quinta-feira, 17 de novembro de 2022

“CORTAR” CARBOIDRATOS PARA PREVENIR E TRATAR DIABETES?

 

“CORTAR” CARBOIDRATOS PARA PREVENIR E TRATAR DIABETES?

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 



Olá, tudo bem? Segundo noticiários, um novo estudo diz que "cortar" carboidratos previne e trata diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Quando surgem notícias assim, tipo “carboidrato é o vilão”, logo penso: o pessoal leu o estudo na íntegra antes de compartilhar e expressar sua “opinião pessoal”? Bem, eu li e vamos conversar sobre “cortar” carboidratos e diabetes.

 

Pois bem, vejamos a notícia que circulou nos noticiários e nas mídias sociais:

 

“Cortar” carboidratos da dieta previne e trata DM2, reduzindo o “açúcar do sangue” em pessoas com diabetes e não medicadas. O novo estudo, publicado na JAMA em 2022, com 150 participantes diz que “cortar” carboidratos diminui Hb1Ac (hemoglobina glicada), que é um marcador para os níveis de “açúcar no sangue”. Essas descobertas são importantes para pessoas pré-diabéticas com altos níveis de Hb1Ac.

Nas mídias sociais, o assunto repercutiu assim:

O diabetes mellitus tipo 1 (DM1) é um estado permanente, que corresponde apenas 10% da doença. O diabetes mellitus tipo 2 (DM 2) responde por 90% dos casos, onde nós mesmos causamos. O DM2 é uma doença adquirida pelos hábitos errados, como etilismo, má alimentação e sedentarismo.

 

Me diga: você leu o estudo na íntegra?

Você realmente acha que DM2 é apenas sua culpa?

 

Beleza! O estudo novo, publicado na JAMA, em 2022, é este:

DORANS, Kirsten S. et al. Effects of a low-carbohydrate dietary intervention on hemoglobin A1c: a randomized clinical trial. JAMA Network Open 5(10):e2238645, 2022.

(doi: 10.1001/jamanetworkopen.2022.38645).

 

Qual delineamento do estudo?

Trata-se de um ensaio clínico randomizado com duração de 6 meses. Os participantes eram adultos (entre 40 e 70 anos de idade), de ambos os sexos, que foram randomizados em 2 grupos.

Grupo 1: participantes (n=75) submetidos à dieta de baixo carboidrato (low carb), ou seja, < 40 g de carboidrato por 3 meses; e < 60 g de carboidrato por mais 3 meses.

Grupo 2: participantes (n=75) que deveriam seguir sua dieta habitual ou usual.

Quer dizer, 2.722 participantes elegíveis, após análise dos critérios de inclusão e exclusão, sobraram 150 participantes, divididos em 2 grupos.

Como desfecho primário temos a mensuração de Hb1Ac (hemoglobina glicada), cujo média foi 6,15% no início do estudo.

 

Peraí, vamos falar de Hb1Ac antes de continuar?

 

HbA1c (hemoglobina glicada) mede uma fração da hemoglobina (proteína presente nas hemácias) ligada à glicose no sangue, ou seja, ocorreu uma reação bioquímica, não catalisada por enzima, lenta e irreversível, entre a proteína e a glicose (glicação proteica).

Aliás, muita gente chama HbA1c de hemoglobina glicada ou glicosilada, mas o termo correto é “glicação” e não “glicosilação”. Deixa-me explicar: a glicação é uma reação não enzimática e irreversível, enquanto que a glicosilação é uma ligação enzimática e instável.

Além disso, existem vários tipos de HbA1 (HbA1a1, HbA1a2, HbA1b e HbA1c), sendo a fração HbA1c (ou apenas A1c) é mais estável e irreversível e, portanto, usada como critério diagnóstico para diabetes.

Como a hemoglobina (Hb) tem meia-vida de aproximadamente 120 dias, o teste de Hb1Ac permite avaliar essa glicação por um período prolongado, ou seja, dos últimos 120 dias anteriores ao teste. Sendo assim, esse teste possui vantagens em relação a glicemia de jejum, que é afetada por variações normais de curto prazo.

