sábado, 18 de junho de 2022

VITAMINA C AUMENTA A MORTALIDADE EM PACIENTES COM SEPSE?

 

VITAMINA C AUMENTA A MORTALIDADE EM PACIENTES COM SEPSE?

(Bônus: tudo o que você queria saber sobre a vitamina C, mas ninguém te falou, agora está aqui)

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 



Olá pessoal, tudo bem? Um recente estudo, publicado na The New England Journal of Medicine (2022), causou supressa aos leitores quando mostrou que o uso de vitamina C aumentou a mortalidade em pacientes adultos, com sepse, internados em unidades de terapia intensiva (UTI), quando comparado ao uso de placebo. Isso mesmo, o uso de vitamina C, um antioxidante bastante famoso, aumentou a mortalidade em pacientes com sepse. Os próprios autores relataram: “Este foi um achado inesperado”. Quer dizer, inesperado porque a plausibilidade para o uso de vitamina C na sepse fazia bastante sentido e já existiam estudos anteriores sugerindo benefícios deste antioxidante. Então, que tal conhecer este estudo e aprofundar seus conhecimentos sobre a vitamina C? “Borá lá”!

 

CONHECENDO A VITAMINA C

No século XVI, o escorbuto se popularizou como sendo uma doença dos marinheiros, caracterizada por fadiga, perda de apetite, palidez, deformidade dentária, dificuldade para a cicatrização de feridas e presença de hemorragias. O problema, principalmente entre os marinheiros que viviam por vários meses em alto mar, era revertido com a ingestão de suco de limão com repolho e suco de limão com laranja. Posteriormente, associou-se à doença (escorbuto) com a deficiência severa de vitamina C (ácido ascórbico) no organismo, já que a falta de vitamina C causa enfraquecimento das estruturas colágenas (com má cicatrização da ferida) e imunidade prejudicada (com susceptibilidade para infecções potencialmente fatais, como a pneumonia). Mas porque limão, laranja e repolho? Bem, um (01) limão pequeno (165 g) contém 87,45 mg de vitamina C, segundo Manuela Pacheco (Tabela de Equivalentes, Medidas Caseiras e Composição Química dos Alimentos. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Rubio, 2011). De acordo com Manuela Pacheco (2011), uma (01) laranja pequena (140 g) contém 74,48 mg de vitamina C. Todavia, usando a mesma tabela de composição química de alimentos, o repolho teria apenas traços de vitamina C, o que diverge de outras tabelas para auxilio nutricional de alimentos. Por exemplo, consultando a tabela da Ana Beatriz Vieira Pinheiro et al. (Tabela para Avaliação de Consumo Alimentar em Medidas Caseiras. 5.ed. São Paulo: Atheneu, 2008), o repolho (cru), em 100 g, contém 43 mg de vitamina C (onde uma folha média de repolho contém 12,90 mg de vitamina C). Quer dizer, duas coisas podemos concluir: primeiro, limão, laranja e repolho fornecem vitamina C aos marinheiros; e segundo, estes marinheiros não estavam se alimentando muito bem (desnutridos). Aí, você pensa: a laranja não seria na maior fonte de vitamina C e, portanto, só ela bastaria neste suco? Calma, deixa-me lhe apresentar as devidas comparações (em um padrão de 100 g de alimento) destacando algumas boas fontes de vitamina C e aposto que ficará surpreso(a). A informação abaixo segue usando a tabela de Manuela Pacheco:

 

Quantidade de vitamina C, em 100 g de alimento:

1677 mg = Acerola

219 mg = Caju

184 mg = Goiaba

98 mg = Kiwi

78,5 mg = Mamão formosa

61,8 mg = Mamão papaya

56,7 mg = Morango

53,2 mg = Laranja

53 mg = Limão

                  

Como você pode observar, a acerola é uma importante fonte de vitamina C (1677 mg), embora nem sempre consumida pela população. Ao mesmo tempo, o caju (219 mg) e a goiaba (184 mg) são outras boas fontes, seguido de kiwi (98 mg), mamão (78,5 mg no formosa; 61,8 mg no papaya) e morango (56,7 mg). Laranja (53,2 mg) e limão (53 mg) são as frutas mais famosas por conter vitamina C (não é mesmo?), embora sua quantidade (em 100 g) seja bem inferior a acerola, por exemplo. Segundo Anitra C. Carr e Silvia Maggini (Vitamin C and Immune Function. Nutrients 9: 1211, 2017; doi: 10.3390/nu9111211), somente 10 mg/dia de vitamina C são necessários para prevenir o escorbuto (portanto, os marinheiros do século XVI estavam se alimentando bem mal).

Retomando a vitamina C, o químico e bioquímico Linus Carl Pauling (ou, simplesmente, Linus Pauling) (1901-1994), vencedor de dois prêmios Nobel (química e paz), descobriu a importância da vitamina C para a saúde, mas não foi ele quem descobriu a estrutura química desta vitamina. A vitamina C foi descoberta pelo cientista bioquímico norte-americano Charles Glen king (1896-1988), em 1932. Pauling, contudo, trouxe inúmeras contribuições para a ciência que vão além da vitamina C: estudo do núcleo atômico, mecânica quântica, biologia molecular, estudos das reações catalisadas por enzimas, entre outras. Todavia, Pauling, por volta de 1975, foi acusado de charlatanismo em seus discursos de que a vitamina C poderia prevenir gripes e resfriados (muita gente acredita até hoje, não é?) e, até mesmo, curar doenças como o câncer. Dizem (pois a história se perde no tempo e, portanto, “dizem”), que Pauling administrava para si mesmo altas doses de vitamina C (5, 6, 10 e, até mesmo, 18 g de vitamina C) para prevenir gripes e resfriados, bem como curar o câncer (“dizem” que Pauling faleceu devido complicações do câncer de estômago; outros “dizem” câncer de próstata; e outros ainda “dizem” câncer de fígado). De qualquer forma, meu objetivo não é descrever a vida e morte de Pauling (faça sua pesquisa), mas, sim, falar um pouquinho da vitamina C antes de abordar o estudo previamente referido.

A vitamina C (ácido ascórbico) é absorvida no intestino delgado (transporte ativo dependente de sódio), cujo excesso é excretado na urina. Trata-se de um antioxidante hidrossolúvel, capaz de interagir diretamente com o radical livre superóxido (O2·) e oxigênio singlet (1O2), bem como regenera a vitamina E (tocoferol). Peraí, vamos por partes:

O que são antioxidantes?

