quinta-feira, 18 de agosto de 2022

DÉFICIT CALÓRICO FUNCIONA OU NÃO PARA EMAGRECER?

 

DÉFICIT CALÓRICO FUNCIONA OU NÃO PARA EMAGRECER?

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.




Olá pessoal, tudo bem? Há algumas semanas atrás estava respondendo uma demanda de um Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), em relação minha tese de doutorado, que envolve neuromodulação em pacientes obesos, sobre as dietas restritivas e sua relação com o emagrecimento. Nessa semana, observo uma polêmica nas redes sociais, onde algumas pessoas afirmavam que o déficit calórico não funciona para emagrecer, enquanto que outros rebatiam ferozmente a afirmativa. E, afinal, déficit calórico funciona ou não para emagrecer? Deixa-me aprofundar este assunto em meu “textão” e lembre-se: se gostou pode compartilhar, desde que citado a fonte: Prof. Joelso Peralta no Blog: https://peraltanutri.blogspot.com. Ahhh, siga-me nas redes sociais (FACE: Joelso Peralta; Instagram: @peraltanutri).

 

DÉFICIT CALÓRICO NÃO FUNCIONA, POR QUÊ?

Alguns profissionais de saúde, incluindo nutricionistas e médicos, argumentam que as pessoas submetidas a restrição alimentar ou calórica, após um breve ou moderado período de tratamento, acabam não aderindo ao plano e desistem do tratamento. Fala-se, ainda, que os pacientes voltam a consumir alimentos altamente energéticos após restrição calórica, imposta pelo profissional nutricionista (e outros “metidos” à nutris), recuperando o peso perdido. Dessa forma, são taxativos: as dietas restritivas não funcionam ou o déficit calórico não funciona para emagrecer. Quer dizer, a redução de calorias diárias criará um déficit calórico, mas isso não funciona para emagrecer, pois as pessoas simplesmente “não aguentam passar fome”.

Em sua defesa, argumentam também que, no passado, digo milhares de anos atrás, vivíamos por períodos de pouca ou inexistente oferta de alimentos, que teria relação com as condições climáticas e deslocamentos pelos continentes. Dessa forma, dizem, o corpo teria aprendido armazenar energia para resistir ao déficit calórico imposto pelo meio ambiente. Ou seja, quando baixamos as calorias diárias, segundo eles, nosso corpo “se defende”, reduzindo o metabolismo e armazenando energia (glicogênio e triglicerídeos).

Nessa linha de pensamento, argumentam que “comer menos” para emagrecer não é tão simples assim, caso contrário todos emagreceriam “fechando a boca” e não teríamos sobrepeso e obesidade na população. Outros dizem que, durante o déficit energético, a taxa metabólica basal (TMB) é reduzida em uma tentativa de manter as reservas energéticas para a sobrevivência da espécie, quando paramos de perder peso.

Enfim, o déficit calórico, através da dieta, não funciona para emagrecer. Vejamos, agora, outros argumentos.

 

DÉFICIT CALÓRICO FUNCIONA, POR QUÊ?

Contrariando o texto anterior, alguns profissionais de saúde, incluindo nutricionistas e médicos, dizem que os argumentos acima estão, todos, completamente equivocados ou errados. Para tanto, rebatem: as pessoas não aderem ao plano alimentar e, por ventura, desistem do tratamento, devido alterações neuroendócrinas que ocorrem durante o processo de emagrecimento. Essas alterações envolvem, por exemplo, a redução de leptina (“hormônio da saciedade”), devido perda de adiposidade (redução do tecido adiposo).

Além disso, quando “fechamos a boca” também temos mais fome (aumento do hormônio grelina) e, como consequência, vamos atrás de alimentos, que podem ser mais energéticos. Isso não quer dizer que o déficit calórico não funcione, mas, simplesmente, que não conseguimos controlar nossa fome e, até mesmo, nossa compulsão alimentar. Aliás, a baixa adesão as dietas restritivas e a desistência do tratamento podem ter relação com o transtorno da compulsão alimentar periódico (TCAP), que não foi devidamente identificado/diagnosticado e tratado.

Por fim, no passado, milhares de anos atrás, vivíamos realmente por períodos de pouca ou inexistente oferta de alimentos, onde o metabolismo pode ser “mais lento”, mas essa “redução metabólica” não é suficiente para impedir a perda de peso e emagrecimento.

Enfim, o déficit calórico, através da dieta, funciona para emagrecer. Vejamos, agora, meu debate sobre o assunto.

 

ENTÃO, DÉFICIT CALÓRICO FUNCIONA OU NÃO?

Pois bem, como foi dito, será um “textão”, já que o assunto me interessa. Incialmente, precisamos esclarecer alguns conceitos para evitar confusões.

 

FOME é diferente de APETITE

A fome é uma sensação fisiológica, onde nosso corpo percebe que necessita de alimentos (energia e nutrientes) para manter suas atividades inerentes à vida. Muitas pessoas ao redor do planeta têm fome (devido pobreza, desigualdade social, conflitos políticos, acidentes naturais, etc.) e, alguns desenvolvem quadros de desnutrição. Já o apetite é o desejo de comer algo, vontade de comer alguma coisa, alimentar-se por preferência. Quer dizer, no apetite temos desejos por certos tipos de alimentos, preferencias alimentares, onde a seleção de alimentos pode ser boa ou ruim. Já falei destes conceitos neste blog (leia: “Regulação da Ingestão Alimentar”, publicado em 19/10/2021). Mesmo assim, vamos relembrar mais conceitos.

Saciedade seria o estado de satisfação completa em relação aos alimentos, ou seja, plena satisfação do apetite. Ou, ainda, o contrário de fome. Com o passar dos anos, surgiram outros termos na ciência da nutrição: fome hedônica e ambiente obesogênico. A fome hedônica seria um “comer emocional”, quer dizer, as pessoas estariam se alimentando por estresse, ansiedade, situações emotivas e emocionais, motivadas por hábitos familiares ou circuito de amizades. É uma espécie de “sistema de recompensa e prazer” através da alimentação. Confesso que não simpatizo com o termo, pois “fome” implica em sensação fisiológica e busca de alimentos, mas na “fome hedônica” pode existir preferência alimentar, que lembra “apetite hedônico”. Enfim, o termo mais adequado, para mim, seria apenas “comer emocional” ou “comer hedônico” (onde hedônico refere-se à obtenção de prazer, felicidade).

Por fim, ambiente obesogênico, como o próprio nome sugere, seriam todos os fatores que contribuem para obesidade em um determinado ambiente. Neste caso, estamos falando de fast foods e suas estratégias “deliciosas” de marketing; passar muitas hortas sentados na frente do computador (home office), contribuindo para o menor gasto calórico (sedentarismo); e atritos, conflitos e brigas familiares e amorosas, onde as pessoas “descontam” suas frustrações na ingestão de alimentos, geralmente “porcarias” altamente calóricas.

