BEBIDAS ALCOÓLICAS:
Se Beber, a Bioquímica Explica!
JOELSO PERALTA,
Nutricionista, Mestre em
Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica
- UFRGS.
Olá pessoal, tudo bem? Em meu último post falei sobre as bebidas
energéticas (“Bebidas Energéticas e Efeitos Adversos à Saúde”) e, agora,
falarei de outra bebida, aquela que “passarinho não bebe” (rs), adivinhou? Sim,
falarei das bebidas alcoólicas. Para tanto, imaginem a seguinte situação:
Quatro amigos, Goku,
Obelix, Tom e Jerry (nomes fictícios, rs), se encontram após aprovação em uma prova
de vestibular e resolvem comemorar bebendo cerveja. Goku, que é descendente de
japoneses, já apresenta rubor intenso e tontura após beber apenas um copo de
cerveja. Obelix, descendente de alemães, não apresentou nenhum sintoma, mesmo
após consumir 6 copos de cerveja. Tom e Jerry, que são dois irmãos americanos,
não estão acostumados com bebidas alcoólicas e resolvem ingerir a mesma
quantidade (ou seja, 2 ou 3 copos). Tom faz sua ingestão de cerveja em jejum,
enquanto que Jerry faz seu consumo comendo uma porção de batata-frita com
queijo. Curiosamente, Tom fica bêbado, mas seu irmão Jerry não, ingerindo a
mesma quantidade de álcool.
Com
base nisso, pergunta-se:
Por
que algumas pessoas, durante a ingestão de bebidas alcoólicas, ficam bêbadas,
embriagadas, mais rapidamente que outras? Por que Goku ficou em “pileque” (embriagado,
bêbado) com uma pequena porção de álcool no organismo, enquanto que Obelix praticamente
“mergulhou no copo de cerveja” e nada sentiu? A descendência japonesa ou alemã
teve influência na embriaguez? Por que Tom e Jerry apresentaram sintomas
diferentes após a ingestão da mesma quantidade de cerveja? Será que a ingestão
de bebidas alcoólicas concomitante com refeições (neste caso, batata-frita com
queijo) interferiu na embriaguez dos irmãos? Existe diferença entre beber de “estômago
vazio” e beber de “barriga cheia”?
Enfim,
você pode não simpatizar com a bioquímica (embora tenha alguma simpatia com as
bebidas alcoólicas, rs), mas ela (a bioquímica) pode explicar todos estes
questionamentos no estudo de caso fictício. Pois bem, vamos entender isso agora
mesmo e lembre-se: “SE BEBER, NÃO DIRIJA”. Porém, “SE FOR BEBER, LEIA
PREVIAMENTE ESTE POST E ME SIGA NAS REDES SOCIAIS" (@peraltanutri).
METABOLISMO DO ETANOL
O
etanol (ETOH), presente nas bebidas alcoólicas, é absorvido lentamente pelo
estômago, porém rapidamente pelo intestino. Sendo solúvel em água, ETOH
rapidamente ganha a corrente sanguínea (cerca de 1 hora ou menos), sendo
distribuído para a grande maioria dos órgãos e tecidos (fígado, músculos, rins
e coração). ETOH
é metabolizado praticamente no fígado (95%) com pequena excreção pelos pulmões
e rins. Sua metabolização ocorre em três (03) etapas, embora vou apresentar
quatro (04) etapas, que será devidamente justificada.
PRIMEIRA
REAÇÃO:
ETOH
sofre reação catalisada pela álcool
desidrogenase (ADH) no citosol (citoplasma), que gera acetaldeído, ou seja:
ETOH
+ NAD+ ® acetaldeído + NADH
Onde:
ETOH
= etanol
ADH
= álcool desidrogenase
NAD+
= nicotinamida adenina dinucleotídeo (forma oxidada)
NADH
= nicotinamida adenina dinucleotídeo (forma reduzida)
SEGUNDA
REAÇÃO:
ETOH
sofre reação da acetaldeído
desidrogenase (ALDH) mitocondrial, que gera acetato, ou seja:
Acetaldeído
+ NAD+ ® acetato + NADH
Acetato
é convertido em acetil-CoA para o ciclo de Krebs e, em seguida, lançado a
cadeia respiratória com liberação de CO2 + H2O + ATP.
