas, apenas, para encontrar a melhor resposta para
as hipóteses em determinados assuntos ou, se preferir, simplesmente para sanar
as dúvidas da sociedade. Sendo assim, segura a “mão do tio” e continue a
leitura.
– ALEGAÇÃO N.1 –
BCAA, Cirrose e Encefalopatia Hepática
Um estudo multicêntrico e randomizado, em 2003, comparou a
suplementação nutricional de BCAA versus lactoalbumina ou maltodextrina em 174
pacientes com cirrose avançada. Cabe lembrar que a cirrose pode evoluir para
encefalopatia hepática (EH). O estudo concluiu que na cirrose avançada, a
suplementação de BCAA oral de longo prazo é útil para prevenir a insuficiência
hepática progressiva (Nutritional supplementation with branched-chain amino acids in
advanced cirrhosis: a double-blind, randomized trial. Gastroenterology 124(7): 1792-1801, 2003).
Em outro estudo randomizado, porém em 2018, observou que o uso
de BCAA aumentou a perfusão cerebral de pacientes com encefalopatia hepática (EH).
Este estudo comparou a perfusão cerebral e a melhora clínica durante a
suplementação de leucina e isoleucina (Which of the branched-chain
amino acids increases cerebral blood flow in hepatic encephalopathy? A
double-blind randomized trial. Neuroimage
Clin 28(19): 302-310, 2018).
Vejamos, agora, o que diz o livro Fundamentos de Nutrição
e Dietoterapia (1997), da autora Sue Rodwell Willians, sobre
o assunto. Segundo o livro (que é antigo, mas está em minha estante de livros),
o acúmulo de substâncias tóxicas no sangue, em decorrência da insuficiência
hepática, contribui para a encefalopatia hepática (EH). Quer dizer, o fígado
doente não consegue exercer a detoxificação da amônia (NH3) através
do ciclo da uréia, cujo NH3 é oriundo de aminoácidos. A terapia
nutricional na EH baseia-se na terapia nutricional, controlando o teor proteico
e administração de BCAAs. A ingestão proteica deve ser baixa, justamente porque
o fígado não consegue lidar com o excesso de nitrogênio oriundo de aminoácidos.
O teor proteico diário depende, obviamente, da gravidade da doença. Ao mesmo
tempo, os BCAAs não são metabolizados no tecido hepático, mas, sim, nos
músculos esqueléticos. Sendo assim, o uso clínico da suplementação de BCAA, em
fórmulas de suporte nutricional (enteral e parenteral), torna-se uma importante
estratégia na doença hepática e EH. Aliás, neste livro encontramos a seguinte
passagem: o uso clínico de BCAA pode aumentar as chances de sobrevivência dos
pacientes com EH.
Entendeu? Não? Tudo bem, vamos “mastigar” um pouco mais o
assunto com o auxílio de dois excelentes livros de bioquímica: Bioquímica
Ilustrada de Harper, de Victor W. Rodwell et al. (2016); e Fundamentos
de Bioquímica, de Donald Voet, Judith G. Voet e Charlotte W. Pratt (2000). O sítio
primário para a degradação da maioria dos aminoácidos, oriundos da dieta, é o
fígado. Isso ocorre porque no tecido hepático temos altas concentrações de
enzimas capazes de degradar os aminoácidos, conhecidas como aminotransferases. Todavia,
existe uma exceção: os BCAAs. No tecido hepático temos baixas concentrações
destas enzimas capazes de degradar aminoácidos de cadeia ramificada, o que resulta
em sua liberação para a circulação. Estes BCAAs (não catabolizados no fígado)
são captados pelos músculos esqueléticos (mas, também, rins, coração e cérebro).
Nos músculos esqueléticos, temos altas concentrações de aminotransferases de
cadeia ramificada (BCAT) e de desidrogenases dos a-cetoácidos
de cadeia ramificada (BCKADH).