Sendo assim, a ingestão alimentar é um fenômeno voluntário (“você come porque quer”), mas não é tão simples, como veremos abaixo.

 

REGULAÇÃO da ingestão ALIMENTAR

O hipotálamo tem um papel de destaque na regulação da ingestão alimentar. O núcleo arqueado (ARC) do hipotálamo sofre ação dos chamados peptídeos anorexígenos, ou seja, peptídeos que inibem a vontade de comer (portanto, anorexígenos, inibitórios). Os mais famosos são o pró-opiomelanocortina (POMC) e o transcrito regulado por cocaína e anfetamina (CART). Ao mesmo tempo, o ARC também sofre ação de peptídeos orexígenos, ou seja, aqueles que estimulam a vontade de comer (portanto, orexígenos, estimulatórios). Agora, os mais famosos incluem os peptídeos neuropeptídeo Y (NPY) e a proteína relacionada ao gene Agouti (AGRP).

Vejam como essa informação é valiosa:

Uma lesão no ARC, afetando os neurônios POMC, resulta em hiperfagia (ingestão excessiva de alimentos) e, consequentemente, sobrepeso e obesidade. Parece óbvio, pois POMC lesionado não consegue “inibir” a vontade de comer. Porém, deixa-me complicar um pouco mais a explicação, que não é culpa minha, mas da complexidade própria do controle da ingestão alimentar.

Existem outras regiões hipotalâmicas, que recebem projeções neuronais do ARC e dos peptídeos anorexígenos (POMC/CART) e orexígenos (NPY/AGPR). São elas: o núcleo paraventricular (PVN), o núcleo ventromedial (VMN), o núcleo dorsomedial (DMN) e a área hipotalâmica lateral (LHA).

Vejam, novamente, como essa informação é valiosa:

Uma lesão na área hipotalâmica lateral (LHA) resulta em menor ingestão alimentar (anorexia), enquanto que uma lesão no núcleo ventromedial (VMN) resulta em maior ingestão alimentar.

De qualquer forma, é importante destacar que todos estes centros ou núcleos não trabalham isoladamente, mas, sim, “dialogam”, “conversam entre si”, para melhor regular a fome e saciedade. Em uma literatura mais antiga, por exemplo, era comum observar frases do tipo: o “centro da fome” e o “centro da saciedade” estão localizados no hipotálamo. Atualmente, contudo, percebe-se que a complexidade é bem maior (e mais fascinante).

 

Regulação de CURTO PRAZO da ingestão alimentar

A regulação de curto prazo da ingestão alimentar envolve os peptídeos secretados pelo trato gastrintestinal (TGI), que são liberados antes e depois das refeições. O mais famoso, certamente você conhece, chama-se grelina. A grelina é produzida pelo estômago (embora também pelo intestino, hipotálamo e placenta) e surge cerca de 20 a 30 minutos antes da refeição (chamado período pré-absortivo). Grelina é um hormônio orexígeno (lembre-se: estimulatório da ingestão alimentar) e age diretamente no núcleo paraventricular (PVN). Todavia, grelina também atua, indiretamente, via neuropeptídeo Y (NPY) e proteína Agouti (AGRP) com inibição do pró-opiomelanocortina (POMC).

Dessa forma, quando você perde peso (emagrecimento) ocorrem adaptações fisiológicas em uma tentativa de aumentar sua fome (sensação fisiológica na busca por alimentos), onde a grelina tem um papel crucial (apelidado de “hormônio da fome”). Em suma, se você “emagrecer”, vai “disparar” a fome através do hormônio grelina. Trata-se de um processo adaptativo do ser humano, nem bom, nem ruim, apenas um fato adaptativo.

Estou usando a grelina como exemplo, mas verdadeiramente existem muitos outros peptídeos do TGI (trato gastrintestinal), liberados antes e após as refeições, que influenciam a ingestão e a recusa de alimentos, tais como: colecistoquinina (CCK), peptídeo similar ao glucagon (GLP-1), peptídeo YY (PYY), entre outros.

 

Regulação de LONGO PRAZO da ingestão alimentar

A regulação de longo prazo da ingestão alimentar, por sua vez, depende dos estoques energéticos corporais, principalmente a quantidade de gordura corporal armazenada no tecido adiposo.

É simples de compreender, veja bem:

Quando os estoques energéticos estão baixos (o que encontramos nas pessoas de baixo peso, magreza, desnutrição, anorexia nervosa), nosso organismo “dispara” estímulos de sobrevivência para a buscar alimentos (fome ou “hunger”) e preservar a energia armazenada (especialmente triglicerídeos no tecido adiposo). Ao contrário, quando os estoques de gordura corporal estão repletos (cheios), ocorre supressão da fome (“saciety”).

Em suma, se você tem energia armazenada (triglicerídeos em adipócitos) não tem motivos para buscar maior ingestão alimentar. Porém, sabemos que as coisas não funcionam exatamente assim, caso contrário não existir obesidade. Portanto, continue a leitura.

Balanço ENERGÉTICO

Ok! Não pense que estou enrolando você, caro leitor, mas os conceitos acima são essenciais para evitar “argumentos” distorcidos da realidade e, até mesmo, errôneos. Sendo assim, vejamos mais esse conceito.

Se você comer mais e gastar menos, certamente, vai ganhar peso. Quer dizer, está promovendo um balanço energético positivo (BE+). Ao contrário, se você comer menos e gastar mais, certamente, vai perder peso. Neste caso, estaria promovendo o balanço energético positivo (BE-). E, se você equilibrar seu consumo e gasto calórico, inevitavelmente, vai manter o peso, promovendo o equilíbrio energético (EE). É, sem dúvidas, uma matemática bastante simples.

Ahhh, mas existem alguns profissionais que discordam, defendendo, portanto, o jejum prolongado, jejum intermitente, dieta com baixo teor de carboidratos (low carb diet), dieta com alto teor de proteínas e gorduras (dieta cetogênica), dieta paleolítica (rica em proteína), entre outras. Bem, não quero entrar nessa discussão (pelo menos não neste post), mas as pessoas podem estar confundindo “qualidade alimentar” (que é questionável) com “restrição calórica” (que promove déficit calórico associado a perda de peso). Não faça isso, pois você pode emagrecer com qualquer estratégia nutricional, desde que ocorra um déficit de calorias através da dieta. Isso é física, é termodinâmica. Como eu disse, podemos discutir a qualidade (ou não) de sua dieta em outro post. Enfim, vamos continuar.   

Entender a equação do equilíbrio energético é bastante simples, como foi dito, porém aplicá-la no dia-a-dia, na vida cotidiana, pode ser bem mais complexo, complicado. Por que? Primeiro, porque existem muitas variáveis do consumo energético, tais como: cardápio diário; cardápio do final de semana; ato de beliscar entre as refeições; ingestão bebidas alcoólicas; e uso de suplementos nutricionais. Você consegue controlar todas essas variáveis diariamente, que terá um reflexo em seu peso semanalmente, mensalmente e, até mesmo, anualmente? Segundo, porque existem muitas variáveis do gasto energético, que são: taxa metabólica basal (TMB); termogênese da dieta (bastante controversa, mas deixamos quieto neste momento); nível de atividade física; composição corporal; e idade do indivíduo. Da mesma forma, consegue controlar todas essas variáveis em seu paciente, caso seja nutricionista?

