quinta-feira, 25 de novembro de 2021

DOENÇA DE ALZHEIMER

 


DOENÇA DE ALZHEIMER

 As doenças neurodegenerativas são caracterizadas por lesões e morte de neurônios, de forma progressiva e irreversível, incapacitando determinadas funções do sistema nervoso, que é acompanhada com prejuízos na vida de relação das pessoas. Entre as doenças neurodegenerativas, podemos citar: doença de Alzheimer (DALZ), doença de Parkinson (DPARK), Demência com Corpos de Lewy (DCL), Demência Frontotemporal (DFT), Esclerose Múltipla (EM), Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) e doença de Huntington (DH). Hoje, vamos nos deter a DALZ que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), afeta 35,6 milhões de pessoas em todo o mundo e estima-se que o número tende a dobrar até 2030. No Brasil, os números podem chegar a 1,2 milhões de pessoas.

Mas, afinal, o que é a doença de Alzheimer (DALZ)?

A DALZ foi descoberta, em 1906, pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer (Aloysius Alzheimer, 1864-1915) e trata-se de uma doença neurodegenerativa e progressiva do sistema nervoso central (SNC), onde observa-se a redução do volume cerebral e na quantidade de neurônios, bem como prejuízo nas sinapses entre as células nervosas. A DALZ é mais comum em pessoas acima dos 65 anos de idade e, embora não tenha cura, existem vários tratamentos capazes de alterar o curso da doença, como veremos mais adiante.   

Quais são os sintomas da DALZ?

Antes de falarmos dos principais sinais e sintomas da doença, vejamos alguns famosos que tiveram Alzheimer: ator Gene Wilder (1933-2016), que interpretou Willie Wonka da "A Fantástica Fábrica de Chocolate" de 1971; o ator Charles Bronson (1921-2003), que fez sucesso como "durões" em filmes de faroeste; e o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan (1911-2004), tendo sido o 40º presidente dos EUA (1981-1989).

Na DALZ ocorre deterioração das funções cerebrais e o paciente evolui para demência, ou seja, deterioração das capacidades intelectuais, que incluem a perda de memória e desorientação, a dificuldade de linguagem (falada e escrita), as alterações de comportamento e a incapacidade de cuidar de si próprio. A perda de memória acaba sendo uma característica bastante triste, pois o paciente com DALZ acaba esquecendo de fatos recentes (Onde está a chave do carro? Onde deixei o lápis que estava aqui? Será que já tomei café da manhã?), enquanto que no avançar da doença, não lembra mais quem são seus filhos, parentes e amigos. Por vezes, o paciente com DALZ não consegue completar uma frase inteira ou apresenta frases sem quaisquer conexões.

O que causa a DALZ?

Como causa, destacam-se a predisposição genética, incluindo mutações nos genes da proteína percursora amiloide (APP) e na presenilina 1 e 2 (PSEN1/2); e o acúmulo de placas extracelulares “pegajosas”, ou seja, presença do peptídeo beta-amilóide (Aβ). Todavia, nas bases moleculares da doença também existem outras hipóteses: disfunção colinérgica (envolvendo a acetilcolina) e glutaminérgica (referente ao glutamato), bem como presença de emaranhados intracelulares ou agregados fibrilas intracelulares, originários da proteína Tau hiperfosforilada. Alguns trabalhos, inclusive, sugerem que o acúmulo de beta-amilóide (Aβ) seria um ativador da hiperfosforilação da proteína Tau.

Em resumo, os fragmentos proteicos tóxicos ocupam os neurônios e espaços entre eles, causando perda das funções neuronais no hipocampo e córtex cerebral. Alguns estudiosos sugerem que a deposição Aβ ocorre no início da DALZ, enquanto que os agregados da Tau ocorrem no decorre e final da doença. De qualquer forma, parece existir forte relação entre estas alterações, que resultam nas lesões cerebrais na doença.

Qual relação existe entre o sistema imunológico e DALZ?

Este é um questionamento interessante, pois o sistema imunológico (SI) nas doenças neurodegenerativas, incluindo a DALZ, sempre foi deixada em segundo plano ou considerada como secundária à doença. Uma grande parcela dos estudos explorava o acúmulo do peptídeo b-amilóide (Ab) e da proteína Tau, bem como os sintomas e possíveis tratamentos na DALZ. Porém, especialmente a partir dos anos 2000, começaram a “explodir” diversos estudos destacando o sistema imune (SI) como o “ator central” no início e na progressão das doenças neurodegenerativas e DALZ. Aliás, em uma busca simples no PubMed, usando como descritores "Alzheimer disease and immune system" (doença de Alzheimer e sistema imunológico) aparecem 4.430 estudos. Se usarmos um filtro de 10 anos (2011-2021) no PubMed, aparecem 2.663 estudos. De fato, as doenças neurodegenerativas envolvem uma complexidade de interações imunológicas, genéticas e de danos neurais, que resultam em fenótipos cognitivos debilitantes. Atualmente podemos encontrar inúmeros estudos sobre microbiota intestinal e DALZ, que são achados fantásticos, embora de bastante complexos e, portanto, deixaremos este assunto para outro post.

E, falando em sistema imune (SI) e DALZ, vamos dar uma atenção especial a micróglia. As micróglias são células imunológicas cerebrais, cujo principal função é inspecionar o microambiente local e responder a lesões pela liberação de moléculas pró-inflamatórias (citocinas) e fagocitar patógenos e células mortas (células apoptóticas). Em condições fisiológicas, as micróglias mantêm a homeostase local. Porém, na doença, as micróglias mudam sua morfologia e estão envolvidos na resposta inflamatória persistente (neuroinflamação) e lesões degenerativas (neurodegeneração).

Como assim, professor?

Perfeito, acho que precisamos “mastigar” um pouco mais essa temática para não deixar nenhum “grão” no prato, por assim dizer. Sendo assim, vamos lá.