Todavia, Hb1Ac possui baixa sensibilidade (capacidade de discriminar, entre os doentes, aqueles que efetivamente são doentes; ou probabilidade de um teste dar positivo em quem realmente está doente) e alta especificidade (capacidade que o mesmo teste tem de ser negativo em uma amostra de indivíduos sabidamente não doentes ou sadios; ou probabilidade de um teste dar negativo em quem realmente não possui a doença) em identificar DM diagnosticado. Ou seja, não existem testes 100% perfeitos: para HbA1c temos 86% para sensibilidade (ou seja, que não deixa escapar qualquer chance de doença) e 95% de especificidade (ou seja, que permite afastar outras hipóteses e determinar o diagnóstico preciso).

 

Peraí, porque glicemia e Hb1Ac elevadas são ruins?

 

Boa pergunta, que muitas pessoas não sabem explicar.

Portanto, vamos lá:

É importante que a glicemia e Hb1Ac não estejam elevadas nas pessoas, pois a hiperglicemia (e consequentemente aumento de Hb1Ac) facilita a autooxidação da glicose; glicação de enzimas e proteínas (incluindo hemoglobina e transferrina); geração de superóxido (uma espécie reativa de oxigênio, ROS); aumento nos depósitos de ferritina no fígado (portanto, inflamação); distúrbios em células endoteliais e reações oxidativas na parede vascular (portanto, aterogênese); geração de produtos finais de glicação avançada (AGE, Advanced Glycation End products); e redução do vasodiltador óxido nítrico (NO) com aumento de vasoconstritor endotelina-1 (ET-1), favorecendo as doenças cardiovasculares e efeitos aterogênicos. Em resumo, a hiperglicemia prolongada promove inflamação e lesões que podem afetar os olhos, nervos, vasos sanguíneos, coagulação sanguínea, tecidos e órgãos.

 

Os valores de referência para glicemia de jejum são:

Normal: < 100 mg/dL (outros laboratórios: 65-99 mg/dL)

Pré-diabetes: 100-125 mg/dL

DM2: > 125 mg/dL

 

Os valores de referência ou critérios laboratoriais para HbA1c são:

Hb1Ac normal: < 5,7%

Hb1Ac pré-DM: 5,7-6,4%

Hb1Ac no DM2: > 6,4%

Fonte: Diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes (https://diretriz.diabetes.org.br/diagnostico-e-rastreamento-do-diabetes-tipo-2/).

 

Para maiores curiosidades, leiam:

Fonte: Augusto Pimazoni Netto et al. Atualização sobre hemoglobina glicada (HbA1C) para avaliação do controle glicêmico e para o diagnóstico do diabetes: aspectos clínicos e laboratoriais. J Bras Patol Med Lab 45(1): 31-48, 2009.

Vamos voltar ao estudo publicado na JAMA (2022)?

 

No grupo “dieta pobre em carboidratos” (n=75) temos: 54 mulheres (72%) e 21 homens (28%); peso médio de 102,6 kg; IMC (índice de massa corporal) médio de 36,6 kg/m2 (portanto, Obesidade Grau 2); HbA1c média de 6,17% (Hb1Ac normal: < 5,7%); glicemia de jejum (média) de 108,3 mg/dL (normalidade: < 100 mg/dL); e insulina (média) de 30,9 µUI/L (normalidade: 0,5-13,8 µUI/L).

No grupo “dieta usual” (n=75) temos: 54 mulheres (72%) e 21 homens (28%); peso médio de 96,4 kg; IMC (índice de massa corporal) médio de 35,3 kg/m2 (portanto, Obesidade Grau 2); HbA1c média de 6,14% (Hb1Ac normal: < 5,7%); glicemia de jejum (média) de 101,2 mg/dL (normalidade: < 100 mg/dL); e insulina (média) de 29,3 µUI/L (normalidade: 0,5-13,8 µUI/L).

Ou seja, os grupos são muito parecidos!

 

Peraí, o que é uma dieta pobre em carboidrato?