Neste sentido, não basta “fechar a boca” para emagrecer, tão pouco “aumentar o treino” para manter ou ganhar músculos, pois existem muitas variáveis envolvidas. Ao mesmo tempo, quando emagrecemos, devido redução das calorias diárias/semanais, perdemos tecido adiposo. Essa perda de gordura corporal tem implicações neuroendócrinas, que devem ser contabilizadas. Mas, cuidado, a redução do peso corporal (emagrecimento) depende do balanço energético negativo (“comer menos, gastar mais”), mas as alterações neuroendócrinas não são irrelevantes nessa matemática.  

 

Alterações NEUROENDÓCRINAS

Durante a perda de peso, devido promoção do balanço energético negativo (“coma menos, gaste mais”), também ocorre mobilização de ácidos graxos de tecido adiposo (lipólise) e, consequentemente, oxidação de ácidos graxos para obtenção de energia (beta-oxidação mitocondrial). Esse fato, como sabemos, é promovido por hormônios contrarregulatórios (glucagon, cortisol e adrenalina, por exemplo).  

Pois bem, a redução do tecido adiposo branco (TAB) implica, por sua vez, na redução de hormônios secretados pelos adipócitos, como a leptina. Resumidamente, a leptina é secretada pelo TAB (mas, também, tecido adiposo marrom e placenta), sendo responsável pela saciedade e, consequentemente, redução da ingestão alimentar. Para tanto, leptina liga-se ao receptor de leptina (LEPR) no hipotálamo, causando hiperpolarização dos neurônios NPY/AGRP (peptídeos anorexígenos), o que também conduz a redução na liberação de GABA (ácido gamma-aminobutírico). Só para lembrar: GABA é o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central (SNC), enquanto que glutamato é o principal excitatório. Enfim, na presença da sinalização promovida pela leptina, temos saciedade (leptina é apelidado de “hormônio da saciedade”). Cabe destacar, ainda, que pacientes obesos apresentam hiperleptinemia (excesso de leptina circulante em decorrência da resistência hipotalâmica à leptina, seja por inflamação ou polimorfismo do gene da leptina), apresentam descontrole da ingestão alimentar e, consequentemente, ganho ponderal.

Novamente, usei leptina como exemplo, mas existem outros hormônios secretados pelos adipócitos: resistina, visfatina, adiponectina, entre outros.

 

AFINAL, DÉFICIT CALÓRICO FUNCIONA OU NÃO?

Então, creio que agora podemos afirmar: restrição calórica, que promove um déficit energético, funciona, sim, para redução do peso corporal e da gordura corporal. Contudo, alguns pontos interessantes devem ser falados.

Você tem animal de estimação em casa (cães e/ou gatos, por exemplo)? Pois bem, os animais buscam alimentos porque tem fome (sensação fisiológica, lembre-se). Entretanto e curiosamente, você já viu um cachorro ou gato “gordo”? Pois é, parece que os animais estão convivendo demais com os humanos e, dessa forma, adquirem alguns hábitos alimentares inadequados. Alguns animais também estão comendo por prazer? Alguns animais possuem preferências alimentares, deixando a ração padrão de lado por um pedaço de rosbife ou bolacha recheada? Nós, seres humanos, comemos, mesmo sem fome (sensação fisiológica) em comemoração com amigos, em conversa de negócios e, até mesmo, quando estamos tristes, deprimidos, irritados, não é mesmo? Ao mesmo tempo, os animais, tradicionalmente falando, interrompem a ingestão alimentar quando estão saciados. Já observou seu cão deixando o resto de ração no prato, não consumindo tudo que você colocou? Os animais, aliás, por vezes comem duas ou três vezes ao dia, mas também passam um ou dois dias sem comer, curioso isso, não é mesmo? Já nós, seres humanos, saímos do rodízio de pizza somente quando a barriga está estourando, não é verdade? Por vezes, comemos uma barra de chocolate olhando TV, mesmo sem fome, isso te parece familiar?

O que você quer dizer com isso, professor?

Buenas, estou dizendo que o ato de fome e saciedade é muito mais complexo (e fascinante) que você ou EU poderia sonhar.   

Embora a redução de calorias diárias seja necessária para perder peso e, consequentemente, reduzir a gordura corporal; você não pode simplesmente desconsiderar as alterações neuroendócrinas. Concordo quando dizem que o déficit calórico pode ter algum impacto sobre o metabolismo, mas essa redução metabólica não é suficiente para impedir a perda de peso (emagrecimento). Durante o Holocausto, um verdadeiro genocídio de judeus cometido pelo lunático Hitler, milhões de pessoas morreram de fome, ou seja, o déficit calórico não reduziu o metabolismo ao ponto de conservar energia e bloquear a perda de peso. Este é um exemplo triste, horroroso na história da humanidade, mas estou usando para afirmar que a restrição calórica e o déficit calórico vão resultar, inevitavelmente, na perda de peso e da gordura corporal. Como já dito, isso é física, é termodinâmica. Embora a perda de gordura corporal implique em redução de leptina (e aumento da grelina), como foi visto, a manutenção da restrição calórica levará, inevitavelmente, a perda de peso. Claro, você pode pensar em aumentar seu metabolismo, durante uma dieta de restrição calórica, com a prática do exercício físico. Todavia, dieta de muito baixa caloria não permitem reposição adequada de glicogênio hepático e muscular, nem mesmo ânimo e força, para manter o esforço físico.

Obviamente, por fim, realizar e manter uma dieta de restrição calórica não é uma tarefa fácil, mas isso não quer dizer que não funcione. É óbvio, novamente, que existem muitas variáveis (estudadas na neurobiologia, ciência do comportamento, psicologia, psiquiatria, etc.) envolvidas na adesão e sucesso do tratamento dietoterápico, mas o déficit calórico resulta em perda de peso e da massa gorda.