Enfim, os BCAAs não dependem exatamente do fígado para serem
catabolizados, estando o fígado doente ou não. Quer dizer, não faria a menor
diferença. Ou, se preferir, os BCAAs podem ser catabolizados independente do
fígado saudável ou doente. O paciente com doença hepática (cirrose) e encefalopatia
hepática (EH), se pensarmos logicamente sobre o assunto, deveria ter uma dieta
com baixo teor proteico e, ao mesmo tempo, poderia se beneficiar com fórmulas
contendo BCAAs. Dessa forma, uma fonte energética é garantida, além de uma
pequena fonte de nitrogênio para funções básicas de sobrevivência.
Beleza, mas o que diz a literatura à respeito disso? E,
professor, poderia falar um pouco mais sobre a encefalopatia hepática (EH) e
BCAA? Claro, vamos lá.
A encefalopatia hepática (EH) é uma disfunção cerebral causada
por insuficiência hepática e/ou shunt
portossistêmico (anomalia vascular que permite a passagem de sangue da veia
porta hepática diretamente para a circulação sistêmica e, dessa forma, as toxinas
não são removidas e metabolizadas pelo fígado, mas, sim, permanecem na
circulação). Em outras palavras, na insuficiência hepática ou shunt portossistêmico as toxinas chegam
ao sangue, que acabam promovendo uma disfunção cerebral, incluindo alterações neurológicas
e/ou psiquiátricas. Pacientes cirróticos, por exemplo, evoluem para HE, se não
tratados. A EH pode ser episódica, recorrente ou persistente, o que requer o
diagnóstico e tratamento adequado. O tratamento na EH difere de literatura para
literatura, mas uma grande parte sugere manter um aporte calórico elevado
(35-40 kcal/kg/dia) com baixo (ou razoável) aporte proteico (1,2 g/kg/dia) a
fim de evitar perda de peso e contornar a desnutrição do paciente. O uso de
lactulose (dissacarídeo com efeito prebiótico e laxante) e metronidazol
(antibiótico) também são observados (embora exista controversa sobre o
metronidazol e inúmeros efeitos adversos, incluindo danos renais). Em casos
graves de doença hepática, os trabalhos sugerem que o transplante hepático é
uma opção viável.
Aliás, vejamos o que diz o famoso livro Robins &
Cotran, Patologia – Bases Patológicas das Doenças (2016). A
encefalopatia hepática (EH) é manifestada por um espectro de perturbações da
consciência, variando de anormalidades comportamentais até confusões acentuadas.
A EH pode evoluir para o coma e óbito. Os principais sinais neurológicos incluem
rigidez, hiper-reflexia (atividade aumentada dos reflexos) e asterixe/asterixis
(tremor no punho ou movimentos de extensão-flexão). Há comprometimento na neurotransmissão
no sistema nervoso central (SNC), que também afeta o sistema neuromuscular,
estando associada a elevação dos níveis de amônia (hiperamonemia). Ocorre,
assim, edema cerebral generalizado.
Já para Krause – Alimentos, Nutrição e Dietoterapia (2018), de L.
Kathleen Mahan e Janice L. Raymond, os sintomas da EH apresenta estágios,
onde destacam-se: Estágio I (confusão leve, agitação, irritabilidade,
transtorno do sono e diminuição da atenção); Estágio II (letargia,
desorientação, comportamento inadequado e sonolência); Estágio III (sonolento,
porém reativo, fala incompreensível, confuso e comportamento agressivo quando
acordado) e Estágio IV (coma).
Quanto ao suporte nutricional, podemos explorar um “pouquinho”
mais o assunto com o estudo de Laís Augusti et al.,
publicado Nutrire 39(3): 338-347, 2014, cujo título seria “Ingestão
proteica na encefalopatia hepática: panorama atual”. Neste
estudo, observamos que a EH está presente em 30-45% dos pacientes com cirrose e
em 80% dos pacientes com EH mínima. A fisiopatologia na EH é complexa, mas o acúmulo
sistêmico de subprodutos do metabolismo, especialmente amônia (NH3),
é de grande interesse. A NH3 atravessa a barreira hematoencefálica
(BHE), sofrendo conversão para glutamina, que favorece ao edema em astrócitos.