 

Neste estudo, dieta pobre em carboidrato seria < 40 g de carboidrato por 3 meses, seguido de < 60 g de carboidrato por mais 3 meses (totalizando, 6 meses de experimento). Portanto, cabe lembrar: dieta low carb teria cerca de 100-120 g/dia de carboidrato e não ultrapassa 130 g/dia (dessa forma, não ocorre cetose). Já uma dieta cetogênica tem cerca de 50 g de carboidrato diariamente, mas pode oscilar de 20-30 g/dia (neste caso, ocorre cetose). Por fim, uma dieta Paleo (paleolítica) busca evitar os alimentos industrializados, não sendo necessariamente pobre em carboidratos. O estudo publicado na JAMA (2022) referiu-se à implementação de uma dieta low carb, o que não seria absolutamente verdadeiro, pois fornece 40-60 g/dia de carboidrato (e não 100-120 g/dia, no máximo 130 g/dia). O estudo lembra uma dieta cetogênica quando fornece apenas 40 g/dia de carboidrato, mas depois aumenta para 60 g/dia, não se enquadrando (ou seja, ultrapassou 50 g/dia). Não quero ser chato com termos conceituais, mas acho importante salientar!

 

E quais foram os resultados do estudo JAMA (2022)?

 

Pois bem, houve redução, considerada estatisticamente significativa, de 0,23% (em 3 meses tratamento) e 0,26% (ao final de 6 meses) na HbA1c no grupo “dieta de baixo carboidrato” quando comparado ao grupo “dieta usual” (redução de 0,07% em 3 meses e 0,04% em 6 meses).

 

Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

  

Quanto a glicemia de jejum, também houve redução no grupo “dieta de baixo carboidrato”, ou seja, reduziu 2,4 mg/dL (em 3 meses) e 8,4 mg/dL (em 6 meses). Quando se compara o grupo “dieta de baixo carboidrato” com o grupo “dieta usual”, a diminuição considerada estatisticamente significativa (10,3 mg/dL) ocorreu somente nos 6 meses de tratamento.

 

Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

 

 O peso corporal também reduziu, de forma mais significativa, no grupo “dieta de baixo carboidrato”, após 6 meses (diferença entre os grupos de 5,9 kg).

 

Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

 

Por fim, não houve diferença significativa no perfil lipídico (colesterol total, LDL-colesterol e HDL-colesterol) entre os grupos. 

 

O QUE PODEMOS CONCLUIR?

Pois bem, para indivíduos adultos, não tratados, a dieta com baixo teor de carboidrato reduziu a HbA1C de 6,15% (média basal registrada) em 0,23% após 6 meses quando comparado a dieta usual. Ou seja, passou de 6,15% para 5,92%. Devemos lembrar que a normalidade para Hb1Ac é < 5,7%.


Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

 

OK, deixa-me falar: não achei os resultados surpreendentes, especialmente considerando pacientes com IMC de Obesidade Grau 2, ou seja, que poderiam estar em risco de saúde. O valor obtido, após longos 6 meses de experimento, ainda deixou Hb1Ac acima do valor de normalidade. Me desculpem, mas é uma redução modesta que não me surpreende. Aliás, a diferença entre os dois grupos (pobre em carboidrato e usual) foi de apenas 0,16%, portanto, qual vantagem da restrição de carboidratos para prevenir e tratar DM2?

 

Agora que comecei, deixa-me falar (rs):

 

O grupo usual não fez mudança alguma em sua dieta habitual ou estilo de vida e, mesmo assim, conseguiu redução discreta nos parâmetros avaliados, mesmo que não significativo do ponto de vista estatístico. Portanto, se o desfecho primário do estudo foi mensuração de Hb1Ac (basal: 6,15%) esperando mudanças positivas (< 5,7%) como explicar a discreta diferença entre o grupo “baixo carboidrato” e “usual”?

 

Ainda, você observou o aporte energético (calorias) das dietas?