A micróglia em repouso (M0), em sua forma com ramificações, possui receptores do tipo toll-like (TLRs), que é um exemplo de receptores de reconhecimento de padrão (PRRs, pattern recognition receptors). Ou seja, os TLRs nas micróglias reconhecem padrões moleculares associados a patógenos (PAMPS, pathogen-associated molecular pattern) e padrões moleculares associados a danos (DAMPS, damage-associated molecular pattern). Por vezes, a sigla PAMPS pode ser substituída por padrões moleculares de reconhecimento de microorganismos (MAMPS), dependendo da fonte consultada. Os PAMPS (ou MAMPS) podem ser vírus (contendo DNA ou RNA), bactérias (contendo lipopolissacarídeos ou LPS, que são endotoxinas das bactérias gram-negativas, como Escherichia coli; e glicolipídeos, glicoproteínas e peptidoglicanos das bactérias gram-positivas, como Staphylococcus aureus) e fungos (contém zimosan, como Candida albicans). Já os DAMPS são substâncias endógenas produzidas ou liberadas por células danificadas ou mortas (células apoptóticas).

Pois bem, após o reconhecimento de PAMPS/DAMPS, as micróglias (M0) sofrem alterações fenotípicas para micróglias do tipo M1 (que são pró-inflamatórias e citotóxicas) ou tipo M2 (que são anti-inflamatórias e neuroprotetoras), ambas com forma ameboide (e não mais ramificada). A micróglia (M1), cronicamente ativada, libera citocinas pró-inflamatórias e espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species). Entre as citocinas liberadas pela micróglia do tipo M1 podemos citar: interleucina-1b (IL-1b), interleucina-6 (IL-6), interleucina-18 (IL-18) e fator de necrose tumoral-a (TNFa). Já entre as ROS, podemos citar: radical superóxido (O2-·), peróxido de hidrogênio (H2O2) e radical livre hidroxil (OH·). A micróglia M2, por sua vez, libera interleucina-10 (IL-10), que é um inibidor da micróglia M1, o que justifica seu papel anti-inflamatório e neuroprotetor.

Quer dizer, os patógenos que porventura consigam invadir o sistema nervoso central (SNC) são atacados por micróglias (M1) e astrócitos (outro tipo de célula no SNC) ativados, que exercem funções neuroprotetoras e reparadoras neste microambiente. Além disso, os linfócitos T (células imunes periféricas) também podem ser recrutadas para atuar contra os patógenos.

Beleza, mas se micróglias, astrócitos e até linfócitos T atacam patógenos e protegem nosso cérebro, como justificar as doenças neurodegenerativas e a neuroinflamação?

Pois bem, vamos as problemáticas. Os depósitos de b-amilóide (Aβ), mencionados anteriormente, ativam as micróglias. As micróglias, então, fagocitam peptídeos Aβ e liberam substâncias tóxicas associadas a morte neuronal. Além disso, a micróglia também possui receptor de ligação b do tipo 1 e 2 (TGFBR1/2) para o fator de crescimento transformante-β (TGFβ), que é uma citocina neuroprotetora. Quer dizer, TGFβ regula a neurogênese, gliogênese, mielinização e sinapse, bem como reduz a placa amilóide e evita a morte neuronal. Todavia, em algumas doenças neurodegenerativas, como a DALZ, os receptores de TGFβ (chamados de TGFBR1/2), encontrados na superfície celular de neurônios e micróglia, não reconhecem TGFβ e, dessa forma, perde-se o efeito neuroprotetor desta citocina.

Uau, não é mesmo? Porém, ainda não acabou.

As micróglias também possuem um receptor chamado receptor transmembrânico expresso em células mieloides 2 (TREM2). A inibição ou mutação de TREM2 diminui o número de micróglias, aumenta a quantidade de proteína Tau e parece estar envolvida no envelhecimento. Ao mesmo tempo, dependendo o ligante, a ativação do TREM2 resulta em ativação exacerbada do fator nuclear kappa B (NFkB), que responde com sinalização inflamatória persistente. A expressão da enzima indoleamina-2,3-deoxigenase (IDO) também é observada na micróglia. Quer dizer, esta enzima (IDO) está envolvida no catabolismo do aminoácido triptofano (TRP) para formar quinurerina. A quinurenina é um metabólito do aminoácido TRP usado na produção de niacina (vitamina B3). Em mamíferos, apenas 5% do TRP é catabolizado através da via da serotonina (5-hidroxitriptamina ou 5-HT), pois a grande maioria do TRP é metabolizada na via da quinurerina. Pois bem, os metabólitos do TRP induzem a apoptose em células vizinhas (formam-se células apoptóticas). Essa pode ser considerada uma barreira imunológica que protege o SNC, desde que não exagerada (afinal, não queremos “morte” exagerada de células nervosas). No exercício e no esporte, como sabemos, o excesso de quinurenina e ácido quinurínico no cérebro de roedores estão implicados com a fadiga central (já fiz um debate sobre os BCAAs – aminoácidos de cadeia ramificada –, triptofano, quinureninas e fadiga central neste Blog).

E os astrócitos, professor?

Buenas, podemos falar rapidamente sobre eles.