Na realidade, ajustando um pouco a rota bioquímica descrita no estudo,
glutamato (Glu) + ATP + NH4+ é convertido em glutamina (Gln)
+ ADP + Pi pela glutamina sintetase.
Estudos da década de 50, interessantemente, mostraram que a
restrição proteica poderia controlar as crises de EH, como descrito por Phillips
G.B. et al. (The syndrome of impending hepatic coma in patients with cirrhosis
of the liver given certain nitrogenous substances. N Engl J Med. 247(7): 239-246, 1952) e Schwartz R. et al. (Dietary
protein in the genesis of hepatic coma. N
Engl J Med. 251(17):685-9, 1954). Durante muito tempo,
portanto, a restrição proteica (20 g/dia) foi utilizada na prática clínica da
EH. Porém, como fica a desnutrição do paciente cirrótico neste caso? Boa
pergunta, continue lendo.
O Institute
of Medicine of the National Academies, em 2002, recomendada 56 g/dia
de proteína para adultos saudáveis do sexo masculina e 46 g/dia para mulheres
(10-35% do valor energético total, VET), justamente discordando do aporte
proteico extremamente baixo (20 g/dia) que poderia favorecer a desnutrição (ou
seja, somando complicações de saúde em um paciente já “complicado” pela doença
hepática). Cabe lembrar que a recomendação proteica para indivíduos adultos e
saudáveis, segundo a Recommended
Dietary Allowances (RDA), é de 0,8 g/kg/dia. Aliás, a recomendação normoproteica oscila
entre 0,8 e 1,2 g/kg/dia (abaixo disso chamamos de hipoproteica e, acima,
hiperproteica).
O problema, contudo, é que 50-90% dos pacientes cirróticos, que
podem evoluir para EH, são desnutridos. Então, a redução da ingestão proteica
reduz o nitrogênio oriundo das proteínas, que parece interessante em um
paciente com doença hepática (local onde a grande maioria dos aminoácidos são
degradados). Todavia, a redução proteica também pode favorecer a desnutrição do
paciente cirrótico e com EH, que torna-se um importante fator de risco para o
óbito. E, agora, como proceder?
Foi proposto, então, um aumento do aporte calórico (dieta
hipercalórica), porém com restrição de proteínas. Essa fato poderia reverter a
desnutrição associada ao hipercatabolismo e hipermetabolismo em paciente com
doenças hepáticas graves. Todavia, na cirrose, os hepatócitos também não armazenam
adequadamente glicogênio (um polímero de glicose prontamente disponível para a
geração de energia). Aliás, se o fígado está doente, as mais de 400 reações bioquímicas
que o fígado realizada podem estar prejudicadas. Por exemplo, pacientes
cirróticos apresentam hiperinsulinemia com resistência periférica à insulina, o
que prejudica a captação de glicose e glicogênese (formação de glicogênio). E
agora, o que pode ser feito? Podemos recorrer a bioquímica a fim de elucidar a
questão. Por exemplo, a gliconeogênese (nova formação de glicose a partir de
compostos não glicídicos, como as proteínas) poderia ser uma solução, onde as
proteínas (na realidade, o esqueleto carbônico das proteínas) poderia gerar
glicose (uma “ótima” de fonte energética). Todavia, como lidar com o nitrogênio
(amino-grupo) oriundos dos mesmos aminoácidos degradados? Ou seja, como lidar
com a amônia (NH3) se o ciclo da uréia (processo hepático de
detoxificação da amônia) também não funciona adequadamente? Complicado, não é
mesmo? Por isso, reforço: a “Ciência do Instagram” pode ser uma péssima fonte
de informação se você não conhece profundamente alguns assuntos.