Por fim, o emagrecimento pode ser entendido como a redução do peso corporal e da gordura corporal. Essa redução da gordura corporal ocorre no tecido adiposo subcutâneo e visceral. Mas, cuidado: você não vai “acelerar” seu metabolismo comendo de 3 em 3 horas, tão pouco “desacelerar” seu metabolismo parando de comer, o que já seria assunto para outro “textão”. Abraços!

terça-feira, 9 de agosto de 2022

AMINOÁCIDOS DE CADEIA RAMIFICADA (BCAA): ÚTIL OU INÚTIL? (Parte 3 - Final)

 

AMINOÁCIDOS DE CADEIA RAMIFICADA (BCAA): ÚTIL OU INÚTIL? (Parte 3 - Final)

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 



Olá pessoal, tudo bem? Os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA, branched-chain amino acids), particularmente a leucina, a isoleucina e a valina, foram discutidos na PARTE 1 (28/09/2021) e na PARTE 2 (30/09/2021) deste Blog, mas fiquei devendo a PARTE 3 (que consegui finalizar somente hoje: 09/08/2022), que corresponde a parte final. Pois bem, os BCAAs não são bons ou ruins, nem mesmo mocinhos ou vilões, são apenas aminoácidos. Todavia, as pessoas adoram uma polêmica e, portanto, alguns vão crucificar quem prescreve BCAA no esporte, enquanto outros vão glorificar quem prescreve BCAA na clínica. KEEP CALM (mantenha a calma), pois vamos relembrar rapidamente os capítulos anteriores e, em seguida, finalizar este assunto. Lembre-se: se gostou pode compartilhar, desde que citado a fonte (Prof. Joelso Peralta, Blog: https://peraltanutri.blogspot.com). AHHH, siga-me nas redes sociais (@peraltanutri).

 

RESUMO DA PARTE 1:

Na PARTE 1, vimos que os BCAAs podem ser metabolizados de forma eficaz nos músculos esqueléticos e, em menor grau, no tecido adiposo, cérebro, fígado, intestino, rins e coração (Leia: Brosnan e Brosnan. Branched-Chain Amino Acids: Enzyme and Substrate Regulation. J. Nutr. 136: 207S-211S, 2006). Este fato deve-se a presença de aminotransferases de cadeia ramificada (BCAT) e desidrogenases dos a-cetoácidos de cadeia ramificada (BCKADH), que são enzimas responsáveis pelo catabolismo destes aminoácidos, em maior concentração nos músculos esqueléticos (Leia: Eva Blomstrand et al. Branched-chain amino acids activate key enzymes in protein synthesis after physical exercise. J. Nutr. 136: 269S-273, 2006). Seu catabolismo envolve a formação do ácido a-cetoisocaproato (KIC), ácido a-ceto-β-metilvalerato (KMV) e o ácido a-cetoisovalerato (KIV) que, ao final da rota metabólica, acaba gerando acetil-CoA para o ciclo de Krebs (ciclo dos ácidos tricarboxílicos ou ciclo TCA) e, subsequente, oxidação na cadeia oxidativa mitocondrial transportadora de elétrons (COMTE) (Leia: Victor W. Rodwell et al. Bioquímica Ilustrada de Harper, 2016; e Donald Voet, Judith G. Voet e Charlotte W. Pratt. Fundamentos de Bioquímica, 2000). Então, os BCAAs podem ser usados para a geração de energia celular.  

Em seguida, avaliamos algumas alegações (ou propostas mercadológicas) associadas ao consumo de BCAA. Uma das alegações mais divulgadas no meio acadêmico, especialmente nos cursos de Nutrição em Instituições de Ensino Superior (IES), nas aulas de dietoterapia ou terapia nutricional do paciente hospitalizado ou crítico, é que os BCAAs poderiam melhorar a resposta clínica em pacientes cirróticos e com encefalopatia hepática (EH). Pois bem, vimos os BCAAs, em sua forma oral, segundo a literatura, parece ser útil para prevenir a insuficiência hepática progressiva e cirrose avançada (Leia: Giulio Marchesini et al. Nutritional supplementation with branched-chain amino acids in advanced cirrhosis: a double-blind, randomized trial. Gastroenterology 124(7): 1792-1801, 2003) e aumenta a perfusão cerebral de pacientes com encefalopatia hepática (EH) (Leia: Fernando Gomes Romeiro et al.  Which of the branched-chain amino acids increases cerebral blood flow in hepatic encephalopathy? A double-blind randomized trial. Neuroimage Clin 28(19): 302-310, 2018).

Deixa-me acrescentar outro estudo, que não estamos na Parte 1 (original). Segundo Lise Lotte Gluud e colaboradores (Leia: Lise Lotte Gluud et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy (Review). Cochrane Database of Systematic Reviews, 2020), em uma revisão sistemática da Cochrane com 11 ensaios clínicos randomizados (RCT) sobre os BCAAs versus intervenções de controle, os BCAAs podem beneficiar as pessoas com encefalopatia hepática (EH) e devem ser considerados na gestão de pessoas com EH.

QUAL O MECANISMO DO BCAA NA DOENÇA HEPÁTICA?

Pois bem, na doença hepática ocorre o acúmulo de substâncias tóxicas, como a amônia (NH3), em virtude da inabilidade do ciclo da uréia (ciclo da ornitina) em metabolizar o nitrogênio oriundo dos aminoácidos (Leia: Sue Rodwell Willians. Fundamentos de Nutrição e Dietoterapia, 1997). A hiperamonemia (elevação dos níveis de amônia), portanto, iria comprometer a neurotransmissão no sistema nervoso central (SNC), bem como o sistema neuromuscular. Aliás, na doença hepática estão prejudicados a detoxificação da amônia pelo ciclo da uréia, bem como a biossíntese de glicogênio (glicogênese hepática) (Leia: Robins e Cotran. Patologia – Bases Patológicas das Doenças, 2016). Além disso, a NH3 atravessa a barreira hematoencefálica (BHE), sofrendo conversão para glutamina, que favorece ao edema em astrócitos (Leia: Laís Augusti et al. Ingestão proteica na encefalopatia hepática: panorama atual. Nutrire 39(3): 338-347, 2014). Os BCAAs, então, poderiam ser usados para evitar a desnutrição do paciente cirrótico, já que 50-90% destes evoluem para desnutrição, bem como evitar a neurotoxicidade. Lembre-se, novamente, que todos os aminoácidos são metabolizados no fígado, exceto os BCAAs, que são metabolizados nos músculos esqueléticos (principalmente) e, em menor grau, em outros tecidos extra-hepáticos (tecido adiposo, cérebro, intestino, rins e coração) (Leia: Brosnan e Brosnan. Branched-Chain Amino Acids: Enzyme and Substrate Regulation. J. Nutr. 136: 207S-211S, 2006). OK, deixa-me explicar melhor esse mecanismo fascinante.