Antioxidante é qualquer substância que, quando presente em baixa concentração quando comparada ao substrato oxidável, regenera o substrato ou previne significativamente a oxidação do mesmo. Existem antioxidantes endógenos (enzimas antioxidantes) e exógenos (obtidos através da dieta e suplementação). Todavia, gosto mais da classificação de antioxidantes enzimáticos e não-enzimáticos, por exemplo:

Antioxidantes enzimáticos: superóxico dismutase (SOD), glutationa peroxidadase (GPX), catalase (CAT) e tioredoxina redutase (TRR) [Quer dizer, aqui você observa facilmente as enzimas, portanto, antioxidantes endógenos].

Antioxidantes não-enzimáticos: lipossolúveis (vitamina E, vitamina A e beta-caroteno) e hidrofílicos (vitamina C, gutationa reduzida ou GSH, ácido úrico plasmático, tioredoxina, bilirrubinas e polifenóis) [Quer dizer, essa classificação não se limita aos antioxidantes obtidos pela dieta e, portanto, é mais completa].

Claro, existem outros antioxidantes: proteínas de choque térmico (HSPs), proteínas com grupamento sulfidrila (N-Acetil-L-cisteína, NAC), ceruloplasmina (ferroxidase ou ferro(II):oxigênio oxidorredutase), coenzima Q (ubiquinona), melatonina, hormônios sexuais (acredita-se que o estrogênio tenha papel antioxidante, além de anti-apoptótico), bioflavonóides e alguns minerais (selênio, zinco e magnésio).

O que são radicais livres?

Radical livre (RL) é uma espécie química, de existência independente, que contenha um ou mais elétrons desemparelhados (solitários), ocupando o orbital mais periférico, capaz de atacar qualquer biomolécula para assegurar sua estabilidade. Quer dizer, os radicais livres (RLs) são altamente instáveis e reativos e, dessa forma, na busca pela estabilidade vão verdadeiramente “roubar” elétrons de outras biomoléculas (causando danos em lipídeos de membrana, dano em enzimas e proteínas e, até mesmo, dano ao DNA nuclear). Os danos em lipídeos da bicamada lipídica são estudados como lipoperoxidação ou peroxidação lipídica, produzindo fragmentos de aldeídos que podem ser medidos e estudados. O dano em proteína pode ser problemático, pois leva a desnaturação proteica e, consequentemente, perda da função proteica no organismo. Todavia, o dano ao DNA (ácido desoxirribonucleico), como ataque da guanina para formação de 8-hidroxideoxiguanosina (8-OHdG) pode resultar em mutações gênica, incluindo o câncer.

Neste sentido, o ânion superóxido (O2·), produzido pelo escape eletrônico na cadeia respiratória mitocondrial, é um radical livre (RL), pois possui um elétron desemparelhado. O oxigênio singlet ou singlete (1O2) é uma forma mais reativa do oxigênio molecular (O2), mas não é um RL. Todavia, tanto o superóxido (O2·), quanto o oxigênio singlet (1O2), podem ser prejudiciais ao organismo. Dessa forma, devemos falar em Espécies Reativas de Oxigênio (ROS, Reactive Oxygen Species), que engloba os radicais livres.

São Espécies Reativas de Oxigênio (ROS), ou seja, espécies derivadas do O2 molecular: ânion superóxido (O2·), oxigênio singlet (1O2), peróxido de hidrogênio (H2O2) e radical hidroxil (OH·). Perceba que nem todos os ROS são RLs, mas todos os RLs são ROS. Explicando melhor: o ânion superóxido (O2·) e o radical hidroxil (OH·) são RLs e também são ROS; enquanto que o oxigênio singlet (1O2) e o peróxido de hidrogênio (H2O2) são ROS, mas não são RLs. Parece confuso? Não é, leia novamente! Pensando bem, pretendo elaborar um post falando especificamente dos antioxidantes, RLs, ROS, espécies reativas do nitrogênio (RNS), peróxidos lipídicos, 8-OHdG (8-hidroxideoxiguanosina), estresse oxidativo e estresse redutivo, aguardem! Contudo, para melhor entendimento deste post, lembre-se que estresse oxidativo é o desbalanço entre as defesas antioxidantes e os pró-oxidantes a favor dos pró-oxidantes (por isso, estresse de caráter oxidativo).

Com base nisso, podemos resumir, perguntando:

Quais são as funções da vitamina C?

A vitamina C (ácido ascórbico) é um antioxidante hidrossolúvel, capaz de interagir diretamente com o radical livre superóxido (O2·) e oxigênio singlet (1O2). Em outras palavras, a vitamina C pode prontamente doar elétrons, protegendo as biomoléculas (proteínas, lipídios, carboidratos e ácidos nucleicos) contra os danos oxidativos gerados pelo metabolismo celular ou referentes a exposição de toxinas e poluentes (por exemplo, fumaça de cigarro).

Os seres humanos não podem sintetizar a vitamina C e, portanto, necessitam desta vitamina através da dieta e/ou suplementação. Aliás, a ingestão diária pode prevenir a hipovitaminose por vitamina C. De acordo com Anitra C. Carr e Silvia Maggini (Vitamin C and Immune Function. Nutrients 9: 1211, 2017; doi: 10.3390/nu9111211), a hipovitaminose C (vitamina C plasmática < 23 μmol/L) é relativamente comum em populações ocidentais, enquanto que a deficiência de vitamina C (<11 μmol/L) é a quarta deficiência de nutrientes líder nos Estados Unidos.

Além disso, a vitamina C pode regenerar a vitamina E (tocoferol), que é um antioxidante lipossolúvel. Porém, não acabou, pois a vitamina C participa das reações de hidroxilação da prolina e lisina para a síntese de colágeno no tecido conjuntivo (o que explicaria alguns dos sintomas na doença dos marinheiros: escorbuto) e está envolvida na síntese de L-carnitina (necessária para a beta-oxidação de ácidos graxos na mitocôndria celular), epinefrina (EP), norepinefrina (NE) e serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT). Quer dizer, a vitamina C é cofator enzimático nas reações biossintéticas de L-carnitina e neurotransmissores.  

