quinta-feira, 17 de novembro de 2022

“CORTAR” CARBOIDRATOS PARA PREVENIR E TRATAR DIABETES?

 

“CORTAR” CARBOIDRATOS PARA PREVENIR E TRATAR DIABETES?

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 



Olá, tudo bem? Segundo noticiários, um novo estudo diz que "cortar" carboidratos previne e trata diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Quando surgem notícias assim, tipo “carboidrato é o vilão”, logo penso: o pessoal leu o estudo na íntegra antes de compartilhar e expressar sua “opinião pessoal”? Bem, eu li e vamos conversar sobre “cortar” carboidratos e diabetes.

 

Pois bem, vejamos a notícia que circulou nos noticiários e nas mídias sociais:

 

“Cortar” carboidratos da dieta previne e trata DM2, reduzindo o “açúcar do sangue” em pessoas com diabetes e não medicadas. O novo estudo, publicado na JAMA em 2022, com 150 participantes diz que “cortar” carboidratos diminui Hb1Ac (hemoglobina glicada), que é um marcador para os níveis de “açúcar no sangue”. Essas descobertas são importantes para pessoas pré-diabéticas com altos níveis de Hb1Ac.

Nas mídias sociais, o assunto repercutiu assim:

O diabetes mellitus tipo 1 (DM1) é um estado permanente, que corresponde apenas 10% da doença. O diabetes mellitus tipo 2 (DM 2) responde por 90% dos casos, onde nós mesmos causamos. O DM2 é uma doença adquirida pelos hábitos errados, como etilismo, má alimentação e sedentarismo.

 

Me diga: você leu o estudo na íntegra?

Você realmente acha que DM2 é apenas sua culpa?

 

Beleza! O estudo novo, publicado na JAMA, em 2022, é este:

DORANS, Kirsten S. et al. Effects of a low-carbohydrate dietary intervention on hemoglobin A1c: a randomized clinical trial. JAMA Network Open 5(10):e2238645, 2022.

(doi: 10.1001/jamanetworkopen.2022.38645).

 

Qual delineamento do estudo?

Trata-se de um ensaio clínico randomizado com duração de 6 meses. Os participantes eram adultos (entre 40 e 70 anos de idade), de ambos os sexos, que foram randomizados em 2 grupos.

Grupo 1: participantes (n=75) submetidos à dieta de baixo carboidrato (low carb), ou seja, < 40 g de carboidrato por 3 meses; e < 60 g de carboidrato por mais 3 meses.

Grupo 2: participantes (n=75) que deveriam seguir sua dieta habitual ou usual.

Quer dizer, 2.722 participantes elegíveis, após análise dos critérios de inclusão e exclusão, sobraram 150 participantes, divididos em 2 grupos.

Como desfecho primário temos a mensuração de Hb1Ac (hemoglobina glicada), cujo média foi 6,15% no início do estudo.

 

Peraí, vamos falar de Hb1Ac antes de continuar?

 

HbA1c (hemoglobina glicada) mede uma fração da hemoglobina (proteína presente nas hemácias) ligada à glicose no sangue, ou seja, ocorreu uma reação bioquímica, não catalisada por enzima, lenta e irreversível, entre a proteína e a glicose (glicação proteica).

Aliás, muita gente chama HbA1c de hemoglobina glicada ou glicosilada, mas o termo correto é “glicação” e não “glicosilação”. Deixa-me explicar: a glicação é uma reação não enzimática e irreversível, enquanto que a glicosilação é uma ligação enzimática e instável.

Além disso, existem vários tipos de HbA1 (HbA1a1, HbA1a2, HbA1b e HbA1c), sendo a fração HbA1c (ou apenas A1c) é mais estável e irreversível e, portanto, usada como critério diagnóstico para diabetes.