De acordo com Lise Lotte Gluud et al. (Leia: Lise Lotte Gluud et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy (Review). Cochrane Database of Systematic Reviews, 2020), os BCAAs fornecem aos músculos esqueléticos esqueletos de carbono para a reposição do a-cetoglutarato do ciclo de Krebs, que teria sido esgotado pela hiperamonemia presente na doença hepática. Quer dizer, segundo Romeo Ernesto Riegel (Leia: Romeo Ernesto Riegel. Bioquímica. 5.ed. Editora Unisinos, 2012), amônia (NH3) combina-se com a-cetoglutarato para formar glutamato, sendo a reação catalisada pela glutamato desidrogenase (GDH). Havendo hiperamonemia (excesso de amônia circulante), o a-cetoglutarato é subtraído do ciclo de Krebs, o que diminui o ritmo dessa via metabólica. O resultado, obviamente, é a reduzida produção de equivalente de redução (NADH e FADH2) e, consequentemente, de adenosina trifosfato (ATP). Quando esse acontecimento ocorre no cérebro, temos a neurotoxicidade. Aliás, NH3 atravessa a barreira hematoencefálica (BHE) e causa edema em astrócitos, devido excesso na formação de glutamina a partir do glutamato (Leia: Laís Augusti et al. Ingestão proteica na encefalopatia hepática: panorama atual. Nutrire 39(3): 338-347, 2014). Ainda, glutamato (a-cetoglutarato + NH3 ® glutamato) atua como neurotransmissor excitatório no sistema nervoso central (SNC), o que influencia na toxicidade pela propriedade neuroexcitatória do glutamato (Leia: Romeo Ernesto Riegel. Bioquímica. 5.ed. Editora Unisinos, 2012). O glutamato, portanto, precisa ser removido da fenda sináptica dos neurônios para evitar a superexcitação neuronal pós-sináptica e a morte de neurônios, o que ocorre via formação de glutamina (ação da glutamina sintetase) em astrócitos com uso de NH3. A glutamina, então, deve voltar aos neurônios pré-sinápticos para evitar o edema em astrócitos, onde NH3 é liberada (ação da glutaminase) e o glutamato resultante pode ser armazenamento em vesículas sinápticas para uso futuro. Aliás, glutamato pode ser convertido em ácido g-aminobutírico (GABA), que é o principal neurotransmissor inibitório do SNC (Leia: Alexandre Valotta da Silva e Francisco Romero Cabral. Ictogênese, epileptogênese e mecanismo de ação das drogas na profilaxia e tratamento da epilepsia. J Epilepsy Clin Neurophysiol 14(Suppl 2):39-45, 2008).

Pois bem, retomamos os BCAAs. As concentrações de BCAA e glutamato no plasma e tecido muscular são baixas na doença hepática (cirrose) e hiperamonemia, onde a remoção da NH3 pelo músculo esquelético é proporcional a remoção de BCAA em pessoas com cirrose. Como vimos, NH3 “rouba” a-cetoglutarato do ciclo de Krebs, que se torna improdutivo para a geração de NADH/FADH2 e ATP. Todavia, os BCAAs, nos músculos esqueléticos (lembre-se, BCAAs são direcionados aos músculos, logo após ingestão), fornecem esqueletos carbônicos necessários para a reposição do a-cetoglutarato do ciclo de Krebs. Neste sentido, os músculos esqueléticos e os BCAAs possuem papeis fundamentais na detoxificação da NH3. Além disso, a síntese de glutamina é elevada no musculo esquelético (atividade aumentada da glutamina sintetase), o que auxilia no processo de detoxificação (ou seja, consumindo NH3, que não ficará livre para atravessar a barreira hematoencefálica, BHE). A suplementação de BCAA, portanto, participa da detoxificação da NH3 e formação de glutamina; e reduz o fluxo de aminoácidos aromáticos através da BHE (competição por sítios de ligação), mantendo o equilíbrio de dopamina, noradrenalina e serotonina. Os benefícios dos BCAAs também se manifestam na redução da desnutrição em pacientes cirróticos e outras doenças hepáticas, revertendo a perda de massa muscular. Todavia, os BCAAs não possuem efeito sobre a taxa de mortalidade (Leia: Lise Lotte Gluud et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy (Review). Cochrane Database of Systematic Reviews, 2020).

Segundo Francislene Juliana Martins et al. (Leia: Francislene Juliana Martins et al. Nutrição em paciente cirrótico. HU Revista, Juiz de Fora, 39: 3-4, 2013), a dieta do paciente com cirrose deve ser personalizada, especialmente em relação a proteína, onde a suplementação com BCAA melhora o estado nutricional e estimula a regeneração hepática (NOTA: regeneração hepática não depende unicamente de BCAA, mas também de glutamina, vitaminas do complexo B, zinco, magnésio, entre outros). De acordo com L. Kathleen Mahan e Janice L. Raymond (Leia: L. Kathleen Mahan e Janice L. Raymond. Alimentos, Nutrição e Dietoterapia, 2018), a prática da restrição proteica em pacientes com encefalopatia hepática (EH) é considerado ultrapassada, onde a restrição pode agravar a desnutrição. A Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral, o Colégio Brasileiro de Cirurgiões e a Associação Brasileira de Nutrologia, em sua publicação Terapia Nutricional nas Doenças Hepáticas Crônicas e Insuficiência Hepática (2011), contudo, diz não há indicação para uma restrição proteica em pacientes com insuficiência hepática e o uso de BCAA pode atuar como fonte de nutriente na presença de cirrose. E complementa: na cirrose avançada, a suplementação com BCAA é útil para melhorar a evolução clínica e retardar a progressão da insuficiência hepática, embora não existam evidências para redução de mortalidade.

Neste sentido, BCAA é útil ou inútil?

Ou, melhor, útil para quê? Inútil em qual situação?

 

RESUMO DA PARTE 2:

Já na PARTE 2, discutimos outras alegações associadas ao uso de BCAA, por exemplo, na hipótese de prevenção da fadiga central. Quer dizer, a suplementação de BCAA poderia prevenir a fadiga central (relacionada a hipoglicemia e/ou síntese de 5-hidroxitriptamina, 5-HT, ou serotonina) em atletas submetidos ao exercício de longa duração (maratonistas, triatletas e ultramaratonistas).

QUAL O MECANISMO DO BCAA NA FADIGA CENTRAL?

No exercício prolongado (baixa intensidade e longa duração) ocorre um aumento na produção de serotonina (5-HT) pela maior disponibilidade de seu precursor plasmático: o aminoácido aromático triptofano (TRP). Ou seja, durante o exercício prolongado ocorre maior mobilização dos triglicerídeos (TG) do tecido adiposo (lipólise), onde os ácidos graxos resultantes são oxidados para a geração de energia na mitocôndria do músculo esquelético (β-oxidação dos ácidos graxos). Dessa forma, a albumina sérica é desviada para o transporte de ácidos graxos, deixando o TRP livre (já que este aminoácido necessita de albumina como transportador). Sendo assim, TRL livre (TRPL) atravessa a barreira hematoencefálica (BHE) e forma serotonina (5-HT), que está relacionado à fadiga central e a desistência do atleta frente ao esforço físico. E, agora, que entra a suplementação de BCAA. Os BCAAs podem competir pelo sítio de ligação do TRPL e, consequentemente, limitar a entrada do TRPL através da barreira hematoencefálica (BHE) (NOTA: essa competição não se dá apenas com TRP e BCAA, mas também fenilalanina e tirosina) (Leia: Ronaldo J. Maughan e Loiuse M. Burke. Nutrição Esportiva. ArtMed: Porto Alegre, 2004; e Christine A. Rosenbloom. Sports Nutrition – A guide for the professional working with active people. The American Dietetic Association, Chicago, Illinois, 2000). Enfim, na presença de BCAA, que ganha a “porta de entrada”, ocorre um decréscimo na produção de serotonina e, consequentemente, redução da fadiga central