Os astrócitos são células do tipo neuroglia (neuróglia, células da glia ou, simplesmente, glia), que são células do sistema nervoso central (SNC) que proporcionam suporte e nutrição aos neurônios. Os astrócitos são os tipos celulares mais abundantes no SNC (50% do número total de células do SNC). Pois bem, os astrócitos expressam receptores que são membros do fator de necrose tumoral (TNF), envolvidos na regulação da morte celular. Quer dizer, astrócitos expressam o ligante FasL, que interagem com Fas (também chamado de CD95 ou Apo-1 ou TNFRSF6) em linfócitos T autoativos, resultando em apoptose dos linfócitos que poderiam ser potencialmente danosos ao SNC. Em outras palavras, a morte mediada pela interação Fas-FasL garante a homeostase imunológica, “eliminando” uma resposta exacerbada dos linfócitos no SNC. Outros autores dizem que os astrócitos desempenham um papel de barreira sangue-cérebro (evitando a entrada de moléculas grandes, como os anticorpos e o sistema do complemento) e, consequentemente, modulando a resposta imune inflamatória. As células da glia também liberam o fator neurotrófico derivado do cérebro (BNDF), envolvido na neuroplasticidade. Astrócitos também liberam o fator de crescimento transformante-β (TGFβ), que é uma citocina neuroprotetora, como já discutido. Por fim, em condições normais o SNC é anti-inflamatório (protegido por IL-10 e TGFb, por exemplo) e as citocinas pró-inflamatórias estão presentes em condições basais. Porém, durante um estado inflamatório exacerbado, como na doença, um excesso de citocinas e ROS prejudicam o SNC, o que também compromete o funcionamento dos astrócitos. Aliás, a função dos astrócitos também está comprometida no envelhecimento, o que poderia justificar o avanço das doenças neurodegenerativas com a idade avançada.

Qual tratamento da DALZ?

O tratamento na DALZ é baseado na intervenção farmacológica e não farmacológica. Na farmacológica, destaca-se os inibidores da acetilcolinesterase (AChE), os antagonistas de receptores de N-metil-D-aspartato (NMDA), os agentes quelantes de metais e a terapia de suporte (ou seja, uso de fármacos específicos para tratar outros distúrbios neuropsiquiátricos, como a depressão, mas usados também no Alzheimer). Não pretendo apresentar e discutir aqui os diferentes tipos de medicamentos na terapêutica da DALZ, onde podem encontrar maiores detalhes nas referências bibliográficas após o texto.

Quanto aos recursos não farmacológicos podemos citar a terapia com música (musicoterapia) e com animais (pet terapia) e a fonoaudiologia (essencial para preservar a comunicação, fala, leitura, mastigação e deglutição). Na realidade, a terapia comportamental e ocupacional é muito abrangente e útil no Alzheimer.

E a Nutrição, professor e nutricionista, não é uma estratégia viável de tratamento na DALZ?

Sim, com certeza. A nutrição é um campo fértil de estudo na DALZ. Existem estudos sobre a vitamina E e C, quercetina, coenzima Q10, ácido lipóico, resveratrol, curcuma/curcumina, beta-glucana, lactoferrina, probióticos e ácido docosahexaenoico (DHA, que é um ácido graxo ômega-3). Quanto ao DHA, por exemplo, parece que ameniza o Alzheimer por inibição da apoproteína E4 (ApoE4), que é um fator de risco para DALZ. Novamente, para maiores detalhes seguem as referências ao final do texto.

E as novidades na terapêutica da DALZ?

Sim, também existem novidades. Recentemente foi divulgada uma vacina contra a DALZ, sendo a primeira vacina para testes clínicos em humanos (leia: https://canaltech.com.br/saude/por-que-o-brasil-e-o-unico-a-adotar-a-terceira-dose-da-vacina-da-janssen-202258/). A vacina chamada ALZ-101, da empresa sueca Alzinova, faz parte de um estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, com 26 voluntários diagnosticados no estágio inicial da doença. Essa vacina carregaria anticorpos sintéticos, que miram uma proteína tóxica chamada beta-amilóide (Ab), que se acumula nos neurônios e ao seu redor. Algum tempo atrás também tinha sido anunciado uma nova vacina nasal para prevenir e retardar a progressão da DALZ (leia: https://www.brighamandwomens.org/about-bwh/newsroom/press-releases-detail?id=4029). Neste caso, o Brigham and Women’s Hospital, em Massachusetts, nos EUA, haviam anunciado uma vacina nasal. A vacina nasal usaria um modulador imunológico chamado protolina, derivado de bactérias, capaz de ativas leucócitos em linfonodos nas regiões do pescoço, que migrariam até regiões cerebrais para degradar a beta-amilóide (Ab).

Referências:

Alzheimer’s disease – The Lancet. Disponível em: https://www.thelancet.com/clinical/diseases/alzheimers-disease#:~:text=Alzheimer%27s%20disease%2C%20the%20most%20prevalent%20cause%20of%20dementia%2C,causality%20as%20proposed%20in%20the%20original%20amyloid%20hypothesis.

Anna De Falco et al. Doença de Alzheimer: hipóteses etiológicas e perspectivas de tratamento. Quím Nova 39(1): 63-80, 2016.

Can you recognize the warning signs of Alzheimer’s disease? – Harvard Health Publishing. Disponível em: https://www.health.harvard.edu/mind-and-mood/can-you-recognize-the-warning-signs-of-alzheimers-disease#:~:text=Wandering%2C%20becoming%20agitated%2C%20hiding%20things%2C%20wearing%20too%20few,if%20a%20person%20hasn%27t%20behaved%20that%20way%20earlier.

Cody M. Wolfe et al. The Role of APOE and TREM2 in Alzheimer’s Disease - Current Understanding and Perspectives. International Journal of Molecular Sciences.

Instituto Alzheimer Brasil (www.institutoalzheimerbrasil.org.br). Disponível em:  https://www.institutoalzheimerbrasil.org.br/epidemiologia/?pag=epidemiologia/

 Luca Muzio et al. Microglia in neuroinflammation and neurodegeneration: from understanding to therapy. Frontiers in Neuroscience 15:742065, 2021.

Rhonda P. Patrick. Role of phosphatidylcholine-DHA in preventing APOE4-associated Alzheimer's disease. FASEB J 33(2):1554-1564, 2019.

Stages of Alzheimer’s – Alzheimer’s Association. Disponível em: https://www.alz.org/alzheimers-dementia/stages#:~:text=Alzheimer%E2%80%99s%20disease%20typically%20progresses%20slowly%20in%20three%20general,%E2%80%94%20or%20progress%20through%20the%20stages%20%E2%80%94%20differently.