Outros papéis foram associados a vitamina C, por exemplo, regulação da transcrição gênica e vias de sinalização celular. Por exemplo, regulação do fator induzido por hipóxia-1-alpha (HIF-1a), que regula os processos transcricionais de resposta celular e desenvolvimento de hipóxia. A vitamina C também regula a metilação de histonas, desempenhando um papel na transcrição gênica e epigenética. Epigenética, resumidamente, seria a capacidade do corpo humano em ativar ou desativar alguns genes de acordo com o ambiente, hábitos e estilo de vida das pessoas, porém sem alterar a sequência de nucleotídeos do DNA. Em outras palavras, a epigenética modifica o fenótipo (características físicas, morfológicas e comportamentais) sem alterar o genótipo (relativo aos genes). É um ramo fantástico de estudo, pois estuda o impacto da dieta, tabagismo, alcoolismo, exposição a agrotóxicos, poluentes e drogas em seres humanos, onde fica a pergunta: esses fatores podem causar modificações epigenéticas que poderiam ser herdadas através das gerações? Claro, se você já ouviu falar em genética e epigenética, certamente deve ter escutado o termo nutrigenética. Nutrigenética, por sua vez, é o ramo da nutrição, aliado a genética, que busca desvendar o impacto da alimentação em nossos genes. Ou, em outra forma de pensar, como o DNA da cada pessoa responde aos alimentos e nutrientes (além de muita “porcaria” ingerida) obtidos através da alimentação. As respostas, obviamente, podem impactar totalmente na conduta alimentar, permitindo condutas mais assertivas, inclusive na relação saúde e doença. Óbvio, também, que condutas mais assertivas permitiriam maior adesão dos pacientes ao plano alimentar, mas aí o assunto vai longe e precisaríamos de outro post (quem sabe, no futuro, vou pensar).

 A vitamina C também é importante para absorção, depósito e transporte de ferro não-heme, bem como tem ação na conversão de colesterol em sais (ácidos) biliares. Atualmente, especialmente em virtude da pandemia de Covid-19, discute-se muito o papel da vitamina C no sistema imunológico. Isso faz bastante sentido, afinal a vitamina C é necessária para função fagocitária (neutrófilos e macrófagos), melhorando a imunidade celular; e participa da integridade da barreira epiteliais (melhora a síntese e estabilização de colágeno, aumenta a diferenciação de queratinócitos e melhora a proliferação e migração de fibroblastos) e da função de leucócitos (melhora diferenciação e proliferação de linfócitos T e B, bem como melhora os níveis de anticorpos).   Para maiores informações, aconselha-se a leitura: Anitra C. Carr e Silvia Maggini. Vitamin C and Immune Function. Nutrients 9: 1211, 2017 (doi: 10.3390/nu9111211).

Enfim, a carência de vitamina C está associada ao estilo e hábitos de vida (estresse e tabagismo, por exemplo), mas seus baixos níveis também são observados nas infecções e doenças (sepse, por exemplo). Vou exemplificar: um (01) cigarro consegue neutralização cerca de 25 mg de vitamina C. Neste caso, considerando uma carteira de cigarros (ou seja, 20 cigarros), a neutralização seria de 500 mg de vitamina C. Outro exemplo: pacientes com diabetes tipo 2 (DM2) apresentam baixos níveis de vitamina C (Wilson R. et al. Inadequate Vitamin C Status in Prediabetes and Type 2 Diabetes Mellitus: Associations with Glycaemic Control, Obesity, and Smoking. Nutrientes 9:997, 2017; doi: 10.3390/nu9090997) e, como sabemos, DM2 é uma importante complicação de saúde em virtude da resistência periférica à insulina e maior risco para infecções (influenza e pneumonia) (Peleg A.Y. et al. Common infections in diabetes: pathogenesis, management and relationship to glycaemic control Diabetes Metab. Res. Rev. 23:3-13, 2007; doi: 10.1002/dmrr.682).

É muita informação, não é mesmo? Pois bem, vamos resumir:

1 – Antioxidante hidrossolúvel, capaz de interagir diretamente com o radical livre superóxido (O2•) e oxigênio singlet (1O2);

2 – Regeneração da vitamina E (tocoferol), protegendo, assim, as membras biológicas (inclusive preveni a oxidação da LDL, lipoproteína de baixa densidade);

3 – Participa das reações de hidroxilação da prolina e lisina para a síntese de colágeno no tecido conjuntivo;

4 – É cofator para síntese de L-carnitina, epinefrina (EP), norepinefrina (NE) e serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT);

5 – Regula a transcrição gênica e as vias de sinalização celular, por exemplo, regula o fator induzido por hipóxia-1-alpha (HIF-1a);

6 – Regula o DNA e a metilação de histonas, desempenhando um papel na transcrição gênica e epigenética;

7 – É importante para absorção, depósito e transporte de ferro não-heme, bem como tem ação na conversão de colesterol em sais (ácidos) biliares;

8 – Atua no sistema imunológico: função fagocitária (neutrófilos e macrófagos) e integridade da barreira epiteliais, bem como função de leucócitos (diferenciação e proliferação de linfócitos T e B).

Agora, sim, podemos discutir o estudo publicado na The New England Journal of Medicine (2022).

 

VITAMINA C EM ADULTOS COM SEPSE NA UTI

Um estudo randomizado, controlado por placebo (portanto, elevado grau de evidência científica), recentemente publicado por François Lamontagne et al. (2022), na The New England Journal of Medicine (Intravenous Vitamin C in Adults with Sepsis in the Intensive Care Unit, doi: 10.1056/NEJMoa2200644), em pacientes adultos com sepse nas unidades de terapia intensiva (UTI), mostrou que o uso vitamina C intravenosa (50 mg/kg peso/dia) aumentou o risco de morte ou disfunção orgânica persistente (definida pelo uso de vasopressores, ventilação mecânica invasiva ou nova terapia de substituição renal). Peraí, vamos por partes:

O que é sepse?