Onde:
CO2
= dióxido de carbono
H2O
= água
ATP
= adenosina trifosfato
TERCEIRA
REAÇÃO:
ETOH
é metabolizado pelo sistema microssomal
oxidante de etanol (MEOS), que inclui o citocromo P450, isoforma CYP2E1, gerando acetaldeído e NADP+,
ou seja:
ETOH
+ NADPH + O2 ®
acetaldeído + NADP+ + H2O
Onde:
MEOS
= sistema microssomal oxidante de etanol
(microssomal ethanol
oxidizing system)
CYP2E1
= citocromo P450, isoforma 2E1
O2
= oxigênio
NADP+
= nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (forma oxidada)
NADPH
= nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (forma reduzida)
QUARTA
REAÇÃO:
ETOH
sofre a reação da catalase (CAT) nos
peroxissomas, que também pode gerar acetaldeído, ou seja:
ETOH
+ H2O2 ® acetaldeído + H2O
Onde:
CAT
= catalase
H2O2
= peróxido de hidrogênio
Contudo, algumas considerações devem ser feitas.
ÁLCOOL E
ACETALDEÍDO DESIDROGENASES
Essencialmente,
o ETOH sofre ação da ADH (primeira reação) para gerar acetaldeído e NADH.
Acetaldeído é produto tóxico (veremos mais adiante) e, portanto, é convertido
em acetato pela ALDH (segunda reação). Acetato é eliminado pela expiração. Quer
dizer, as reações primárias para oxidação do ETOH envolvem ADH e ALDH. Além
disso, ADH possui baixo Km (quer dizer, constante de Michaelis-Menten) quando comparado a ALDH e, portanto,
tem maior eficiência catalítica para metabolizar ETOH. Peraí, “deu ruim” esse
negócio de Km? Não sabe ou não lembra? Sem problemas, vamos voltar um pouquinho
nos conceitos de cinética enzimática da bioquímica básica antes de continuar.
CINÉTICA ENZIMÁTICA E KM
Cinética enzimática é o capítulo da
bioquímica que estuda os fatores que afetam a velocidade das reações químicas
catalisadas por enzimas. Entre estes fatores, existem os efeitos dos sais e
solventes polares e apolares; a temperatura (óbvio, altas temperaturas ou
hipertermia desnaturam as proteínas); o potencial de hidrogênio (pH); a concentração
de enzima (ou seja, quanto mais enzimas, mais encaixe da enzima e substrato,
isto é, E+S); e a concentração de substrato (mais substrato, maior velocidade
da reação). Na concentração de substrato que estudamos a constante de Michaelis-Menten
(Km).
Resumidamente, Km seria a concentração de
substrato que produz metade de velocidade máxima (Vmax/2) ao observar um
gráfico (substrato no eixo X, velocidade no eixo Y). Neste sentido, quanto
menor o valor de Km de uma determinada enzima, menores serão as concentrações
de substrato necessárias para que a enzima atinja a metade da velocidade máxima
(Vmax/2), ou seja, maior eficiência catalítica (E+S ® E + P).
Confuso? Talvez sim, talvez não. Deixa-me exemplificar:
A hexoquinase (HK) é uma enzima que existe no
músculo esquelético (e cérebro), enquanto que a glicoquinase (GK) existe no fígado
(e pâncreas). Ambas catalisam a mesma reação química, ou seja, transformação de
glicose (Gli) em glicose-6-fosfato (Gli-6P) após captação da glicose pelo
transportadores de glicose (GLUTs), isto é:
Gli + ATP ® Gli-6P +ADP
Onde:
ATP
= adenosina trifosfato
ADP
= adenosina difosfato
HK = hexoquinase
GK = glicoquinase
Gli = glicose
Gli-6P = glicose-6-fosfato
Vmax/2 = metade da velocidade máxima
Contudo, a HK atinge a Vmax/2 com muito menos
substrato (ou seja, menos Gli) do que a GK, portanto, a HK tem Km menor que a
GK. A HK (músculo), na verdade, é mais eficiente que a GK (fígado) na reação
química ou, se preferir, HK tem mais afinidade pelo substrato.