Timothy R. Hammond et al. Immune Signaling in Neurodegeneration. Immunity 50: 955-974, 2019.

Vacina do Alzheimer. Disponível em: https://canaltech.com.br/saude/por-que-o-brasil-e-o-unico-a-adotar-a-terceira-dose-da-vacina-da-janssen-202258/

Vacina nasal no Alzheimer. Disponível em: https://www.brighamandwomens.org/about-bwh/newsroom/press-releases-detail?id=4029

What Are the Signs of Alzheimer’s Disease? – National Institutes of Health (NIH). Disponível em: https://www.nia.nih.gov/health/what-alzheimers-disease#:~:text=Memory%20problems%20are%20typically%20one%20of%20the%20first,signal%20the%20very%20early%20stages%20of%20Alzheimer%E2%80%99s%20disease.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

CRONOBIOLOGIA E COVID-19

 

CRONOBIOLOGIA E COVID-19

Você já observou que, durante a pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), as pessoas perderam seus horários? Quer dizer, algumas dormem tarde e acordam tarde, enquanto outras dormem no horário “normal”, mas ficam “ligadas” na tela do celular ou TV, não é verdade? Você já pensou que essa luminosidade toda poderia dessincronizar nosso “relógio biológico” em virtude da interrupção da regularidade do sono? E, ainda, tem aquelas que estudam e trabalham Home Office nos mais diferentes horários (afinal, estamos em casa), mas esse cenário remoto não estaria acabando com nossos horários de refeição, de lazer, de esporte? Se sim, nosso “relógio biológico” estaria sendo perturbado, dessincronizado, desregulado? Uma dessincronização ou desregulação do “relógio biológico” poderia favorecer o surgimento de doenças no contexto da pandemia de COVID-19?

Estes dias assisti a excelente palestra da Dra. Luísa Klaus Pilz (Currículo lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/0712780414623832), sobre cronobiologia, no Seminário Científico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas: Farmacologia e Terapêutica (PPGFT), onde faço meu doutorado (que não é sobre este assunto, mas tem muita relação com as conexões cerebrais, por assim dizer). A Dra. Luísa é graduada em Biomedicina pela Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); Mestre em Ciências Biológicas: Bioquímica pela UFRGS; Doutora (doutorado sanduíche) em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS e pelo Instituto de Psicologia Médica da Ludwig Maximilian Universität (LMU, Alemanha); e Pós-doutora UFRGS/LMU-Alemanha. Ou seja, Dra. Luísa entende muito do assunto. Essa palestra despertou um antigo interesse que já tinha sobre a cronobiologia. Então, refiz minhas leituras e pesquisas sobre o assunto e deixo, aqui, algumas considerações. 

MAS, AFINAL, O QUE É CRONOBIOLOGIA?

A cronobiologia é a ciência que estuda as características temporais da matéria viva em todos os níveis de organização, o que inclui o estudo dos ritmos biológicos. Os ritmos biológicos são os fenômenos que se repetem de tempos em tempos e, portanto, de forma cíclica. Podemos dizer, também, que a cronobiologia é um ramo da biologia que estuda os ritmos fisiológicos naturais dos organismos e, neste caso, nós (pessoas) também podemos ser estudados pelos cronobiologistas. Obviamente, o ritmo circadiano, que tem relação com nosso sono (ou falta dele), é um dos assuntos mais estudados na cronobiologia.

O QUE É RITMO CIRCADIANO?

Como o nome o próprio nome diz, os ritmos circadianos referem-se aos ritmos que se repetem em cada 24 horas (onde no latim temos ‘circa’ e ‘diem’, portanto, próximo ou cerca de um dia). Neste sentido, podemos estudar o ritmo de plantas, animais e, até mesmo, micróbios. Contudo, quando falamos em ritmo circadiano tenho certeza que, imediatamente, você pensa no sono e na melatonina, onde tem toda a razão de pensar assim (como veremos).

O ciclo de sono-vigília ou “acordar e dormir” é um exemplo clássico. Entretanto, existem outros ritmos nos seres humanos que podem ser estudados: temperatura corporal, secreção hormonal e funcionamento dos órgãos em um período de 24 horas. Aliás, não é exatamente 24 horas, pois pode ser um pouco menos para alguns e um pouco mais para outros (oscilação de 20 até 28 horas), o que também depende da espécie estudada. O ritmo circadiano parece ser algo evolutivo para garantir a sobrevivência da espécie, embora existam muitas teorias (proteção do DNA, inativação de espécies reativas do oxigênio, vantagem seletiva, influência cósmica, etc.) para tentar explicar algo um tanto inexplicável ou não totalmente compreendido, por assim dizer.

Apenas a título de curiosidade, por vezes, também se observam os termos ritmos infradianos e ultradianos. Você já ouviu falar disso?

Pois bem, os infradianos são ritmos que ultrapassam o circadiano ou “além de um dia” (portanto, acima de 24h ou, melhor, acima de 28h, segundo a literatura). Exemplo: o ciclo menstrual (ciclo sexual mensal) se repete a cada 28 dias, passando pelas fases de menstruação, folicular, ovulatória e lútea. Com base nisso, podem ser esperadas flutuações dentro deste ciclo menstrual (nível de energia, alterações de humor ou irritabilidade, alteração do sistema imune e alterações no padrão do sono) entre as mulheres. A hibernação que alguns animais realizam também é um exemplo de ritmo infradiano, que extrapolam o ciclo circadiano. Na hibernação, alguns animais ficam letárgicos, sonolentos e inativos por um determinado período. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência que alguns animais utilizam para vencer as condições ambientais desfavoráveis (inverno rigoroso com pequena quantidade de alimentos disponíveis). O urso polar é, provavelmente, a espécie mais conhecida por hibernar, mas também hibernam esquilos, morcegos, lagartos, ratos-silvestres, hamsters e ouriços. Ops, lembrei agora, a mudança nas árvores, que perdem e renovam suas folhas, durante as diferentes estações do ano (Primavera, Verão, Outono e Inverno), é um exemplo de ritmo infradiano. Os ritmos ultradianos, por sua vez, são aqueles que se repetem em um período menor que o circadiano (menos de 20h) ou que se repetem várias vezes em um dia. Exemplo: batimentos cardíacos, ondas cerebrais e secreções hormonais (cortisol, leptina, insulina, grelina, testosterona, entre outros).  