Como a hemoglobina (Hb) tem meia-vida de aproximadamente 120 dias, o teste de Hb1Ac permite avaliar essa glicação por um período prolongado, ou seja, dos últimos 120 dias anteriores ao teste. Sendo assim, esse teste possui vantagens em relação a glicemia de jejum, que é afetada por variações normais de curto prazo.

Todavia, Hb1Ac possui baixa sensibilidade (capacidade de discriminar, entre os doentes, aqueles que efetivamente são doentes; ou probabilidade de um teste dar positivo em quem realmente está doente) e alta especificidade (capacidade que o mesmo teste tem de ser negativo em uma amostra de indivíduos sabidamente não doentes ou sadios; ou probabilidade de um teste dar negativo em quem realmente não possui a doença) em identificar DM diagnosticado. Ou seja, não existem testes 100% perfeitos: para HbA1c temos 86% para sensibilidade (ou seja, que não deixa escapar qualquer chance de doença) e 95% de especificidade (ou seja, que permite afastar outras hipóteses e determinar o diagnóstico preciso).

 

Peraí, porque glicemia e Hb1Ac elevadas são ruins?

 

Boa pergunta, que muitas pessoas não sabem explicar.

Portanto, vamos lá:

É importante que a glicemia e Hb1Ac não estejam elevadas nas pessoas, pois a hiperglicemia (e consequentemente aumento de Hb1Ac) facilita a autooxidação da glicose; glicação de enzimas e proteínas (incluindo hemoglobina e transferrina); geração de superóxido (uma espécie reativa de oxigênio, ROS); aumento nos depósitos de ferritina no fígado (portanto, inflamação); distúrbios em células endoteliais e reações oxidativas na parede vascular (portanto, aterogênese); geração de produtos finais de glicação avançada (AGE, Advanced Glycation End products); e redução do vasodiltador óxido nítrico (NO) com aumento de vasoconstritor endotelina-1 (ET-1), favorecendo as doenças cardiovasculares e efeitos aterogênicos. Em resumo, a hiperglicemia prolongada promove inflamação e lesões que podem afetar os olhos, nervos, vasos sanguíneos, coagulação sanguínea, tecidos e órgãos.

 

Os valores de referência para glicemia de jejum são:

Normal: < 100 mg/dL (outros laboratórios: 65-99 mg/dL)

Pré-diabetes: 100-125 mg/dL

DM2: > 125 mg/dL

 

Os valores de referência ou critérios laboratoriais para HbA1c são:

Hb1Ac normal: < 5,7%

Hb1Ac pré-DM: 5,7-6,4%

Hb1Ac no DM2: > 6,4%

Fonte: Diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes (https://diretriz.diabetes.org.br/diagnostico-e-rastreamento-do-diabetes-tipo-2/).

 

Para maiores curiosidades, leiam:

Fonte: Augusto Pimazoni Netto et al. Atualização sobre hemoglobina glicada (HbA1C) para avaliação do controle glicêmico e para o diagnóstico do diabetes: aspectos clínicos e laboratoriais. J Bras Patol Med Lab 45(1): 31-48, 2009.

Vamos voltar ao estudo publicado na JAMA (2022)?

 

No grupo “dieta pobre em carboidratos” (n=75) temos: 54 mulheres (72%) e 21 homens (28%); peso médio de 102,6 kg; IMC (índice de massa corporal) médio de 36,6 kg/m2 (portanto, Obesidade Grau 2); HbA1c média de 6,17% (Hb1Ac normal: < 5,7%); glicemia de jejum (média) de 108,3 mg/dL (normalidade: < 100 mg/dL); e insulina (média) de 30,9 µUI/L (normalidade: 0,5-13,8 µUI/L).

No grupo “dieta usual” (n=75) temos: 54 mulheres (72%) e 21 homens (28%); peso médio de 96,4 kg; IMC (índice de massa corporal) médio de 35,3 kg/m2 (portanto, Obesidade Grau 2); HbA1c média de 6,14% (Hb1Ac normal: < 5,7%); glicemia de jejum (média) de 101,2 mg/dL (normalidade: < 100 mg/dL); e insulina (média) de 29,3 µUI/L (normalidade: 0,5-13,8 µUI/L).