A hipótese de fadiga central pelo aumento do TRP, que pode ser contrabalançado com o uso de BCAA, é explorado em diversos estudos (Leia: Eric A. Newsholme e Eva Blomstrand. Branched-chain amino acids and central fatigue. J Nutr 136(1 Suppl): 274S-6S, 2006; e Eva Blomstrand. A role for branched-chain amino acids in reducing central fatigue. J Nutr 136(2):544S-547S, 2006). Todavia, Romain Meeusen e Phil Watson (Leia: Romain Meeusen e Phil Watson Amino acids and the brain: do they play a role in "central fatigue"? Int J Sport Nutr Exerc Metab 17 Suppl: S37-46, 2007) relatam não haver dúvidas que alguns aminoácidos (triptofano e tirosina) estejam envolvidos na fadiga, com participação da serotonina (5-HT), mas a manipulação de BCAA a fim de reverter a fadiga é controversa e malsucedida. Já Sujean Choi et al. (Leia: Sujean Choi et al. Oral branched-chain amino acid supplements that reduce brain serotonin during exercise in rats also lower brain catecholamines. Amino Acids 45(5): 1133-42, 2013) diz que a suplementação com BCAA reduz 5-HT (serotonina) cerebral em ratos, mas seu efeito em humanos permanece controverso.

E, agora, BCAA é útil ou inútil?

A hipótese é consagrada, mas controversa, não acham?

 

FINALMENTE, A PARTE 3 (FINAL):

A pergunta, da PARTE 3, seria: os BCAAs favorecem a hipertrofia muscular e atenuam o dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”)?

BCAAs podem ser usados para maximizar a hipertrofia muscular em indivíduos treinados?

Os BCAAs e, particularmente a leucina, possuem um importante papel na regulação da tradução de proteínas contrácteis da musculatura esquelética (actina e miosina, por exemplo). O processo, contudo, é gigantesco e complexo, mas vou resumir e poupar vocês de inúmeras páginas de leitura em livros didáticos e artigos científicos (sou um cara legal, viu?).   

O processo de tradução gênica é citoplasmático, diferente da transcrição gênica que é nuclear. O mecanismo de ação (teórico) para a atuação dos BCAAs e, particularmente da leucina, na hipertrofia muscular parece envolver a tradução gênica. Sendo assim, vamos lá:

Em um primeiro momento, uma molécula de ácido desoxirribonucleico mensageiro (mRNA) é selecionada por um ribossomo para a tradução gênica, sendo um processo que ocorre no citoplasma da célula muscular (sarcoplasma). Ocorre a leitura do mRNA, embora haja a participação do RNA transportador (tRNA) e do RNA ribossomal (rRNA). O passo fundamental desta primeira etapa é a dissociação ribossomal em duas subunidades: 60S e 40S. A subunidade 40S do ribossomo interage com vários fatores de iniciação eucarióticos (eIFs), embora destaca-se o fator de iniciação eucariótico do tipo 2 (eIF2), que é sensível as concentrações de leucina intracelular. Bingo, a leucina entrou na discussão.

Neste segundo momento, na presença de leucina (advindo de alimentos, suplementos ou do “pool” de aminoácidos endógenos), ocorre ativação do eIF2. Cabe destacar que a proteína inibitória de ligação (4E-BP1) não permite a interação de outros eIFs (e são inúmeros) ao 40S ribossomal. Entretanto, quando 4E-BP1 é fosforilado pela proteína quinase de mamíferos alvo de rapamicina (mTOR) ocorre a liberação dos demais eIFs (ou seja, mTOR inibe 4E-BP1). A mTOR, por sua vez, é sensível a concentração de leucina intracelular, isto é, quanto mais leucina, mais ativação da mTOR, teoricamente.

Em um terceiro momento, podemos destacar a participação de outros fatores que controlam a tradução gênica, incluindo a proteína quinase ribossomal S6 de 70 kDa (p70S6K). A p70S6K estimula a tradução do mRNA e elongação da síntese proteica. Ocorre, então, a síntese de proteínas contrácteis de actina e miosina, implicados no aumento da massa muscular nos indivíduos submetidos ao treinamento e com adequação dietética. Aliás, a dieta deve cobrir essa demanda (em calorias e nutrientes) envolvida no processo de hipertrofia muscular. Em outras palavras, você precisa, além da leucina, de todos os aminoácidos essenciais para o balanço nitrogenado positivo. Ainda, precisa de carboidratos para síntese de glicogênio; e lipídeos, particularmente colesterol, para síntese de hormônios esteroides. Não terei tempo aqui, mas você precisa de vitaminas e minerais, que atuam como cofatores nas reações enzimáticas envolvidas neste complexo mecanismo hipertrófico.

Por fim, digamos um quarto momento, ocorre a introdução de códon nonsense (ou seja, sem-sentido) no sítio de leitura do mRNA, que interrompe o processo.

E, agora, pensem:

A participação da leucina em determinados momentos da tradução gênica significa que este aminoácido, isoladamente, promove hipertrofia muscular?

Não seria esperar demais de um “pobre” e “coitado” “aminoacidozinho”, isolado, perdido nesta vasta via metabólica?

Bem, vejamos o que dizem Maria Pontes Ferreira et al. (Leia: Maria Pontes Ferreira et al. Periexercise coingestion of branched-chain amino acids and carbohydrate in men does not preferentially augment resistance exercise-induced increases in phosphatidylinositol 3 kinase/protein kinase B-mammalian target of rapamycin pathway markers indicative of muscle protein synthesis. Nutrition Research (34(3): 191-8, 2014). Trata-se de um estudo randomizado, duplo-cego (portanto, elevado grau de evidência científica), publicado na Nutrition Research, em 2014. Neste trabalho, os participantes (27 homens treinados, entre 18 e 30 anos) foram divididos em três grupos:

Grupo 1: ingestão de carboidratos (CHO) apenas (n = 9);

Grupo 2: ingestão de CHO + BCAA (n = 8);

Grupo 3: ingestão de placebo (substância inerte, inócua, sem efeito, n= 10).

Os BCAAs tinham a distribuição 2:1:1 (leucina, isoleucina e valina), cujo dose era próxima de 10 g/dia. Os BCAAs (10 g/dia) e CHO (cerca de 120 g/dia) estavam dissolvidos em água. As bebidas (contendo CHO e/ou BCAA) foram ingeridas antes e depois do esforço físico, particularmente leg press (pressão de pernas) e leg extension (cadeira extensora).

E quais foram os resultados?

A co-ingestão de CHO + BCAA não revelou diferença estatisticamente significativa em marcadores de sinalização hipertrófica, tais como a proteína quinase de mamíferos alvo de rapamicina (mTOR) e a proteína quinase ribossomal S6 de 70 kDa (p70S6K). Também não foram observadas diferenças no substrato-1 do receptor de insulina (IRS-1) e na proteína quinase B (também conhecida como Akt). Ainda, a bebida glicídica e a bebida glicídica com BCAA aumentaram a glicemia e insulinemia, porém a síntese proteica muscular (MPS) não foi favorecida pela co-ingestão (CHO + BCAA) quando comparado ao CHO isolado.