Ainda a título de curiosidade, alguns ciclos não se alteram pela inversão do ciclo claro-escuro (dia-noite), pois seria um caos para manter a sobrevivência da espécie. Por exemplo, a temperatura corporal em seres humanos se mantém relativamente constante (36,8ºC), exibindo, apenas, pequenas oscilações (0,5 a 0,6ºC). Ou seja, é um ciclo endógeno que independe das modificações do meio externo, como a supressão da luminosidade. Por outro lado, alguns ritmos necessitam de estímulos externo (ciclo exógeno), ou melhor, ocorre sincronização dos ritmos biológicos com os ciclos ambientais. Complicado? Peraí, vejam bem: na natureza alguns animais (aves e mamíferos) utilizam os sinais de luminosidade (prolongamento da luz solar e encurtamento do período noturno) para sincronizar seus ritmos biológicos com o ciclo ambiental, por exemplo, para a reprodução. Quando os fatores ambientais regulam o “relógio biológico” usa-se o termo “Zeitgeber” (do alemão ‘Zeit’, tempo; ‘Geber’, doador) que, em uma tradução grosseira, seria “doadores de tempo”. Este aspecto, na realidade, é bem complexo de entendimento, mas no momento basta sabermos que as oscilações externas (ciclo exógeno) sincronizadas com os ciclos endógenos (“relógio biológico”) são chamadas de Zeitgeber, que é um mecanismo de temporização das espécies.   

Peraí, voltando a relação cronobiologia e COVID-19:

A “bagunça” em nossos horários, durante a pandemia, pode estar dessincronizando nosso ritmo circadiano e abrindo as portas para as doenças, como a depressão e as doenças neurogenerativas? A interrupção na regularidade dos padrões de sono pode estar confundindo nosso “relógio biológico” e, dessa forma, impactar negativamente sobre nossa saúde? Esse impacto pode estar manifestado, de alguma forma, nas doenças crônico-degenerativas (obesidade, diabetes, hipertensão e doença cardiovascular)? Ou, pelo contrário, nosso organismo é “esperto” e consegue se adaptar as mudanças no ciclo de sono-vigília, garantindo a saúde e evitando a doença? Bem, não sou especialista no assunto (muito longe disso), mas fiz algumas pesquisas na busca de algumas respostas (afinal, meus horários estão uma “bagunça”, rs).

COMO SE DÁ A REGULAÇÃO DO RITMO CIRCADIANO?

Os ritmos biológicos estão em toda parte, basta observar com atenção. Por exemplo, a migração anual de pássaros é um fenômeno extraordinário, onde centenas de aves ao redor do mundo percorrem longas distâncias com a mudança das estações do ano. Embora a migração pareça ter relação com a busca de comida e por climas mais quentes, trata-se de uma situação rítmica biológica em nosso ecossistema. Segundo o Portal São Francisco (https://www.portalsaofrancisco.com.br/biologia/migracao-de-aves), a andorinha-do-mar ártica, que procria no norte do Círculo Ártico, voa quase 18 mil quilômetros para o Sul, em direção à Antártica, quando chega o inverno no Norte. Já o beija-flor-de-pescoço-vermelho (Archilochus colubris), que é uma ave minúscula, consegue voar mais de 800 quilômetros, do litoral Sul da América do Norte à Península Yucatan no México para se alimentar de flores durante os meses mais frios do inverno. A revista Superinteressante, em 2018 (https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quais-sao-os-animais-recordistas-em-migracoes), também trouxe uma matéria sobre os animais recordistas em migrações, onde destaca-se o pássaro brasileiro chamado bobo-escuro (Puffinus griséus), um parente do albatroz, que viaja 63 mil quilômetros anualmente.

Enfim, andorinhas, beija-flores, patos, gansos, cisnes, flamingos e cegonhas, bem como mamíferos (baleias e elefantes-marinhos), insetos e peixes migram, anualmente, grandes distâncias. Trata-se de um fenômeno que repete de tempos em tempos e que pode ser estudado na cronobiologia. O comportamento de determinados animais migratórios, portanto, é mediado pelo “relógio biológico” destes, que depende da alimentação e temperatura. Além disso, sugere-se que estes animais migram guiados pelo sol, lua, estrelas, marés e, até mesmo, campos magnéticos terrestres. Na verdade, não sabemos exatamente como fazem tal façanha migratória, mas essa situação rítmica tem sido estudada na cronobiologia (e muitas respostas também foram obtidas). Todavia, entre os ritmos biológicos em seres humanos, certamente os ritmos circadianos são os mais estudados na cronobiologia. E, agora, vamos entender como esse processo é regulado em seres humanos.  

No ritmo circadiano (24h) dos seres humanos podemos observar uma sincronização do meio externo (ambiente) como o meio interno (“relógio biológico”), onde usamos o termo Zeitgeber. Todavia, como esse fantástico processo é regulado? Buenas, agora merece destaque uma pequena região do cérebro chamada de núcleo supraquiasmático (SCN, sigla do inglês suprachiasmatic nucleus). O SCN é o centro primário de regulação dos ritmos circadianos ou, se preferir, é uma espécie de “marca-passo central”. Alguns estudiosos também o chamam de “relógio cerebral”. O SCN fica localizado acima do cruzamento dos nervos ópticos e recebe informações de luz originárias dos olhos, particularmente da retina. O processamento destes dados é complexo, mas podemos resumir assim:

·       A retina recebe informações de luz do ambiente, pois possuem fotorreceptores para distinguir formas e cores, bem como células glanglionares ricas em melanopsina (um fotopigmento) que enviam informações ao SCN;

·       O SCN analisa a informação recebida e envia ao gânglio cervical superior sinais para a glândula pineal, que secreta (ou não) a melatonina;

·       A melatonina, que é um hormônio secretada pela glândula pineal, propicia o sono;

·       O SCQ também envia sinais elétricos e humorais para o córtex cerebral, o hipotálamo, o cerebelo e o tronco cerebral, além de gerar sinais ritmos que afetam os órgãos periféricos (estômago, intestino, fígado, coração, pulmões, músculos esqueléticos e tecido adiposo).