Ou seja, os grupos são muito parecidos!

 

Peraí, o que é uma dieta pobre em carboidrato?

 

Neste estudo, dieta pobre em carboidrato seria < 40 g de carboidrato por 3 meses, seguido de < 60 g de carboidrato por mais 3 meses (totalizando, 6 meses de experimento). Portanto, cabe lembrar: dieta low carb teria cerca de 100-120 g/dia de carboidrato e não ultrapassa 130 g/dia (dessa forma, não ocorre cetose). Já uma dieta cetogênica tem cerca de 50 g de carboidrato diariamente, mas pode oscilar de 20-30 g/dia (neste caso, ocorre cetose). Por fim, uma dieta Paleo (paleolítica) busca evitar os alimentos industrializados, não sendo necessariamente pobre em carboidratos. O estudo publicado na JAMA (2022) referiu-se à implementação de uma dieta low carb, o que não seria absolutamente verdadeiro, pois fornece 40-60 g/dia de carboidrato (e não 100-120 g/dia, no máximo 130 g/dia). O estudo lembra uma dieta cetogênica quando fornece apenas 40 g/dia de carboidrato, mas depois aumenta para 60 g/dia, não se enquadrando (ou seja, ultrapassou 50 g/dia). Não quero ser chato com termos conceituais, mas acho importante salientar!

 

E quais foram os resultados do estudo JAMA (2022)?

 

Pois bem, houve redução, considerada estatisticamente significativa, de 0,23% (em 3 meses tratamento) e 0,26% (ao final de 6 meses) na HbA1c no grupo “dieta de baixo carboidrato” quando comparado ao grupo “dieta usual” (redução de 0,07% em 3 meses e 0,04% em 6 meses).

 

Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

  

Quanto a glicemia de jejum, também houve redução no grupo “dieta de baixo carboidrato”, ou seja, reduziu 2,4 mg/dL (em 3 meses) e 8,4 mg/dL (em 6 meses). Quando se compara o grupo “dieta de baixo carboidrato” com o grupo “dieta usual”, a diminuição considerada estatisticamente significativa (10,3 mg/dL) ocorreu somente nos 6 meses de tratamento.

 

Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

 

 O peso corporal também reduziu, de forma mais significativa, no grupo “dieta de baixo carboidrato”, após 6 meses (diferença entre os grupos de 5,9 kg).

 

Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

 

Por fim, não houve diferença significativa no perfil lipídico (colesterol total, LDL-colesterol e HDL-colesterol) entre os grupos. 

 

O QUE PODEMOS CONCLUIR?

Pois bem, para indivíduos adultos, não tratados, a dieta com baixo teor de carboidrato reduziu a HbA1C de 6,15% (média basal registrada) em 0,23% após 6 meses quando comparado a dieta usual. Ou seja, passou de 6,15% para 5,92%. Devemos lembrar que a normalidade para Hb1Ac é < 5,7%.


Sem querer ser chato, mas isso te parece surpreendente?

 

OK, deixa-me falar: não achei os resultados surpreendentes, especialmente considerando pacientes com IMC de Obesidade Grau 2, ou seja, que poderiam estar em risco de saúde. O valor obtido, após longos 6 meses de experimento, ainda deixou Hb1Ac acima do valor de normalidade. Me desculpem, mas é uma redução modesta que não me surpreende. Aliás, a diferença entre os dois grupos (pobre em carboidrato e usual) foi de apenas 0,16%, portanto, qual vantagem da restrição de carboidratos para prevenir e tratar DM2?

 

Agora que comecei, deixa-me falar (rs):

 

O grupo usual não fez mudança alguma em sua dieta habitual ou estilo de vida e, mesmo assim, conseguiu redução discreta nos parâmetros avaliados, mesmo que não significativo do ponto de vista estatístico. Portanto, se o desfecho primário do estudo foi mensuração de Hb1Ac (basal: 6,15%) esperando mudanças positivas (< 5,7%) como explicar a discreta diferença entre o grupo “baixo carboidrato” e “usual”?