Em resumo: BCAA não aumenta a hipertrofia muscular!

Para mim, não vejo novidade alguma nisso. Quer dizer, desde quando você constrói músculos com apenas três aminoácidos (leucina, isoleucina e valina)? Cadê os demais aminoácidos essenciais para o crescimento e desenvolvimento do ser humano, incluindo seus músculos? É óbvio, portanto, que BCAAs não aumentaram as respostas anabólicas, induzidas pelo treinamento no estudo supracitado, pois simplesmente a sinalização hipertrófica é muito mais complexa que a presença ou ausência de leucina, por exemplo. Em outras palavras, leucina, em particular, participa da sinalização Akt/mTOR, mas você não constrói uma “casa” apenas com “1 tijolo”, capitche? Então, pensando na síntese proteica, em indivíduos submetidos ao treinamento, o consumo de suplementos contendo BCAA parece, verdadeiramente, desnecessário e inútil. Aliás, você consegue 5 g (5000 mg) de BCAA nestes suplementos comerciais, mas cabe lembrar que 100 g de frango (um pedaço pequeno) contém 5610 mg de BCAA, enquanto que 100 g de claras de ovos (cerca de 3 claras) contém 6225 mg de BCAA (Leia: Agricultural Research Service United States Department of Agriculture – USDA, National Nutrient Database for Standard Reference; <http://ndb.usda.gov/ndb/nutrients/index>).

E, agora, BCAA é útil ou inútil?

Na hipertrofia muscular, BCAA, isoladamente, é inútil.

 

BCAAs atenuam o dano muscular induzido pelo exercício físico?

O dano muscular induzido pelo exercício (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”) pode ser uma novidade para alguns leitores e, portanto, vamos as definições inicialmente.

O EIMD ocorre quando o indivíduo realiza exercícios intensos ou longa duração que acabam culminando danos muscular, que podem ser atribuídos a desorganização das estruturas musculares, envolvendo o sarcolema (rompimento da membrana), linha Z (ruptura, alargamento ou prolongamento), túbulos transversos e miofibrilas. O processo é acompanhado por estresse mecânico/metabólico e inflamação. Muitos protocolos experimentais têm se dedicado ao estudo do DMIE, porém poucos estudos conseguem reproduzir a situação real do treinamento físico, especialmente envolvendo as chamadas repetições excêntricas ou “negativas”. A ocorrência do dano muscular requer análise de inúmeros marcadores diretos e indiretos, tais como creatina fosfoquinase (CPK), lactato desidrogenase (LDH), 3-metilhistidina (3MH), mioglobinemia (mioglobina no sangue circulante), mioglobinúria (mioglobina na urina), troponina, sensação de dor ou desconforto e, até mesmo, incapacidade para executar determinado movimento muscular.

Pois bem, uma revisão sistemática com meta-análise, publicada na Nutrients em 2021 (Leia: Chutimon Khemtong et al. Does branched-chain amino acids (BCAAs) supplementation attenuate muscle damage markers and soreness after resistance exercise in trained males? A Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials. Nutrients 13(6): 1880, 2021), selecionando artigos revisados por pares e ensaios clínicos randomizados (RCT, randomized clinical trial), entre 2010 e 2020, e usando uma ferramenta da Cochrane para avaliação do risco de viés, buscou responder essa questão. É um excelente estudo e vamos direto ao assunto:

Qual objetivo do estudo?

O objetivo do artigo publicado na Nutrients (2021) foi verificar os efeitos do BCAA nos marcadores bioquímicos de lesão muscular. Que marcadores são estes? Como foi dito existem vários, mas este estudo usou LDH (lactato desidrogenase) e CPK (creatinina fosfoquinase).

Qual metodologia do estudo?

Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise (maior grau de evidência científica) que selecionou inicialmente 98 artigos científicos e, destes, apenas 9 (nove) estudos foram usados (aqueles que atendiam os critérios de inclusão, ou seja, artigos científicos revisados por pares e RCTs entre 2010 e 2020). Destes, 7 (sete) eram ensaios clínicos randomizados (RCT). Além disso, usou-se uma ferramenta da Cochrane para avaliação do risco de viés.

NOTA: A Cochrane é uma rede internacional, com sede no Reino Unido, registrada como uma organização sem fins lucrativos, usada para buscar informações de alta qualidade para tomar decisões em saúde.

Qual foi o delineamento do estudo?

O estudo selecionou apenas homens adultos. As mulheres não faziam parte dos estudos, pois as oscilações nos níveis de estrógenos poderiam influenciar os marcadores de lesão muscular, segundo autores. Os trabalhos selecionados, por serem randomizados, contavam com grupo tratado (BCAA) e grupo placebo. A dosagem de BCAA oscilou entre 0,2 a 1,76 gramas por quilograma de peso corporal diariamente (0,2 a 1,76 g/kg/dia), onde a proporção de aminoácidos ramificados mais corriqueira foi de 2:1:1 (leucina, isoleucina e valina). Deixa-me trazer um exemplo: 0,2 g x indivíduo de 80 kg = 16 g de BCAA; enquanto que 1,76 g x 80 kg = 140,8 g de BCAA (ou seja, não é pouca coisa). Lembre-se, diversos estudos usam 8, 10 ou 12 g de BCAA. Além disso, muitos profissionais nutricionistas calculam 0,05 g/kg/dia de BCAA (por exemplo: 0,05 x indivíduo de 80 kg = 4 g/dia de BCAA).

Como critério de exclusão, estavam todos os estudos onde os indivíduos ingeriam, além dos BCAA, outros suplementos (por exemplo: creatina, HMB, Whey Protein e Arginina). Isso é fantástico, pois estava cansado de ver estudos enaltecendo um determinado suplemento, porém o estudo era conduzido com a combinação de vários suplementos. Além disso, como já dito, as mulheres foram excluídas, pois os níveis oscilantes de estrogênio poderiam comprometer os resultados (pode existir controvérsia neste item, mas foi o relato dos autores).  

Os participantes do estudo eram treinados?

Sim, nos estudos selecionados a maioria relatava o treinamento de força (musculação), mas também haviam estudos incluindo futebol, rugby, luta livre e ciclismo de estrada. OK, todos os estudos possuem algum risco de viés, onde misturar esportes diferentes poderia ser um ponto de crítica. Todavia, uma grande parte dos estudos com suplementos, incluindo BCAA, selecionam pessoas pouco treinadas ou destreinadas, o que foi rompido neste estudo.

Quais foram os resultados?