Portanto, o SCN tem relação direta com a produção de melatonina, o famoso “hormônio do sono”. Segundo Sandra J. Kuhlman et al. (Introduction to Chronobiology Cite. Cold Spring Harb Perspect Biol 10: a033613, 2018), uma lesão no SCN resulta em perda das funções rítmicas, incluindo o ciclo de sono-vigília, a produção hormonal e o controle da temperatura corporal. E, por isso, que sempre falamos dos cuidados com a luminosidade (celular ou TV) na hora de dormir, pois você pode estar “bagunçando”, “desregulando”, “dessincronizando” seu SCN e “relógio biológico”, que pode se manifesta na menor biossíntese e liberação de melatonina.

A melatonina (N-acetil-5-metoxitriptamina), produzida pela glândula pineal, tem um papel central no sono e, qualquer dificuldade neste sentido poderá prejudicar seu pleno, acolhedor e tranquilo sono. Ou seja, cabe destacar que a biossíntese e liberação de melatonina depende da ausência de luminosidade no ambiente. Além do sono, a melatonina desempenha outras funções em nosso organismo, incluindo ação antioxidante e imunomoduladora (modulação do sistema imunológico). Sabendo disso, você ainda pretende dormir olhando TV ou “curtindo” seu FACE e Instagram? Ao mesmo tempo, especula-se se uma disfunção do SCN poderia acarretar doenças em órgãos periféricos, por exemplo, fígado gorduroso, cirrose, hepatite e, até mesmo, câncer de fígado. Pois é, esse assunto vai longe, mas é interessantíssimo.

Mas, voltamos a regulação do ritmo circadiano. Não quero entrar em uma discussão bioquímica “pesada” e prolongada aqui, mas os mecanismos moleculares do ciclo circadiano em mamíferos envolvem determinados genes, como o CLOCK (clock controlled genes ou relógio controlado por genes). Muitas vezes, o CLOCK é acompanhado do BMAL1 (brain and muscle Arnt-like protein-1 ou proteína-1 cerebral e do músculo ligada ao Arnt), portanto, CLOCK:BMAL1. BMAL1, segundo outros autores, é chamada simplesmente de Arnt3 ou MOP3. Então, bem rapidamente: a retina recebe informações de luz ambiental, onde as células glanglionares contém um fotopigmento chamado melanopsina. Com base nisso, são liberados glutamato (GLU) e peptídeo ativador adenilato ciclase da pituitária (PACAP), que são neurotransmissores que medeiam as propriedades sincronizadoras da luz. Estes (GLU e PACAP) interagem com receptores em neurônios do SCN, onde é liberado cálcio no citossol. Ocorre fosforilação do CREB (cAMP response element-binding protein ou proteína de ligação em resposta ao AMP cíclico), que desencadeia a ativação do CLOCK:BMAL1. Por fim, ocorre a transcrição de genes circadianos conhecidos como Period (Per1 e 2), Cryptochrome (Cry1 e 2), Rev-erb (Reverba e β) e Ror (Rora, β e g). A partir daí o assunto torna-se cada vez mais complexo e, aos curiosos e estudiosos, aconselho a leitura de Alexandra J. Trott; Jerome S. Menet. Regulation of circadian clock transcriptional output by CLOCK:BMAL1. PLOS Genetics 1-34, 2018.

PODEMOS ALTERAR NOSSO “RELÓGIO BIOLÓGICO”?

Essa é uma dúvida interessante, ou seja, como se comporta o ritmo circadiano das pessoas que trabalham a noite, mas dormem durante o dia (seguranças, vigilantes, profissionais de saúde e pilotos de avião)? Para responder a essa pergunta, precisamos entender o conceito de “jetlag” e “jetlag social”.

O chamado “jetlag” é uma experiência comum entre as pessoas que viajam para lugares com fusos horários diferentes e, certamente Eu, Você e Todos Nós já sentimos isso. E, se a diferença entre os lugares (ou países) for muito grande, então nosso corpo ficará muito confuso quanto ao horário de acordar, dormir ou realizar as refeições diárias. Já passou por isso? Lembra-se como foi ruim? Já o “jetlag social” é semelhante, mas não depende de viagens e, sim, da discrepância no tempo de sono em relação as nossas atividades diárias ou cotidianas, incluindo os tempos livres.

Como assim, professor? Beleza, deixa-me explicar melhor.

Nos finais de semana você costuma acordar mais tarde quando comparado aos dias de semana? Se sim (e certamente é um SIM, rs), notou que segunda-feira, vindo de um domingo, seu dia começou com dificuldade para acordar e, provavelmente, não cumpriu com adequação suas atividades diárias? Você parecia “lento” e “preguiçoso”? Pois bem, aí está o “jetlag social”, que ocorre de forma corriqueira em todas as pessoas que trabalham com horários predeterminados durante a semana, mas adoram ficar até mais tarde na cama no sábado e domingo. A pergunta de um “zilhão de dólares” seria: o “jetlag social” pode estar desalinhando ou dessincronizando meu “relógio biológico” ao ponto de causar doenças? Como eu disse, não sou especialista no assunto, mas fui atrás de algumas respostas. Continue a leitura.