A sepse (ou septicemia) é uma disfunção orgânica com risco de vida para pacientes críticos em unidades de terapia intensiva (UTI) em virtude da resposta inflamatória desregulada com liberação de citocinas pró-inflamatórias afetando todo o organismo. Também se observa a presença de estresse oxidativo, ativação do fator nuclear kappa B (NFkB), hipóxia tecidual, trombose microvascular, hipotensão sistêmica, disfunção mitocondrial com depleção de adenosina trifosfato (ATP), hipotensão, cardiomiopatia e disfunção de múltiplos órgãos. A sepse é desencadeada pela invasão de agentes infecciosos (por exemplo, vírus e bactérias) na corrente sanguínea. Na sepse, existem sintomatologias típicas: alteração da temperatura corporal (maior que 38ºC ou menor que 35ºC), elevação da frequência cardíaca (maior que 90 batimentos por minuto, ou seja, > 90 bpm) e respiratória (maior que 20 incursões respiratórias por minuto) e alteração em leucócitos (leucocitose = aumento no número de leucócitos, maior que 12.000 células/mm3; ou leucopenia = redução no número de leucócitos, menor que 4.000 células/mm3). A sepse é responsável pela morte de 8 milhões de pessoas a cada ano no mundo. Obviamente é uma condução drástica que requer um tratamento imediato, pois a inflamação sistêmica pode conduzir ao óbito e, por isso, os pacientes são tratados em UTI.

 

Retomando o estudo, existia muita plausibilidade para o uso de vitamina C na sepse, devido presença de estresse oxidativo e ativação de NFkB, o que gerou alguns estudos anteriores (in vitro e com animais). Os objetivos deste estudo randomizado foram determinar se a vitamina C intravenosa, em comparação com o placebo, poderia reduzir a mortalidade e a morbidade na sepse induzida por patógenos bacterianos e virais. Em seguida, comparar as medidas clínicas e bioquímicas de disfunção de órgãos e qualidade de vida relacionada à saúde aos 6 meses. Portanto, o desfecho primário era morbimortalidade (pacientes falecidos ou com disfunção persistente de órgãos) em pacientes adultos com sepse quando eram administrados vitamina C ou placebo.

Para tanto, o estudo contou com 872 pacientes adultos, registramos em 35 UTIs médico-cirúrgicas no Canadá, França e Nova Zelândia, que foram randomizados aleatoriamente em dois grupos:

Grupo VC (vitamina C): 435 pacientes para o grupo de vitamina C (50 mg de vitamina C por quilograma de peso corporal por dia – 50 mg/kg/dia – em 50 ml de uma solução com 5% de dextrose em água, durante 30 min a 60 min, e a cada 6h, por 96 horas);

Grupo CRTL (controle): 437 pacientes para o grupo controle (placebo = 0,9% NaCl, solução salina, soro fisiológico, no mesmo tempo de administração).

 

Quer dizer, vitamina C ou placebo foram administrados por 96 horas (4 dias) e, agora, vejamos os critérios de inclusão e exclusão para participar do estudo:

Critérios de inclusão: pacientes admitidos na unidade de terapia intensiva (UTI), internados em menos de 24 horas, com infecção comprovada ou suspeita como diagnóstico principal; e pacientes tratados atualmente com uma infusão contínua de vasopressores (norepinefrina, epinefrina, vasopressina, dopamina e fenilefrina).

Critérios de exclusão: pacientes internados em UTI acima de 24 horas; pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PDH, doença hereditária que afeta os eritrócitos, causando anemia hemolítica); gravidez; alergia conhecida à vitamina C; litíase renal (pedras nos rins) conhecida no último 1 ano; que recebeu qualquer vitamina C intravenosa durante esta internação, a menos que incorporada à nutrição parenteral; morte esperada ou retirada de tratamentos que sustentam a vida dentro de 48 horas.

Com base nisso, quais foram os achados?

O desfecho primário ocorreu em 191 de 429 pacientes (portanto, 44,5%) no grupo de vitamina C (grupo VC); e em 167 dos 434 pacientes (portanto, 38,5%) no grupo controle (grupo CRTL). Aos 28 dias, o óbito ocorreu em 152 dos 429 pacientes (35,4%) no grupo VC; e em 137 dos 434 pacientes (31,6%) no grupo CTRL. A disfunção persistente de órgãos ocorreu em 39 dos 429 pacientes do grupo VC (9,1%); e em 30 de 434 pacientes do grupo CRTL (6,9%).

Os autores concluíram que, em adultos com sepse, internados na UTI e recebendo terapia vasopressora, a administração de vitamina C intravenosa resultou em maior risco de morte ou disfunção persistente de órgãos aos 28 dias do que o recebimento de placebo. Segundo os autores, este foi um achado inesperado, pois existia plausibilidade para o uso de vitamina C na sepse e estudos anteriores também haviam levantado essa hipótese. Quer dizer, estudos in vitro mostravam benéficos da vitamina C potencializando, por exemplo, a ação da epinefrina (EP) via receptores beta-adrenérgicos, bem como redução da inflamação medida pela redução do fator de necrose tumoral (TNFa) e da molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1). Ao mesmo tempo, em ratos feridos termicamente, a vitamina C reduziu o edema. Todavia, em animais (ratos sépticos), a vitamina C não mostrou benefícios em parâmetros fisiológicos e seu excesso foi excretado na urina. O fato é: até o momento não existiam grandes ensaios clínicos randomizados, com seres humanos, sobre os efeitos da vitamina C na sepse e choque séptico. Porém, agora temos e os resultados não foram animados para os adoradores da vitamina C.

 

 VITAMINA C AUMENTA A MORTALIDADE?

O estudo publicado na The New England Journal of Medicine (2022), que é um “baita” estudo, afinal é randomizado e controlado por placebo, com um número expressivo de pacientes, registrados em 35 UTIs do Canadá, França e Nova Zelândia, não faz qualquer menção sobre o mecanismo de ação (ou farmacodinâmica) que poderia explicar o maior risco de morte e disfunção persistente de órgãos em pacientes adultos com sepse. De qualquer forma, a ciência não está nem aí para nossa “opinião”, caso não tenha gostado dos resultados e seja um “fã” da vitamina C. Em outras palavras, a hipótese foi devidamente testada e os resultados foram devidamente publicados. Neste sentido, o uso de vitamina C em adultos com sepse não é recomendado e, pior, pode aumentar a mortalidade nestes pacientes.

Para nós resta apenas especular sobre os achados, que farei neste momento (sem qualquer pretensão de invalidar o excelente estudo). Em outras palavras, “perguntar não ofende”.