 

Ao iniciar o estudo, os pacientes do grupo “baixo carboidrato” consumiam 1890 kcal/dia, enquanto que o grupo “usual” ingeria 1789 kcal/dia. Na primeira fase (3 meses), o grupo “baixo carboidrato” passou para 1447 kcal/dia e grupo “usual” para 1701 kcal/dia. Na última fase (6 meses), o grupo “baixo carboidrato” estava ingerindo 1439 kcal/dia, enquanto que o grupo “usual” consumia 1757 kcal/dia.

 

Minha pergunta seria:

A modesta redução em Hb1Ac, no grupo “baixo carboidrato”, não se deve a redução das calorias da dieta, que culminou com redução do peso? Quer dizer, é justo comparar um grupo com redução calórica e outro grupo sem redução de calorias? O desenho do estudo pode determinar os efeitos da redução de carboidratos sobre Hb1Ac, independente da ingestão calórica?

 

Portanto, lembram do que falei no início da conversa: as pessoas adoram compartilhar e expressar “opinião pessoal” sem ler o estudo na íntegra, portanto, posso afirmar que dieta pobre em carboidratos preveni e trata DM2?

 

Prof., existem outras limitações no estudo?

 

SIM, onde os próprios autores salientam as limitações. Uma das limitações já foi descrita acima, ou seja, não podemos determinar os efeitos da dieta pobre em carboidratos sobre a redução de Hb1Ac, independente da ingestão calórica. Os autores também questionam como seriam os resultados se os pacientes tivessem administrado medicamentos para baixar a glicemia (hipoglicemiantes orais). Destacam, ainda, que a ingestão calórica obtida como referência deve-se ao autorrelato de ingestão alimentar e, portanto, está sujeito ao erro por interpretação e memória. Tentou-se contornar o problema com recordatório de 24 horas, em alguns pontos determinados do estudo. Mas, como sabemos, existem prós e contras dessa estratégia (falarei dos tipos de inquéritos alimentares em outro post). Agora, existe um ponto muito importante como limitante do estudo: os participantes do grupo de “baixo carboidrato” tiveram interações e intervenções frequentes sobre seus hábitos alimentares, enquanto que o grupo “usual” nada sofreu. Quer dizer, você garante todo controle e motivação para um grupo, mas abandono o outro grupo. Quer dizer, não seria óbvio esperar diferenças entre os mesmos? Claro, tentou-se contornar este fato com sessões mensais sobre temas “não relacionados à dieta ou saúde” (e, óbvio, não é mesma coisa que ocorreu no grupo “baixo carboidrato”). Em outras palavras, me surpreende a adesão, nos dois grupos, ter sido adequada (pois a tendência seria abandono do grupo “usual”). Cabe lembrar, por fim, que 150 pacientes (75 em cada grupo) é, ainda, considerada uma amostra pequena na população, especialmente quando pensamos da terapêutica da obesidade e diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Os autores também salientam que não coletar informações sobre a composição corporal foi uma grande falha (concordo plenamente).

 

MINHAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Quando um “expert” das mídias sociais falar “dieta pobre em carboidrato” previne e trata o DM2 e/ou obesidade, pergunte: você leu e entendeu o estudo científico? AHHHH, mas “diabetes mellitus tipo 2 ou DM2 é causada por nós mesmo”, diz o “expert”, o que você responderia, professor? Buenas, te conto em outro post.

 

Lembre-se: se gostou pode compartilhar, desde que citado a fonte: Prof. Joelso Peralta no Blog: https://peraltanutri.blogspot.com. Ahhh, siga-me nas redes sociais (FACE: Joelso Peralta; Instagram: @peraltanutri).  

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

DIETA CETOGÊNICA, DIETA PALEOLÍTICA E DIETA LOW CARB: VOCÊ SABE A DIFERENÇA?

 

DIETA CETOGÊNICA, DIETA PALEOLÍTICA E DIETA LOW CARB: VOCÊ SABE A DIFERENÇA?

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 


Olá pessoal, tudo bem? Hoje quero falar de uma confusão bastante comum: as semelhanças e diferenças entre a dieta cetogênica (keto diet), a dieta paleolítica (paleo diet) e a dieta pobre em carboidratos (low carb diet). Aliás, quero ir mais longe: essas “dietas” são melhores para emagrecer quando comparadas às dietas de baixa caloria (dietas hipocalóricas), sem restrição de um macronutriente? Vamos lá!