Em um estudo, de 2013 (Francislene Juliana Martins et
al. Nutrição em paciente cirrótico. HU
Revista, Juiz de Fora, 39: 3-4, 2013) relata que a restrição
proteica na cirrose deve ser adotada de forma personalizada, especialmente nos
casos de EH. Neste sentido, a recomendação proteica oscila entre 1,2 e 1,5
g/kg/dia. E os BCAAs, onde entram nessa discussão? Claro, segundo autores,
pacientes cirróticos suplementados com BCAA apresentam melhorias significativas
do estado nutricional, inclusive estimulação da regeneração hepática. Este
estudo traz uma passagem interessante de leitura: a suplementação com BCAA retarda
a progressão da enfermidade hepática e prolonga a sobrevivência e a qualidade
de vida do paciente com EH. Claro que BCAA, unicamente, não fará “milagres” se
o paciente não for submetido a uma dieta adequada. Neste caso, atenção especial
é dada as vitaminas (especialmente complexo B) e minerais (especialmente zinco
e magnésio), bem como outros aminoácidos (especialmente glutamina), probióticos
e prebióticos.
De acordo com Krause – Alimentos, Nutrição e Dietoterapia
(2018), de L. Kathleen Mahan e Janice L. Raymond, a prática da restrição
proteica em pacientes com EH de baixo grau é algo ultrapassado, onde a
restrição pode agravar as perdas corporais (desnutrição). Neste sentido, a
recomendação é para 1,5 g/kg/dia em proteínas. E os BCAAs? Neste ponto, os autores
dizem: os estudos conduzidos para avaliar os benefícios da suplementação de
BCAA e restrição de aminoácidos aromáticos (AAA) variam muito em tamanho de
amostra, composição das fórmulas, grau de EH, duração da terapia e grupos de
controle. Segundo Krause, não se verifica nenhuma melhora significativa ou
benefício de sobrevida com a suplementação de BCAA nestes pacientes.
Segundo a Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral, o Colégio
Brasileiro de Cirurgiões e a Associação Brasileira de Nutrologia, em sua
publicação Terapia Nutricional nas Doenças Hepáticas Crônicas e Insuficiência
Hepática (2011), não há indicação de restrição proteica de forma contínua para
os pacientes com insuficiência hepática. De fato, o fornecimento inadequado de
proteína nestes pacientes, por longos períodos, podem contribuir para proteólise
intensa de proteínas musculares e viscerais. De acordo com a Diretriz,
pacientes com cirrose e EH pode se beneficiar com dietas normocalóricas (30
kcal/dia/dia) com 1,2 g/kg/dia em proteína. E os BCAAs? A Diretriz relata que
em pacientes desnutridos, a administração de BCAA pode ser fonte de nutriente importante,
especialmente na presença de cirrose. A suplementação com BCAA traz benefícios
quanto ao perfil metabólico de aminoácidos, estado nutricional, qualidade de
vida, redução do catabolismo proteico e normalização do quociente respiratório,
trazendo, portanto, melhorias clínicas na EH. Por fim, na cirrose avançada, a
suplementação com BCAA é útil para melhorar a evolução clínica e retardar a
progressão da insuficiência hepática. Não há evidências, contudo, da redução de
mortalidade nestes pacientes suplementados com BCAA.
Talvez a melhor resposta seja: nem 8, nem 80. Ou seja, nem a
restrição proteica severa, nem o excesso proteico nas doenças hepáticas graves e
EH. Mas, professor, e os BCAAs, afinal? KEEP CALM (mantenha a calma) e releia
todos “textão” acima (rs). Vejamos, então, dois estudos recentes para finalizar
este assunto:
The Korean Association for the Study of the Liver (KASL). KASL
clinical practice guidelines for liver cirrhosis: varices, hepatic
encephalopathy, and related complications. Clinical
and Molecular Hepatology 26:83-127, 2020.