Primeiro, poderá observar que a idade média dos pacientes era elevada nos dois grupos randomizados (65 anos), portanto, idosos. Ser idoso (e já fragilizado pela sepse) pode ter contribuído para um desfecho primário ruim (ou inesperado)? A vitamina C pode ter seu papel antioxidante não completamente atuante em um indivíduo de idade avançada?

Segundo, 37 pacientes (8,6%) dos 429 do grupo vitamina C tinham PCR-RT positivo para SARS-CoV-2 (Covid-19). Aliás, 33,8% (145 dos 429 do grupo vitamina C) tinham complicações pulmonares importantes. Então, a Covid-19 (que ainda temos muito para aprender) ou complicações pulmonares pode ter interferido nos resultados do desfecho primário?

Terceiro, a recomendação de vitamina C para adultos, segundo a Ingestão Dietética de Referência (DRIs, Dietary Reference Intakes), é 60 mg/dia para mulheres e de 75 mg/dia para homens. Essa recomendação de vitamina C também se aplica em idosos. Já a ingestão máxima tolerada (UL, tolerable upper intake level) é de 2000 mg/dia (2 g/dia). Pois bem, o estudo trabalhou com 50 mg/kg peso/dia que, exemplificando, teríamos: 3250 mg/dia de vitamina C para uma mulher de 65 kg (50 mg x 65 kg = 3250 mg) e 3750 mg/dia para um homem de 75 kg (50 mg x 75 kg = 3750 mg/dia). Portanto, essa é uma dose bem tolerada para pacientes idosos, já debilitados pela sepse, internados em UTI? OK, as doses elevadas já foram usadas em outros estudos e, segundo autores, as doses maiores foram associadas a redução dos escores da Avaliação Sequencial de Falência de Órgãos (SOFA, Sequential Organ Failure Assessment) em um período de 4 dias, justificando a dosagem.

Quarto, os seres humanos são incapazes se sintetizar vitamina C, enquanto que pacientes criticamente enfermos tem seus níveis marcadamente diminuídos. Cabe lembrar que a ingestão diária de vitamina C acima da 2 g/dia (UL) pode causar náuseas e diarreia, além de interferir no equilíbrio fisiológico entre antioxidantes e pró-oxidantes. Sendo assim, porque não 500 mg/dia ou 1g/dia? Por que não respeitar 2 g/dia (UL)? Na forma oral (o estudo usou vitamina C intravenosa), a absorção de vitamina C declina rapidamente com a ingestão acima de 500 mg/dia e, seu excesso, pode ser acilmente excretado na urina. 

Quinto, existem estudos associando a deficiência ou insuficiência de vitamina D em pacientes com sepse. De fato, a vitamina D regula processos imunológicos e inflamação, além de exercer papel na proteção celular endotelial. Existem, aliás, inúmeros estudos sobre as ações não calcêmicas (ou seja, que não se limitam ao cálcio e massa óssea) da vitamina D. Dessa forma, o estudo em questão não avaliou os níveis de vitamina D nos pacientes e, portanto, uma correção da vitamina C pode não ter compensando um desequilíbrio não percebido da vitamina D na sepse?

Sexto, qual agente infeccioso estaria relacionado a sepse nestes pacientes? Quer dizer, não foram coletados dados relativos aos diferentes patógenos (bactérias e vírus) em indivíduos adultos, mas será que isso poderia interferir na ação da vitamina C? Em outras palavras, o que mudaria na presença de Estafilococos, Streptococcus, Escherichia coli, Shigella, Espiroquetas e Neisseria? E se fossem vírus, o que mudaria? Afinal, "existem mais vírus no planeta do que estrelas no universo", segundo uma matéria interessante na National Geographic:

Nota:Existem mais vírus do que estrelas no universo. Por que apenas alguns nos infectam?”, matéria veiculada na National Geographic (https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/virus-doencas-saude-patogenos-covids-19-sars-pandemia-coronavirus-hospedeiro).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vitamina C (ácido ascórbico), um antioxidante hidrossolúvel, não deixou (e não deixará) de ser a “queridinha” das pessoas. Para a população, em geral, um excesso de vitamina C pode contribuir para distúrbios gastrintestinais, além de favorecer a formação de oxalato de cálcio (pedras). No passado, um estudo publicado por Sven-Olaf Kuhn et al., em 2018 (Vitamin C in Sepsis. Curr Opin Anesthesiol 31(1): 55-60, 2018, doi: 10.1097/ACO.0000000000000549) dizia que as evidências in vitro sustentam um papel crítico da vitamina C em mecanismos celulares relevantes na fisiopatologia da sepse. Os autores também diziam que o uso terapêutico de vitamina C em pacientes sépticos permanece incerto. Agora, contudo, com a publicação da The New England Journal of Medicine, em 2022 (François Lamontagne et al. Intravenous Vitamin C in Adults with Sepsis in the Intensive Care Unit, doi: 10.1056/NEJMoa2200644), essa incerteza foi embora, percebeu?

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quinta-feira, 9 de junho de 2022

O QUE VOCÊ PENSA SOBRE A HOMEOPATIA?

 

O QUE VOCÊ PENSA SOBRE A HOMEOPATIA?

JOELSO PERALTA,

Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 


Olá pessoal, tudo bem? Tá, segue mais um post pequeno, rápido, reflexivo...

 

Homeopatia foi criada pelo médico alemão Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843) em 1796, cujo princípio é o tratamento da doença reestabelecendo o equilíbrio do organismo com a administração de substâncias diluídas e dinamizadas que liberariam a energia vital. Energia vital, confuso? Traduzindo, energia vital é uma espécie de energia gerada pelo pensamento e emoções, baseado no princípio de “similia similibus curantur” (do latim, "semelhante pelo semelhante se cura"). E, por isso, as substâncias homeopáticas são diluídas, diluídas, diluídas e dinamizadas, dinamizadas, dinamizadas, para curar os pacientes. Confuso? Pois é, vamos refletir.

A homeopatia não é novidade no Brasil e tem suas origens na medicina alternativa, sendo adorada, apreciada, valorizada por alguns; e extremamente criticada, odiada, ridicularizada por outros. A Dra. Natália Pasternak (currículo ao final do post) causou certa polêmica ao afirmar que “HOMEOPATIA É FEITA DE NADA”, ou seja, não passa de placebo (substância inerte) e que não funciona. Na realidade, ela só reafirmou o que seus colegas Dr. Marcelo Yamashita e o jornalista Carlos Orsi (currículos ao final do post) falaram em uma matéria na Revista Questão de Ciência (http://revistaquestaodeciencia.com.br).