 

Ainda, você observou o aporte energético (calorias) das dietas?

 

Ao iniciar o estudo, os pacientes do grupo “baixo carboidrato” consumiam 1890 kcal/dia, enquanto que o grupo “usual” ingeria 1789 kcal/dia. Na primeira fase (3 meses), o grupo “baixo carboidrato” passou para 1447 kcal/dia e grupo “usual” para 1701 kcal/dia. Na última fase (6 meses), o grupo “baixo carboidrato” estava ingerindo 1439 kcal/dia, enquanto que o grupo “usual” consumia 1757 kcal/dia.

 

Minha pergunta seria:

A modesta redução em Hb1Ac, no grupo “baixo carboidrato”, não se deve a redução das calorias da dieta, que culminou com redução do peso? Quer dizer, é justo comparar um grupo com redução calórica e outro grupo sem redução de calorias? O desenho do estudo pode determinar os efeitos da redução de carboidratos sobre Hb1Ac, independente da ingestão calórica?

 

Portanto, lembram do que falei no início da conversa: as pessoas adoram compartilhar e expressar “opinião pessoal” sem ler o estudo na íntegra, portanto, posso afirmar que dieta pobre em carboidratos preveni e trata DM2?

 

Prof., existem outras limitações no estudo?

 

SIM, onde os próprios autores salientam as limitações. Uma das limitações já foi descrita acima, ou seja, não podemos determinar os efeitos da dieta pobre em carboidratos sobre a redução de Hb1Ac, independente da ingestão calórica. Os autores também questionam como seriam os resultados se os pacientes tivessem administrado medicamentos para baixar a glicemia (hipoglicemiantes orais). Destacam, ainda, que a ingestão calórica obtida como referência deve-se ao autorrelato de ingestão alimentar e, portanto, está sujeito ao erro por interpretação e memória. Tentou-se contornar o problema com recordatório de 24 horas, em alguns pontos determinados do estudo. Mas, como sabemos, existem prós e contras dessa estratégia (falarei dos tipos de inquéritos alimentares em outro post). Agora, existe um ponto muito importante como limitante do estudo: os participantes do grupo de “baixo carboidrato” tiveram interações e intervenções frequentes sobre seus hábitos alimentares, enquanto que o grupo “usual” nada sofreu. Quer dizer, você garante todo controle e motivação para um grupo, mas abandono o outro grupo. Quer dizer, não seria óbvio esperar diferenças entre os mesmos? Claro, tentou-se contornar este fato com sessões mensais sobre temas “não relacionados à dieta ou saúde” (e, óbvio, não é mesma coisa que ocorreu no grupo “baixo carboidrato”). Em outras palavras, me surpreende a adesão, nos dois grupos, ter sido adequada (pois a tendência seria abandono do grupo “usual”). Cabe lembrar, por fim, que 150 pacientes (75 em cada grupo) é, ainda, considerada uma amostra pequena na população, especialmente quando pensamos da terapêutica da obesidade e diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Os autores também salientam que não coletar informações sobre a composição corporal foi uma grande falha (concordo plenamente).

 

MINHAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Quando um “expert” das mídias sociais falar “dieta pobre em carboidrato” previne e trata o DM2 e/ou obesidade, pergunte: você leu e entendeu o estudo científico? AHHHH, mas “diabetes mellitus tipo 2 ou DM2 é causada por nós mesmo”, diz o “expert”, o que você responderia, professor? Buenas, te conto em outro post.

 

Lembre-se: se gostou pode compartilhar, desde que citado a fonte: Prof. Joelso Peralta no Blog: https://peraltanutri.blogspot.com. Ahhh, siga-me nas redes sociais (FACE: Joelso Peralta; Instagram: @peraltanutri).