O que sabemos, atualmente, segundo a Dra. Luísa Klaus Pilz, durante sua palestra que mencionei anteriormente, é que quanto menor for o “jetlag social”, melhor seria a saúde do indivíduo. Ao mesmo tempo, quanto maior for o “jetlag social”, mais prejuízos de saúde podem ser esperados. Em outras palavras, muitos horários diferentes durante um período de 24 horas, durante semanas ou meses, prejudicam o ciclo circadiano, podendo prejudicar sua saúde. Neste sentido, ser mais regular em suas atividades diárias, mantendo, dentro do possível, seu horário comum de acordar e dormir, poderá lhe manter ou promover a saúde. Mas, professor, e o trabalhador, que trabalha a noite, mas dorme durante o dia? E, ao mesmo tempo, está me dizendo que não posso mais dormir até tarde nos finais de semana? Buenas, não estou afirmando nada, mas me arriscaria dizer três coisas:

·       Primeiro, se o trabalhador faz isso sempre da mesma forma, nos mesmos horários, durante muitos meses ou anos, o corpo vai terminar se acostumando;  

·       Segundo, nosso ritmo circadiano não se modifica facilmente (pois é um processo evolutivo e bioquimicamente bem regulado) e, dessa forma, a primeira premissa pode estar errada;

·       E, terceiro, Eu e Você continuaremos dormindo até meio-dia no domingo, mesmo que a ciência mostre que estamos errados (rs) (Não é verdade?).

E, agora? O que fazer? O que pensar? Assunto interessante, não é mesmo? Pois bem, não espere uma resposta exata para tudo isso, pois simplesmente não existe. Ao mesmo tempo, sabe-se muita coisa. Então, vamos continuar essa leitura “biologicamente programada”, embora não obrigatória (rs). 

EXISTE ALGUMA RELAÇÃO ENTRE A DESREGULAÇÃO DO “RELÓGIO BIOLÓGICO” E O SURGIMENTO DE DOENÇAS, ESPECIALMENTE NO CONTEXTO DA PANDEMIA?

Uma matéria em uma revista eletrônica, não científica, chamada “A Mente é Maravilhosa” (https://amenteemaravilhosa.com.br/efeitos-de-trabalhar-a-noite/), relata que trabalhar à noite, como ocorre entre os seguranças, vigilantes, pilotos de avião e profissionais de saúde, pode reduzir significativamente a qualidade de vida das pessoas. Segundo a matéria, nosso cérebro desenvolveu um mecanismo para descansar a noite e a mudança no horário “normal” de dormir prejudica a qualidade de sono e produção de melatonina. Os prejuízos, portanto, se manifestam nas irregularidades menstruais, no aumento da irritabilidade e na possibilidade de desenvolver doenças, especialmente a doença cardiovascular. Além disso, as pessoas relatam alterações digestivas, insônia, fadiga crônica e redução da vida social e familiar. Claro, essa não é uma matéria científica, como foi dito (e nem exibe os estudos utilizados no texto). Sendo assim, o que dizem os estudos científicos?

Um estudo publicado pela International Journal of Obesity, em 2015 (Social jetlag, obesity and metabolic disorder: investigation in a cohort study. International Journal of Obesity 39: 842-848, 2015) encontrou correlação entre o “jetlag social”, a disfunção metabólica, a obesidade e o diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Trata-se de um estudo de coorte longitudinal com 1037 voluntários (lembre-se: estudos observacionais possuem menor grau de evidência quanto comparados aos estudos randomizados, duplo-cegos, controlados, mas é o que temos sobre o assunto). Neste estudo, viver “contra nosso relógio interno” pode contribuir para disfunções metabólicas e doenças. Segundo os autores, a ruptura circadiana causa sintomas metabólicos desfavoráveis em animais e humanos.

Isso poderia explicar, em parte, a epidemia de obesidade que vivemos? Não sei, pois a obesidade é uma doença multifatorial, mas certamente uma “pulga atrás da orelha” consegui deixar. Aliás, você pode estar sofrendo de “jetlag social” e nem imaginava, não é mesmo? Para tanto, pense se seus horários de acordar e dormir são sempre os mesmos durante a semana e os finais de semana. Além disso, pense se você prepara o ambiente para dormir (quarto escuro, ambiente silencioso) ou prepara o ambiente para não dormir (TV ligada, celular na mão ou fazer uma “DR”, ou seja, “discutir a relação”, rs). Por fim, pense se seus horários, durante a pandemia, não estão uma verdadeira “bagunça”.  

Mas, atenção, cada pessoa tem uma cronotipo específico e, portanto, individual. Em outras palavras, cada pessoa sabe seu melhor horário para acordar, trabalhar, dormir. Cronotipo seria uma espécie de preferência por determinados horários do dia. Algumas pessoas funcionam melhor pela manhã, enquanto outras (como eu) são imprestáveis neste horário. Outras pessoas são verdadeiras “corujas” e funcionam melhor a noite (estou nesta lista). Outras, por sua vez, são verdadeiras “cotovias”, um pequeno passarinho que acorda cedo e cheio de energia (que inveja, não?). Então, imaginem alguém que “odeia” acordar cedo (“corujas”) ter que se deslocar até a Escola, pela manhã, para estudar? Este fato não lhe é familiar? Será que as falhas de memória e aprendizado, em alguns casos reais da vida, tem relação com o ciclo circadiano dos estudantes? Se sim, como os professores e as Instituições de Ensino poderiam resolver isso? Ou, pelo contrário, você não é um adolescente “coruja”, mas vai usar esse argumento com seus pais para conseguir dormir até meio-dia (rs)? Já o outro adolescente poderá usar este argumento para justificar sua permanência na frente do computador madrugada à dentro, enganando, novamente, seus pais (rs)? E, nestes casos, como avaliar o cronotipo de uma pessoa? Aos curiosos, aconselho a leitura do estudo de Márcia Finimundi et al. (Validação da escala de ritmo circadiano – ciclo vigília/sono para adolescentes. Rev Paul Pediatr 30(3):409-414, 2012), que traz a validação de uma escola de ritmo circadiano.