Os posicionamentos acima geraram muita discórdia nas redes sociais, afinal a homeopatia está enraizada na cultura da população brasileira. A pessoa mais indicada para falar do assunto, contudo, é o Dr. Edzard Ernst (currículo ao final do post). Dr. Edzard afirma: “AS PÍLULAS E SOLUÇÕES HOMEOPÁTICAS, NA PRÁTICA, NÃO FUNCIONAM”. Segundo Ernst, “O EXCESSO DE DILUIÇÃO, NO FINAL DAS CONTAS, NÃO CONTÉM REMÉDIO ALGUM”.

Caracas, parece que os defensores da homeopatia estão mais raivosos após polêmica (que, na realidade, sempre existiu). Alguns “doutores” (na realidade, a grande maioria sem mestrado ou doutorado) saíram em defesa da homeopatia afirmando que “em minha prática, em minha experiência clínica, onde já tratei milhares de pessoas, a homeopatia funciona”. Não vamos brigar aqui, mas é justamente para evitar esse tipo de viés que existem pesquisas e publicações científicas. Quer dizer, você não pode (especialmente sendo um profissional de saúde), sair em defesa de algo dizendo “minha prática, minha experiência”, pois a ciência não está nem aí para sua opinião pessoal.

Quando questionados, todavia, muitos “doutores” (sem doutorado) afirmam que “nenhum estudo científico conseguirá demonstrar os efeitos da homeopatia, pois a substância dinamizada só funciona em pessoas de mente aberta e livre de preconceito”. Caracas, esse é o pior argumento que alguém poderia usar para defender uma conduta baseada na medicina alternativa. Quer dizer, o “negócio” não funcionou porque minha mente é fechada? Puxa vida, trata-se de um argumento “tosco”, pois os cientistas são “super cabeça aberta” para levantar hipóteses que precisam ser testadas experimentalmente.

Enfim, o Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (NHMRC, National Health and Medical Research Council), da Austrália, também revisou as evidências científicas para a eficácia da homeopatia no tratamento de uma variedade de condições clínicas. Em um dos trechos, podemos observar: “Não há evidência confiável de que a homeopatia seja efetiva para tratar condições de saúde”. Em outro trecho: “A homeopatia não deve ser usada para tratar condições de saúde crônicas, graves ou que possam ficar sério”. E, por fim, em outro trecho temos: “As pessoas que escolhem a homeopatia podem colocar sua saúde em risco se rejeitarem ou retardar tratamentos para os quais há boas evidências de segurança e eficácia”.

Para finalizar, os céticos são sempre odiados, pois questionam e exigem testes de hipóteses experimentalmente. Com base nos resultados, podem aceitar ou rejeitar a hipótese, sem preconceitos. Para tanto, os dados devem ser publicados, devidamente revisados por pares. Os cientistas e pesquisadores são céticos (que é diferente de negacionista, não faça confusão). Os céticos não aceitam opiniões, relatos de experiência de vida, estudos de casos e, verdadeiramente, são odiados (estou na lista dos odiados, rs).  

 

Currículo dos profissionais mencionados no post:

Natália Pasternak é bióloga, graduada pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Possui PhD e pós-doutorado em Microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP, divulgadora científica e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

Marcelo Yamashita é doutor em Física pela Universidade de São Paulo com pós-doutorado no ITA, Professor e Diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e Membro do Conselho Editorial da Fundação Editora UNESP e do Scientific Council do ICTP South American Institute for Fundamental Research.

Carlos Orsi é jornalista formado pela ECA-USP, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e fundador do Instituto Questão de Ciência. Além de divulgador científico, Orsi é escritor e possui vários livros publicados.

Edzard Ernst é médico e pesquisador especializado em medicina alternativa com mestrado e doutorado pela Universidade Ludwig Maximilians, em Munique. Além disso, foi Professor de Medicina Física e Reabilitação (PMR) na Hannover Medical School (Alemanha) e Chefe do Departamento de PMR da Universidade de Viena (Áustria). O professor Dr. Ernst fundou três revistas médicas, colunista de muitas publicações (BMJ, GP, MMW, PJ, The Guardian, The Independent, The Spectator, Publikum, Skeptic Magazine, etc.), publicou mais de 1000 artigos na literatura médica revisada por pares, mais de 50 livros, enfim, um currículo gigantesco, sendo considerado o maior especialista mundial no assunto medicina alternativa.


PRÓTESE DE SILICONE CAUSA QUEDA DE CABELO?

 

PRÓTESE DE SILICONE CAUSA QUEDA DE CABELO?

JOELSO PERALTA,

Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 


Olá pessoal, tudo bem? Mantendo a linha dos pequenos textos, para leitura rápida, de assuntos aleatórios, mais reflexivos do que educativos, segue esse post. Aqui, a situação é semelhante ao post anterior, onde me perguntaram se eu tinha visto uma live, de um determinado profissional de saúde, dizendo que as próteses de silicone, que as mulheres usam nas mamas, seriam responsáveis pela queda de cabelos nestas mulheres. Em um primeiro momento, dei algumas risadas, mas depois resolvi falar seriamente. A conversa, nessa live, era mais ou menos assim:

 

- Doutor, qual referência se baseia para dizer que silicone causa queda de cabelo em mulheres e para resolver, só retirando o silicone?

- Que referência? Vai estudar, vai procurar. Tenho nojo desse povo que pede referência, que pede artigo científico, tenho nojo. Não inventei nada. Não tô delirando. Algum dia já passei informação errada para vocês?

 

Pois bem, novamente o objetivo não é criticar a pessoa, mas, sim, elucidar a temática. Por outro lado, não entendo porque um profissional de saúde ficaria tão ofendido, ao ponto de ter um chilique, só porque um de seus seguidores resolve pedir uma referência, um artigo científico. Será que se trata de uma evidência e, portanto, qual problema em compartilhar o estudo? Ou, ao contrário, trata-se apenas de opinião pessoal, achismo, pseudociência e, portanto, não tem como comprovar sua oratória?