 

O QUE É UMA DIETA CETOGÊNICA?

A dieta cetogênica é um tratamento dietética rico em lipídeos e proteínas, mas pobre em carboidratos. Entre 1920 e 1930, a dieta cetogênica ganhou força na terapêutica da epilepsia, que é uma doença em que ocorre perturbação na atividade das células nervosas, temporárias e reversíveis, com manifestações motoras, sensitivas e/ou psíquicas, ocorrendo na forma de crises repetidas, comumente chamadas de ataques epilépticos, segundo o Código Internacional de Doenças (CID-10, através do código G40).

Em outras palavras, a epilepsia é um distúrbio cerebral que resulta no desenvolvimento de redes neuronais predispostas à ocorrência e recorrência de crises epilépticas sintomáticas. A dieta cetogênica era uma opção de tratamento na época, mas não funcionava para todos os pacientes epilépticos. Por exemplo, a dieta cetogênica era mais efetiva em crianças e adolescentes quando comparado aos indivíduos adultos epilépticos. Ao mesmo tempo, a dieta cetogênica não funcionava para todas as crianças e adolescentes, ou seja, não funcionou em 100% dos casos. Dessa forma, a partir de 1940, surgiram algumas drogas antiepilépticas. Algum tempo depois, surgiram técnicas de tratamento cirúrgico, após análise de imagem cerebral.

Atualmente, existem mais de 20 medicamentos antiepilépticos (AEDs, antiepileptic drugs) aprovados para uso na doença epiléptica. Estes medicamentos não “curam” a epilepsia, mas apenas aliviam as convulsões. Portanto, além dos medicamentos, os pacientes também participam de ações de autocuidado (por exemplo, horas adequadas de sono; fazer refeições com horários regulares; identificação de fatores que predispõem as crises, etc.) e terapias psicossociais. Também existe, atualmente, algumas linhas de pesquisa sobre os efeitos da neuromodulação (estimulação elétrica de nervo vago, por exemplo) na epilepsia.

 

Como é o planejamento da dieta cetogênica?

 

Tradicionalmente, a dieta cetogênica apresenta a proporção de 3:1 entre gorduras e proteínas, ou seja, possui três vezes mais gordura do que proteína. A proporção de gordura para carboidratos é de 4:1 (quatro vezes mais gordura do que carboidrato). No geral, o consumo de carboidratos fica na ordem de 50 g/dia, mas pode oscilar de 20 a 30 g/dia, segundo outros autores. Quer dizer, apenas 10% ou menos do valor energético total (VET) é oriundo dos carboidratos na dieta cetogênica. Vejam, a dieta típica canadense contém 48-50% de carboidratos, 30-32% de gordura e 15-17% de proteína. No mundo ocidental, é comum observar 55-60% de carboidrato, 25-30% de gordura e 12-15% de proteína.

Não sei se percebeu, mas 50 g de carboidrato é muito pouco para um consumo diário, quer ver? Vejamos os exemplos abaixo, extraído do Manual de Contagem de Carboidratos do Instituto da Criança com Diabetes (ICD), de 2011:

 

Alimentos                                    Medida Caseira                 Carboidratos

Arroz integral                             1 colher de sopa (20 g)                5 g

Farinha de centeio integral        1 colher de sopa (15 g)                11 g

Pão caseiro                                 1 fatia (50 g)                               32 g

Bolo de banana                           1 fatia (50 g)                               33 g

Biscoito recheado                        1 unidade (12 g)                          8 g

Banana caturra                            ½  unidade (30 g)                        7 g

Maçã                                          1 unidade (130 g)                        20 g

Iogurte natural desnatado            1 copo/pote (200 ml)                   12 g

Pizza mussarela (muçarela)         1 fatia (120 g)                              24 g   

Chocolate ao leite                        1 barra (180 g)                            102 g 

 