Peraí, não posso te contar os resultados se você não entende o que é LDH e CPK. Então, só mais 1 minuto:

LDH (lactato desidrogenase): enzima presente em nossas células, inclusive nas fibras musculares. Essa enzima é responsável pela conversão de piruvato em lactato, onde o piruvato é oriundo do metabolismo da glicose (portanto, glicólise). Sendo uma enzima intracelular, seus níveis sanguíneos elevados sugerem extravasamento de conteúdo intracelular ao meio extracelular, que seria resultado de algum dano celular. LDH tem sua elevação, geralmente, logo após o esforço físico e, por isso, foi foco de estudo.

CPK (creatina fosfoquinase): enzima presente no músculo esquelético (chamada de CPK-MM), mas também existe no miocárdio (CPK-MB) e no cérebro (CPK-BB). Ops! Já fiz um post sobre CPK aqui (Leia: Exame de CPK elevada, o que significa? Disponível em: https://peraltanutri.blogspot.com/2021/09/exame-de-cpk-elevada-o-que-significa.html), então vamos resumir: a CPK-MM (muscular) representa 95% de todas as CPKs. A estratégia para sua solicitação é mesma da LDH, ou seja, sua presença no meio extracelular é sugestiva de injúria tecidual, decorrente do extravasamento do conteúdo intracelular. Todavia, a CPK tem elevação prolongada, ou seja, pode durar 24 a 96 horas, justificando seu uso no estudo. 

Ao mesmo tempo, cabe destacar que a LDH não é muito específica para lesão muscular, pois a enzima também existe em outros locais (coração, rins, pulmões, pâncreas e fígado, bem como placenta e hemácias). De qualquer forma, seus valores de normalidade oscilam entre 120 e 246 UI/L (dependendo da fonte pesquisada). A CPK, por sua vez, permite uma visão mais específica do músculo esquelético, já que 95% das CPKs são representadas pela CPK-MM, como foi dito. A CPK total nos exames, portanto, é a somatória das CPKs destacadas. Seus valores de referência oscilam entre 32 e 294 U/L em homens e 33 a 211 U/L em mulheres (dependendo da fonte de pesquisa).

Embora estes sejam os dois marcadores bioquímicos de lesão muscular (LDH e CPK) usados no estudo da Nutrients (2021), que teve como objetivo verificar o processo inicial (até 24h) e prolongado (até 96h) de um possível dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD), lembre-se, novamente, que existem outros parâmetros na literatura para avaliar EIMD.

OK, pode me contar os resultados da Nutrientes (2021)?

Claro, a presença de níveis sanguíneos elevados de LDH e CPK em indivíduos submetidos ao esforço físico são sugestivos de dano muscular induzido pelo exercício (EIMD). De fato, no EIMD ocorre vazamento do material intramuscular (sarcolema) para o sangue em virtude do rompimento da membrana do retículo sarcoplasmático. Com base nisso, esperam-se respostas inflamatórias (inflamação do perimísio e/ou epimísio e dos produtos de degradação do tecido muscular) com edema local que, por vezes, pode levar a interrupção da atividade física por horas ou dias.

Neste estudo, foi investigado a hipótese do uso de BCAA na recuperação dos indivíduos submetidos ao treinamento, ou seja, os efeitos dos BCAAs nos marcadores bioquímicos de lesão muscular (LDH e CPK). Estes benefícios poderiam se manifestar na estimulação da síntese proteica, na redução do processo inflamatório e na aceleração do processo de regeneração muscular pós-treino. Neste estudo, o uso de BCAA em indivíduos treinados não trouxe nenhum efeito sobre a LDH em 24h e 48h. Como vimos, a LDH tem impacto na inflamação inicial e, segundo este estudo, não há redução da inflamação com o uso de BCAA.

NOTA: Ao mesmo tempo, essa informação é bastante limitada. Primeiro, porque um número limitado de estudos investiga a relação BCAA e redução de LDH no treino de força (não podemos estabelecer as devidas comparações) e, segundo, porque um RCT (ensaio clínico randomizado), mais completo, com inúmeros marcadores de lesão muscular, requer enormes recursos financeiros à ciência. Ou seja, pouco dinheiro é destinado à suplementação esportiva quando comparado a “cura” de doenças, por assim dizer.

Quanto a CPK, os resultados são mais animadores. Observou-se um efeito positivo para CPK em todos os tempos estudados, ou seja, menos de 24h (< 24h), 24h e 48h. Como vimos, a resposta da CPK é mais tardia ou prolongada, onde sua elevação pode durar 24 a 96 horas. Segundo os autores, o uso de BCAA pode mitigar o efluxo de CPK em todos os tempos de exercício e parece ter implicação em estágios do processo inflamatório. Este fato, segundo autores, poderia acelerar a regeneração muscular pós-exercício de força já que o nitrogênio, oriundo dos BCAAs, poderia ser direcionado ao processo de regeneração. Além disso, o BCAA pode ser transaminado para glutamato que, por sua vez, pode gerar glutamina (já vimos isso, lembra?). A glutamina (outro foco de grande polêmica, atualmente) é altamente utilizada pelas células inflamatórias e danificadas. Em outras palavras, a redução nos níveis de CPK, atenuando o dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD), pode ter relação com o BCAA em si ou sua conversão em glutamina.

NOTA: Deve existir um cuidado especial com a interpretação das informações. O estudo não avaliou o ciclo glutamato-glutamina e, portanto, são hipóteses (teóricas) para justificar os resultados encontrados na vertente CPK. E, claro, o estudo finaliza com aquelas frases padrões: “mais estudos são necessários para elucidar as vias de atenuação da dor ou dano muscular induzido pelo exercício”. Ao mesmo tempo, o estudo mostrou que doses maiores de BCAA (18 g/dia) foram superiores as doses baixas (6 g/dia).

E aí, BCAA é útil ou inútil?

Quanto ao dano muscular induzido pelo exercício, o uso de BCAA precisa ser mais estudado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

E aí, os BCAAs são úteis ou inúteis? Ou, melhor, útil para quê? Inútil em qual situação? São mocinhos ou vilões? Não seria melhor dizer que são apenas aminoácidos, que participam de vias metabólicas importantes? Por que esperar “milagres” dos BCAAs? Aliás, porque esperar “milagres” em quaisquer suplementos esportivos? De fato, posso concluir: um protocolo padrão para prescrição de BCAA, em diferentes modalidades esportivas, permanece obscuro. Mesmo assim, alguns “treinadores de atletas” optam por prescrever “doses cavalares” de BCAA, sem qualquer embasamento científico, exceto apoiados na experiência “NO PAIN, NO GAIN” ou “funcionou para mim, funciona para você”. A ciência, contudo, não existe para agradar a Gregos e Troianos, mas, sim, para fornecer a melhor explicação para uma dúvida da sociedade. Então, antes de sugerir, prescrever ou criticar, leiam. Caso contrário, sempre serão manipulados pelos “pseudocientistas das redes sociais” e “experts em treinamento e nutrição”. AHHH, se gostou pode compartilhar, desde que citado a fonte (Prof. Joelso Peralta, Blog: https://peraltanutri.blogspot.com; @peraltanutri).