De qualquer forma, uma revisão publicada por Jordan Kaplan e Rod Rohrich, em 2021, na Gland Surg (doi: 10.21037/gs-20-231) discutiu as evidências científicas atuais relacionadas a segurança dos implantes de silicone nos seios e concluiu não existir evidências para a "Síndrome do Implante Mamário" ou "Síndrome do Silicone". A síndrome, que não é um consenso médico, diz que as mulheres podem apresentar sinais e sintomas (fadiga, ansiedade, distúrbio do sono, queda de cabelo, entre outros) associados ao uso de próteses mamárias. Além disso, segundo estudo, a incidência de câncer de mama em pacientes com silicone tem sido exaustivamente estudado e não existe associação (embora possam interferir na visualização mamográfica da mama para o diagnóstico de câncer, segundo outros autores). Por fim, o estudo diz que a "doença do implante mamário" se popularizou nas redes sociais, que é acompanhado de muito discurso anedótico e especulação de cunho pseudocientífico (que não deveria partir dos profissionais de saúde).

Então, a atitude correta de um profissional de saúde seria avaliar as causas da queda de cabelo em mulheres: genética ou alopecia androgenética de padrão feminino, distúrbios hormonais, doenças infecciosas, anemia, uso medicamentoso, estresse, doença autoimune, má alimentação e transtornos alimentares e, até mesmo, tipo de xampu, condicionador, spray ou gel que usa. Dessa forma, seria muito superficial e simplista associar, sem qualquer evidência, mas apenas achismo, o silicone e queda de cabelo. Aliás, como resolver a queda de cabelo nas mulheres que não possuem silicone (rs)?

É bom finalizar, portanto, da mesma maneira que o último post: é necessário pensar “mil vezes” antes de repassar “opiniões” sobre determinados assuntos de saúde a população leiga.

Referências:

Jordan Kaplan e Rod Rohrich. Breast implant illness: a topic in review. Gland Surg 10(1):430-443, 2021 (doi: 10.21037/gs-20-231).

LEITE CAUSA DEPRESSÃO E CÂNCER?

 

LEITE CAUSA DEPRESSÃO E CÂNCER?

JOELSO PERALTA,

Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 


Olá pessoal, tudo bem? Como prometido, vou postar uma sequência de pequenos textos, para leitura rápida, de assuntos aleatórios. Alguns textos são mais reflexivos do que educativos, na realidade. Por exemplo, esses dias me perguntaram a opinião sobre uma live, realizada por um determinado médico, que dizia que leite causa câncer. Meu objetivo não é criticar a pessoa, mas, sim, a informação que foi repassada para inúmeras pessoas, sendo a grande maioria leiga em metodologia científica. A conversa era mais ou menos assim:

 

- Doutor, o que acha do leite?

- Leite é um veneno. É inflamatório. Causa depressão. Causa câncer. É o pior alimento da terra.

- Doutor, e o queijo?

- Queijo não causará tantos danos.

- Doutor, e Whey Protein?

- Whey vale a pena.

 

Para mim, não precisamos sair em defesa do leite e da agropecuária, mas também não precisamos assassinar a ciência básica para defender um ponto de vista. Deixa-me exemplificar: uma revisão a partir de meta-análises de estudos observacionais e ensaios clínicos randomizados de 2016 (doi: 10.3402/fnr.v60.32527) encontrou evidências que a ingestão de leite e produtos lácteos esteve associada à redução do risco de obesidade infantil. Em adultos, a revisão mostrou melhorias na composição corporal durante a restrição energética. A revisão ainda mostrou risco neutro ou reduzido de diabetes tipo 2 (DM2) e um risco reduzido de doenças cardiovasculares, particularmente acidente vascular cerebral (AVC).

Além disso, outra revisão sistemática de 2020 (doi: 10.1080/19490976.2020.1799533) utilizando dados do Medline, CINAHL, Embase, Scopus e PubMed, como risco de viés avaliado por ferramenta da Cochrane, revisando 6.592, mostraram que leite, iogurte e kefir podem modular a composição da microbiota humana. Quer dizer, leite, iogurte e kefir aumentam a abundância dos gêneros Lactobacillus e Bifidobacterium (bactérias benéficas ao hospedeiro e normalmente presentes na microbiota intestinal). Iogurte reduziu Bacteroides fragilis (associada a doença inflamatória intestinal e câncer de cólon). Caseína e soro do leite (Whey) não provocaram mudança alguma na taxa bacteriana intestinal. O estudo incluiu diversos países (Suíça, França, Dinamarca, Turquia, Japão, EUA e Canadá) e concluiu que produtos lácteos (leite, iogurte e kefir) podem modular a composição da microbiota intestinal em favor do hospedeiro.

Dessa forma, é necessário pensar “mil vezes” antes de repassar “opiniões” sobre determinados assuntos de saúde a população leiga. Aliás, associar um único componente alimentar (leite) ao câncer já mostra o abismo de desconhecimento sobre a doença. As “opiniões”, especialmente baseadas em achismo e experiência pessoal, tem baixíssimo ou nula importância para a ciência.

Referências:

Tanja Kongerslev Thorning et al. Milk and dairy products: good or bad for human health? An assessment of the totality of scientific evidence. Review Food Nutr Res 22(60):32527, 2016 (doi: 10.3402/fnr.v60.32527).

Hajara Aslam et al. The effects of dairy and dairy derivatives on the gut microbiota: a systematic literature review, Gut Microbes 12:1, 2020 (doi: 10.1080/19490976.2020.1799533).

quinta-feira, 2 de junho de 2022

EFEITO DUNNING-KRUGER

 

EFEITO DUNNING-KRUGER

JOELSO PERALTA,

Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 

Olá pessoal, tudo bem? Imagino que muitos de vocês ficam cansados ao se deparar com meus enormes textos, eu sei (rs). Dessa forma, farei uma sequência de pequenos textos, rápidos, com assuntos aleatórios, os quais podem encontrar em minhas redes sociais (@peraltanutri).

Você já ouviu falar em Efeito Dunning-Kruger?