Trouxe apenas poucos exemplos, mas já deve gerar uma boa discussão (rs). Por exemplo, se você consumir 2 colheres de sopa de arroz integral no almoço e mais 2 colheres no jantar (que é bastante comum) já teria 20 g/dia de carboidrato (cada colher tem 5 g de carboidrato). Considerando apenas a recomendação de 50 g/dia na dieta cetogênica, restaria apenas 30 g. Imaginem seguir 20-30 g/dia de carboidrato em uma dieta cetogênica? Agora, se você fez uma preparação alimentar com farinha de centeio integral e, digamos, usou 3 colheres de sopa (45 g), teria atingido facilmente 33 g/dia de carboidrato, restando apenas 17 g. O que consegue comer diariamente para completar 17 g de carboidrato? Percebeu como é difícil seguir uma dieta cetogênica clássica?

Vejamos outros exemplos:

Você gosta de pão, bolo e biscoito recheado? Pois bem, se você comer 1 fatia (50 g) de pão caseiro (ou seja: 32 g de carboidrato) no café da manhã; cerca de 4 biscoitos recheados (48 g) no lanche da tarde de peso (ou seja: 8 g de carboidrato por unidade x 4 unidades = 32 g de carboidrato); e 1 fatia de bolo de banana (50 g) na ceia (ou seja: 33 g de carboidrato), teria 97 g/dia de carboidrato. Quer dizer, ultrapassou facilmente a recomendação de 50 g/dia na dieta cetogênica. Complicado, não é mesmo?

Peraí, deixa-me exemplificar ainda mais:

Você resolve fazer as seguintes refeições: 1 pote (200 ml) de iogurte natural desnatado no café da manhã (ou seja: 12 g de carboidrato) com 1 unidade (60 g) de banana caturra picada (ou seja: 14 g de carboidrato). No meio da tarde, resolve comer 1 maçã (130 g, ou seja: 20 g de carboidrato). Calculou aí? Pois é, teria 46 g/dia de carboidrato, restando para o dia inteiro apenas 4 g de carboidrato. O que consegue comer para completar 4 g de carboidrato diário?

Para finalizar, veja esse exemplo:

Digamos que resolva sair com os amigos, que querem muito ir em uma pizzaria. Você aceita, mas afirma: “Pessoal, não quero exagerar”. Neste sentido, se limita em consumir apenas 3 fatias (360 g totais) de pizza de mussarela (ou seja: 72 g de carboidrato, onde cada fatia tem 24 g de carboidrato). Você quer evitar as deliciosas pizzas doces e o refrigerante, então opta por consumir um pedaço de chocolate ao leite (45 g ou ¼ de uma barra grande de 180 g). Vejamos, 1 barra (180 g) tem 102 g de carboidrato. Você comeu apenas 1 pedaço (180 g dividido por 4 partes = 45 g). Isso significa que consumiu 25,5 g de carboidrato (102 g dividido por 4 partes = 25,5 g de carboidrato). Nessa pequena “festinha” na pizzaria, com seus amigos, obteve 97,5 g de carboidrato, sendo que a dieta cetogênica prevê apenas 50 g/dia, compreendeu?


Portanto, você realmente sabia disso?

 

Professor, qual mecanismo bioquímico da dieta cetogênica na epilepsia?

 

HUMMM, gosto muito dessa pergunta. Bioquimicamente falando, os lipídeos dietéticos (basicamente triglicerídeos) são degradados pela beta-oxidação dos ácidos graxos a fim de fornecer energia (ATP, adenosina trifosfato), mas também geram corpos cetônicos (combustíveis alternativos aos tecidos, especialmente cérebro) através da cetogênese/cetólise. Os corpos cetônicos perfazem três componentes: beta-hidroxibutirato (BHB), acetoacetato e acetona. BHB e acetoacetato circulam livres no sangue (cetonemia), enquanto que acetona é eliminado pela expiração (hálito cetônico ou “hálito de maçã verde”). Em suma, a cetogênese (formação de corpos cetônicos) é um processo hepático e, como o fornecimento de lipídeos na dieta cetogênica é elevado, sua formação também é elevada.