Segundo
a Diretriz KASL (Associação Coreana para o Estudo do Fígado), o tratamento na
EH envolve a manipulação de dissacarídeos não absorvíveis (lactulose e
lactitol) e antibióticos (rifaximina, um derivado da rifamicina). Os
medicamentos neomicina e metronidazol, ambos antibióticos, não são recomendados
pela KASL, devido efeitos colaterais (nefrotoxicidade e neuropatia periférica).
E os BCAAs? Os pacientes cirróticos, que podem evoluir para EH, possuem menor
capacidade de armazenamento de glicogênio hepático. Dessa forma, o catabolismo
proteico (proteínas da massa muscular, basicamente) torna-se uma importante via
metabólica para a gliconeogênese. Os BCAAs, como sabemos, são catabolizados nos
tecidos periféricos ou extra-hepáticos e se apresentam em baixas concentrações
em pacientes cirróticos. Aliás, estes pacientes apresentam maiores
concentrações de aminoácidos aromáticos (Trp, Phe e Tyr). Enfim, segundo a
Diretriz KASL, a suplementação do BCAA inibe a proteólise e diminui o fluxo de
materiais tóxicos através da barreira hematoencefálica (BHE), minimizando os
danos neurológicos na EH. Além disso, os BCAAs desempenham um papel importante
no metabolismo muscular, levando à produção de glutamina (Gln), que é útil para
desintoxicação da amônia (ciclo glutamato-glutamina).
Peraí,
não era você que dizia que BCAA não servem para “nada”? Tudo bem, vejamos outro
estudo recente.
Gluud L.L. et al. Branched-chain amino acids for people with
hepatic encephalopathy (Review). Cochrane
Database of Systematic Reviews, 2020.
Nessa
revisão sistemática de Cochrane, com 11 ensaios clínicos randomizados (RCT) sobre
BCAA versus intervenções de controle
(placebo, dietas, lactulose ou neomicina) na EH, podemos encontrar algumas
respostas interessantes. Aliás, estamos falando de uma revisão sistemática com
estudos randomizados, realizado pela Cochrane, portanto, “altíssimo” grau de
evidência científica. O estudo é “gigante” (leiam) e, portanto, vamos direto
aos resultados e conclusões. Os resultados mostram que o BCAA tem efeito
benéfico nas manifestações de EH associada à cirrose. Alguns pacientes,
suplementados com BCAA, experimentaram efeitos adversos considerados não graves
(sintomas gastrintestinais, como diarreia e náusea). O estudo conclui que não
houve evidência para apoiar ou refutar o uso de BCAA na mortalidade por doença
hepática e EH. Todavia, a suplementação de BCAA é benéfica na terapêutica da
cirrose e EH. Ou seja, se o desfecho for melhorias clínicas, os BCAAs tornam-se
viáveis. Entretanto, se o desfecho for mortalidade, mais estudos são
necessários. Para constar, sem parecer prescrição (cuidado), a maioria dos
estudos nesta revisão usavam doses de 4 até 20 g/dia de BCAA oral.
E,
agora, BCAA é útil ou inútil? Será que você não deveria avaliar “útil” para qual finalidade e “inútil” em qual situação?
Considerações
Finais:
É óbvio que a suplementação de BCAA na EH, associada à cirrose,
não é o único tratamento possível. Quer dizer, devem haver cuidados com as vitaminas
do complexo B, alguns minerais (zinco e magnésio), outros aminoácidos (glutamina),
probióticos e prebióticos, além do uso medicamentoso. Meu objetivo, contudo,
era mostrar que devemos conhecer profundamente um assunto antes de sair
“curtindo” tudo que se lê nas mídias sociais. É óbvio, também, que ninguém
procura uma loja de suplementos esportivos para comprar BCAAs a fim de tratar
cirrose ou EH, não é mesmo? Sendo assim, acredito que muitos estejam
interessados no uso do BCAA no exercício e no esporte, embora já devem ter
notado que trago neste Blog diferentes assuntos relacionados à saúde, sendo
você sedentário, esportista ou atleta. Aguardem a “Parte 2”, pois ainda temos
outras alegações sobre o uso de BCAA.