E na COVID-19, o que dizem os estudos de cronobiologia? Claro, vamos lá.

Segundo Marco Túlio de Mello et al. (Sleep and COVID-19: considerations about immunity, pathophysiology, and treatment. Sleep Sci. 200-209, 2020), o medo e a incerteza de dias melhores (sem o desemprego, por exemplo), associada a quarentena (isolamento social), causadas pela pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), colocaram as pessoas em situação de estresse (crônico) e insônia. Essas situações são acompanhadas por ansiedade e depressão. Neste triste cenário, onde o sono certamente teve prejuízos, a produção de melatonina também foi afetada. A privação do sono prejudica a qualidade de vida do indivíduo, incluindo a redução da defesa imunitária, o que pode abrir as portas para as doenças e a neurodegeneração. Os distúrbios do sono podem agravar a inflamação sistêmica e pulmonar (que são dois fatores de grande atenção durante a pandemia). Especula-se que estes aspectos, somados, podem deixar as pessoas mais vulneráveis a infecção viral, como SARS-CoV-2.

Peraí, um pouquinho mais de bioquímica pode explicar os distúrbios do sono durante a pandemia e suas implicações na saúde. Por exemplo, a interleucina-6 (IL-6), que é uma citocina pró-inflamatória secretada por monócitos (mas também macrófagos, células endoteliais e fibroblastos), tem pico entre 19h e 5h da manhã (portanto, noite e madrugada). Porém, se você perdeu o sono, por inúmeros motivos, como fica a produção de IL-6 e a inflamação se às 4h da manhã você ainda não dormiu? Na privação de sono recorrente, a IL-6 vai aparecer mais cedo ou mais tarde em sua vida? Da mesma forma, a secreção do fator de necrose tumoral-a (TNF-a), que é outra citocina inflamatória, poderá ter sua secreção em diferentes horários, devido sua insônia? E se a privação de sono for crítica, como ficar 3, 4 ou 5 noites sem dormir (ou dormir, porém sem qualidade alguma), seu corpo pode estar “inflamado” e, dessa forma, “inflamando” seu cérebro e causando neurodegeneração? Qual impacto da privação de sono, parcial ou total, sobre o sistema imunológico? Por exemplo, sabe-se que a privação do sono reduz a produção de células T e a atividade de Th1-Th2, o que prejudica as células B. Sendo assim, a privação do sono, durante a pandemia, não estaria prejudicando seu sistema imune e facilitando a infecção viral? 

Apenas relembrando: os linfócitos T coordenam o sistema imune para inativar e destruir possíveis patógenos, sendo classificados como T-auxiliares (CD4+) e T-citotóxicos (CD8+). Os CD4+ coordenam a resposta imune e estimulam os linfócitos B, enquanto que os CD8+ reconhecem e destroem patógenos. Os linfócitos B são responsáveis pela produção de anticorpos, que guardam “memória” imunológica para responderem a um novo contato ou contágio. Os linfócitos T e B fazem parte da imunidade adquirida ou adaptativa. Os linfócitos T CD4+ (auxiliares ou Helper) secretam citocinas que estimulam os linfócitos B, mas podem ser divididos em dois subgrupos: Th1 e Th2. Os linfócitos Th1 (T helper 1) produzem citocinas relacionadas com a defesa mediada por fagocitose contra agentes infecciosos intracelulares e, neste caso, destacam-se a interlecuina-2 (IL-2), o interferon-g (INFg) e o fator de necrose tumoral-a (TNFa); enquanto que os linfócitos Th2 (T helper 2) secretam IL-4, IL-5, IL-10 e IL-13, relacionadas com a produção de anticorpos IgE (imunoglobulina E), bem como reações imunes mediadas por eosinófilos e mastócitos contra alérgenos e helmintos.

Em outro estudo, publicado em 2020 (Christine Blume et al.  Effects of the COVID-19 lockdown on human sleep and rest-activity rhythms. Current Biology 30, R783-R801, 2020), existe uma relação de descompasso entre o “jetlag social” e a restrição social do sono, que podem acarretar consequências negativas à saúde. Agora, olhem que interessante: o exercício físico, ao ar livre (exposição solar), parece ser uma estratégia para mitigar os efeitos adversos da privação de sono durante a pandemia (isso até merece um post extra no futuro). E, agora, vamos as considerações finais? Beleza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível (e está claro para mim) que os distúrbios do sono prejudicam a saúde e a qualidade de vida das pessoas, embora não podemos afirmar (mas, sim, especular) que facilite a infecção pelo SARS-CoV-2. Também é possível (e está claro para mim, novamente) que o exercício físico, de forma regular, é uma estratégia não farmacológica, de baixo custo e eficaz, para melhorar a saúde (física e mental), incluindo melhorias na qualidade do sono. O “jetlag social” é uma situação corriqueira entre as pessoas e, especialmente, na pandemia de COVID-19. Quanto maior for o “jetlag social”, maiores seriam os prejuízos de saúde, portanto, reveja seus horários de acordar e dormir (farei o mesmo). Os prejuízos, por sua vez, têm relação com a dessincronização do núcleo supraquiasmático (SCN) e a produção de melatonina na privação do sono. Está claro, portanto, que você deve “dormir melhor”, “treinar com regularidade”, “reduzir as situações estressantes” e, claro, se “alimentar saudavelmente”. Porém, o envelhecimento não poderia alterar esse "relógio biológico", favorecendo a doença neurodegenerativa? Se sim, como “não envelhecer” já que o envelhecimento é um processo natural e irreversível? Pois é, a cronobiologia e os cronobiologistas ainda precisam nos ajudar com algumas respostas e, portanto, valorizem a ciência, os cientistas, os pesquisadores, os docentes e os estudantes de graduação e pós-graduação.

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