É impossível consumir tanta gordura isoladamente, quer dizer, muitos produtos de origem animal (carnes vermelhas, brancas, peixes e ovos), permitidos na dieta cetogênica, são ricos em gordura e proteína. Dessa forma, a restrição de macronutriente, na dieta cetogênica, baseia-se no carboidrato (cerca de 50 g/dia ou 20-30 g/dia para outros autores). Acredita-se que o BHB, um dos corpos cetônicos, consiga reduzir as crises epilépticas, mimetizando (imitando) neuroquímicos deficientes e/ou “ativando” formas primitivas para a utilização de corpos cetônicos no metabolismo (digo, metabolismo infantil, pois em adultos não se mostrou eficiente).

 

Professor, posso usar uma dieta cetogênica para emagrecer?

Meu jovem, minha jovem, de onde você extraiu essa ideia? É óbvio que restringir o consumo de carboidratos (50 g/dia ou menos) pode acabar reduzindo as calorias de uma dieta, ou seja, promover o déficit calórico ou energético e, consequentemente, perder peso e gordura corporal. Todavia, a dieta cetogênica não surgiu para essa finalidade.

Deixa-me ser mais claro:

Se você restringir carboidratos, especialmente aqueles carboidratos simples, de elevado índice glicêmico, de elevada carga glicêmica, sua saúde irá agradecer. Com base nisso, suas calorias diárias vão reduzir (dieta de baixa caloria). Portanto, você pode emagrecer em decorrência da baixa caloria alimentar e não pela restrição de carboidratos. Essa é uma questão básica da bioenergética. É uma questão básica da termodinâmica. De forma similar, se você “cortar” calorias advindas dos produtos de origem animal (carnes, especialmente) irá emagrecer, pois estará promovendo o déficit calórico. Se você reduzir o consumo de doces e guloseimas em geral vai emagrecer, pois as calorias diárias são menores do que no passado. Aliás, se você sair do sedentarismo para uma pessoa extremamente ativa, mesmo sem grandes restrições alimentares, vai emagrecer, pois a matemática é simples: estará “comendo menos e gastando mais”.

NOTA: Claro, não é tão simples, pois vivemos em ambientes obesogênicos e precisamos entender melhor a complexidade do controle hipotalâmico de fome e saciedade.

Buenas, agora que entendeu a dieta cetogênica, posso elucidar rapidamente a dieta paleotítica (dieta Paleo) e dieta low carb.

 

O QUE É UMA DIETA PALEOLÍTICA?

Como o próprio nome diz, dieta paleolítica (dieta Paleo) tenta “imitar”, dentro do possível, o ambiente alimentar da Era Paleolítica. Neste sentido, alimentos industrializados, processados e ultraprocessados são proibidos. Não existe uma proibição quando ao consumo de carboidratos, como muitos erroneamente pensam, mas, sim, são permitidos os carboidratos oriundos de vegetais e frutas (portanto, teoricamente presentes entre nossos ancestrais comuns).

Na “Dieta dos Homens das Cavernas”, digamos assim, os alimentos alterados ou manipulados pela indústria não são permitidos. Dessa forma, você não encontrará na dieta Paleo: grãos e cereais (trigo, aveia e soja), leguminosas (feijão e grão-de-bico), leite e derivados, açúcar refinado, alimentos industrializados e pré-cozidos, óleos vegetais refinados (óleo de soja, milho, girassol e canola) e, obviamente, doces, refrigerantes e fast foods.

A lista dos alimentos permitidos na dieta paleolítica, portanto, seria: carnes (bovina, aves, peixes, outros), ovos, mariscos, moluscos, frutas e frescos, tubérculos (batata-doce e inhame) e algumas gorduras (azeite e óleo de coco).

Neste sentido, em algumas situações, a dieta Paleo acaba sendo “pobre em carboidrato” quando comparada as dietas dos dias atuais, mas não é o requisito fundamental dos defensores. Ou melhor, a dieta Paleo acaba sendo uma dieta rica em proteína e, consequentemente, com algum aporte de gorduras.

Polêmica no Ar:

Argumenta-se que a dieta Paleo reduz a inflamação, doenças cardiovasculares, diabetes, doenças autoimunes e, até mesmo, alguns tipos de câncer. Não foi entrar nessa discussão agora (pois precisaria apresentar inúmeros estudos científicos), mas cabe mencionar: não vivemos mais nas cavernas!