Em 1999, os psicólogos David Alan Dunning e Justin Kruger, da Universidade de Cornell, demonstraram que pessoas com baixo conhecimento sobre um assunto tendem a superestimar/supervalorizar seu próprio conhecimento, enquanto que os experts no tema subestimam sua própria capacidade. Esse fenômeno cognitivo, publicado na Journal of Personality and Social Psychology 77(6): 1121-1134, 1999, foi batizado de Efeito Dunning-Kruger, em homenagem aos pesquisadores.

Os psicólogos decidiram conduzir o estudo após observar o famoso e engraçado roubo de um banco, realizado por Sr. McArthur Wheeler. Em 1995, em Pittsburgh, o Sr. Wheeler, 44 anos, roubou um banco, em plena luz do dia, sem qualquer disfarce ou máscaras, acreditando estar invisível. Sério? Sim! Obviamente ele foi preso naquela mesma noite após os policiais observarem as câmeras de vigilância do banco. Wheeler, incrédulo, disse: "Mas eu usei o suco de limão". Este "gênio" acreditava que esfregar suco de limão no rosto o tornaria invisível às câmeras de vídeo (suspeita-se ter escutado outro "gênio", o que hoje chamaríamos de "influencers"). Ele ainda testou seu "truque" tirando uma foto com uma câmera Polaroid, onde obteve uma imagem em branco (a foto falhou, devido problema na câmera), confirmando sua invisibilidade (ou seria imbecilidade?).

Os psicólogos Dunning e Kruger queriam estudar o excesso de confiança do Sr. Wheeler, ou seja, por que ele tinha tanta certeza que teria sucesso com a invisibilidade anedótica?

Os pesquisadores investigaram, em seu estudo publicado na Journal of Personality and Social Psychology, em 1999, as variáveis de humor, gramática e lógica, onde concluíram:

Primeiro, os incompetentes não reconhecem sua própria incompetência e, quando questionados, se acham injustiçados;

Segundo, os incompetentes não reconhecem a competência dos outros indivíduos e, quando desafiados, julgam que foi inveja;

Terceiro, a ignorância gera mais confiança do que o conhecimento.

Quarto, aqueles que reconhecem ou aceitam sua ignorância/incompetência podem se qualificar e adquirir conhecimento.

Enfim, como nutricionista sempre observei esse efeito psicológico no cenário da nutrição clínica e esportiva, mas como professor dizia aos alunos: a bioquímica salva! Porém, com a pandemia, outras áreas de conhecimento foram colocadas em pauta e as pessoas descreem/desconfiam da ciência, dos docentes, dos pesquisadores e dos cientistas. A bioquímica, agora, não basta para salvar as pessoas, pois as mesmas não entendem de metodologia científica, tornam-se um alvo fácil de picaretas e charlatões.

Quer dizer, o Efeito Dunning-Kruger trata-se um fenômeno comportamental que faz uma pessoa achar que pode falar sobre qualquer assunto que, na realidade, não tem o menor conhecimento (MUITA confiança, mas POUCO conhecimento). Essas pessoas supervalorizam suas opiniões (EU SOU UM GÊNIO), que não passam de opiniões sem qualquer comprovação ou evidência. Como consequência, alguns fecham os olhos e ouvidos para as evidências, tomam decisões equivocadas, obtém resultados indevidos e levam outras pessoas a cometerem erros (100% DE IGNORÂNCIA). Contudo, outros percebem que existe mais sobre o assunto que pensavam e, assim, mergulham no desespero (NUNCA VOU ENTENDER ISSO). Com o passar do tempo, após muito estudo, as coisas começam a fazer sentido e a confiança aumenta (SEI BASTANTE), mas existe muito cuidado ao expressar sua opinião (SEI DAS MINHAS LIMITAÇÕES).


O fato é que todos nós já passamos, conhecemos ou convivemos com pessoas acometidas pelo Efeito Dunning-Kruger. Ninguém está livre deste efeito psicológico. Porém, os indivíduos mais capacitados estão menos suscetíveis ao efeito.

É provável que este post não tenha impacto em algumas pessoas, pois a ignorância gera mais confiança e outros tornam-se incapazes de reconhecer sua própria ignorância e incompetência, segundo Efeito Dunning-Kruger. Refletindo mais profundamente sobre o assunto, acredito que esse viés cognitivo no contexto da pandemia é o resultado da INFODEMIA (info = informação; demia = pandemia), ou seja, um excesso de informação disponível nas mídias sociais em uma velocidade impressionante de forma que a maioria das pessoas, leigas e não legais, não sabem lidar.

Deixa-me exemplificar para facilitar o entendimento. As pessoas geralmente repetem: "As vacinas de mRNA causam câncer, pois alteram nosso DNA". Com base nisso, não adianta você explicar que a molécula linear com nucleotídeos AGCU (RNA) não pode sofrer transcrição reversa para uma estrutura molecular em dupla-hélice com nucleotídeos AGCT (DNA), pois nosso corpo, nem mesmo coronavírus ou vacinas, possuem uma enzina chamada DNA polimerase RNA-dependente (também conhecida como transcriptase reversa). Isso é o “básico do básico” desde o Dogma Central da Biologia Molecular, descrito por Francis Crick, em 1958. Contudo, essas pessoas ignorantes quanto à biologia básica têm grande confiança, pois se apoiam em picaretas e charlatões exercendo falácia de autoridade. Essas pessoas não aceitam a opinião dos especialistas, mestres, doutores e pós-doutores, pessoas que dedicaram uma vida à boa ciência, pois estão no auge da ignorância com confiança, igual ao Sr. Wheeler ao roubar um banco com esfregaço de limão no rosto.

Para finalizar, os psicólogos Dunning e Kruger não estudaram a INFODEMIA em seu estudo, obviamente, mas me parece coerente refletir. Aliás, vamos finalizar minha reflexão com outro exemplo simples:

Não entendo "nada com coisa nenhuma" de hieróglifos egípcios, que eram o sistema de escrita usado no Antigo Egito que combinava elementos logográficos, silábicos e alfabéticos para deixar uma mensagem ou pensamento. Dessa forma, não vou discutir com especialistas (egiptologista) sobre a tradução da mensagem codificada, pois não sei se fala sobre o fim do mundo ou trata-se apenas de uma receita de pão egípcia. Portanto, se não sei, vou estudar e escutar quem realmente sabe.

Lembre-se de uma lição do Efeito Dunning-Kruger: "A IGNORÂNCIA GERA MAIS CONFIANÇA DO QUE O CONHECIMENTO".