Em outras palavras, os animais (boi, vaca, galinha, etc.) não vivem em pastagens livres e alimentados sem ração comercial; os peixes estão repletos de metais pesados; as frutas e vegetais possuem agrotóxicos, portanto, sejamos realistas.

Alguns adeptos da dieta Paleo adoram, por exemplo, consumir um cálice de vinho todas as noites, mas existia vinho na “caverna” naquela época (rs)?

Outros adeptos defendem a suplementação de ômega-3 e/ou probióticos e/ou vitamina D, mas existia loja de suplementos na “caverna” do vizinho naquela época (rs)?

Aliás, no “estilo paleolítico de vida” não deveriam existir comidas cruas, como carnes cruas, legumes crus?

Ainda considerando um “estilo paleo de ser”, você não deveria adotar o jejum prolongado, pois devia ser comum jejuar na Era Paleo, não é mesmo?

Por fim, fala-se que a dieta Paleo respeita nossa genética, mas como avaliar geneticamente o passado, o presente e o futuro através das diferenças alimentares em todas as regiões do planeta? Você possui todas essas análises?


Professor, posso usar uma dieta Paleo para emagrecer?

O pensamento, meu jovem, minha jovem, é igual ao discutido anteriormente na dieta cetogênica: para emagrecer (perder peso e gordura corporal) você precisar promover um déficit calórico (energético) diário. Claro, uma dieta rica em proteína (com razoável aporte de lipídeos e pobre em carboidratos) permite maior saciedade por parte do indivíduo, o que parece ser vantajoso (efeito sacietogênico). Todavia, essas relações (excesso proteico, high protein; excesso lipídico, high fat; e pobre em carboidratos, low carb) são estudadas fortemente desde a década de 90, cujo conclusões são óbvias: há necessidade de um déficit calórico para a perda de peso e gordura corporal.

 

O QUE É UMA DIETA LOW CARB?

Por fim, chegamos a dieta low carb, ou seja, onde realmente existe uma restrição de carboidratos. Portanto, dieta low carb não é a mesma coisa que dieta cetogênica. Na dieta cetogênica temos 50 g/dia ou menos de carboidrato, enquanto que na dieta low carb temos cerca de 100 g/dia e não ultrapassando 130 g/dia (geralmente 100-120 g/dia). Sendo assim, as dietas cetogênicas são, fundamentalmente, pobres em carboidratos. Todavia, o contrário não é verdadeiro, ou seja, nem toda dieta low carb é cetogênica.

Entendeu? Não? Deixa-me explicar novamente:

Na dieta cetogênica temos cetose, ou seja, encontramos elevados níveis de beta-hidroxibutirato (BHB, acima de 0,5 mmol/L, onde normalidade < 0,25 mmol/L), um dos corpos cetônicos já discutidos aqui. Aliás, quando os níveis são muito elevados, temos a cetoacidose, que é uma intoxicação, capaz de reduzir o pH do sangue, prejudicando os tecidos. A cetoacidose metabólica é comum nos pacientes com doenças, por exemplo, diabetes mellitus tipo 1 (DM1) descompensado. Já na dieta low carb, a cetose é desnecessária e, na realidade, muitas vezes não ocorre. Não ocorre cetose porque existe uma oferta razoável de carboidratos (100-120 g/dia).  

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizando, a dieta padrão ocidental tem 55-60% de carboidratos ou cerca de 200, 250 e 300 g/dia de carboidrato. A dieta cetogênica e low carb restringem a ingestão de carboidratos, o que ocorre de forma mais severa na dieta cetogênica (50 g/dia versus 100-120 g/dia, respectivamente). A dieta Paleo busca evitar alimentos industrializados, podendo ou não ser pobre em carboidratos, o que depende de sua preferência e tolerância diária para determinados alimentos.

 Professor, posso usar uma dieta low carb para emagrecer?

Meu jovem, minha jovem, você já sabe minha resposta (rs).


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