Vejamos, outro exemplo similar:
Se fossemos comparar a captura de glicose, durante o
jejum prolongado cursando com hipoglicemia, entre o cérebro e o músculo esquelético
(já que ambos possuem HK), notará que a pouca glicose circulante será capturada
pelo cérebro ao invés do músculo. Você poderia justificar que o cérebro está
sempre “trabalhando, exercitando-se” e, portanto, precisa mais da glicose do
que os músculos esqueléticos. Outros poderiam dizer que o cérebro é o “chefe”
e, portanto, “ele que manda”, recebendo mais glicose. Entretanto, a HK do
cérebro possui baixo Km (mais eficiente) quando comparada a HK do músculo
(menos eficiente), o que justifica o destino da glicose ao cérebro em situações
hipoglicêmicas.
Voltando ao nosso exemplo de bebidas alcoólicas. O ETOH que chega ao
organismo pela ingestão de bebidas alcoólicas (absorção pelo trato
gastrintestinal) é rapidamente metabolizado no fígado em acetaldeído e NADH
pela ADH (primeira reação), mas lentamente convertido em acetato pela ALDH
(segunda reação). Isso ocorre porque ADH possui baixo Km (portanto, maior eficiência
catalítica), enquanto que ALDH possui alto Km (portanto, menor eficiência
catalítica). Dessa forma, como você pode perceber, forma-se muito rapidamente
acetaldeído (que é tóxico) e o indivíduo precisa “pegar leve” na ingestão de
bebidas alcoólicas se não quer ficar embriagado com antecedência.
Acredito
que já possa responder alguns dos questionamentos, não é mesmo? Beleza, mas vamos
continuar.
SISTEMA
MICROSSOMAL OXIDANTE DE ETANOL (MEOS)
Agora,
lembra do sistema microssomal oxidante
de etanol (MEOS), que inclui CYP2E1?
Pois bem, essa reação bioquímica também pode gerar acetaldeído (e NADP+)
a partir do ETOH, embora ocorra nos microssomas. Microssomas são pequenas vesículas
fechadas formadas por membranas do retículo endoplasmático (ou originários da
homogeneização celular em laboratório), que contém sistemas enzimáticos, como citocromo
P450 (CYP450) e uridinodifosfato glucuroniltransferase (UGT). Na farmácia e
indústria farmacêutica, os microssomas hepáticos são exaustivamente estudados
para a descoberta de novos medicamentos. Neste sentido, um desequilíbrio em
MEOS/CYP2E1 nos hepatócitos humanos tem grande importância na toxicidade
induzida pelo ETOH (Alguém, antes de beber, foi verificar se o fígado está
saudável? Já sabemos a resposta, rs). Além disso, CYP2E1 tem Km maior do que
ALDH (ou seja, CYP2E1 é menos eficiente para metabolizar ETOH quando comparado
a ALDH). Ainda, o uso crônico de ETOH aumenta a expressão de CYP2E1.
CATALASE
E,
finalmente, precisamos falar da catalase
(CAT). Quer dizer, não seria exatamente justo considerar a reação da CAT como
uma reação específica para metabolização do ETOH, pois sua principal função é
remover peróxido de hidrogênio (H2O2) do meio, evitando toxicidade
desta espécie reativa de oxigênio (ROS, reactive
oxygen species) sobre as células (em outro post podemos conversar sobre ROS
e antioxidantes, aguardem). Em outras palavras, a reação da CAT tem menor papel
na oxidação do ETOH quando comparado as reações anteriormente citadas (MEOS/CYP2E1,
ADH e ALDH), mas não poderia deixar de mencioná-la.
FARMACOCINÉTICA E FARMADINÂMICA
O
mecanismo de absorção, distribuição, metabolismo e excreção (portanto, ADME) é
estudado na farmacologia, especificamente na farmacocinética (PK, pharmacokinetics). Neste sentido, a PK avalia
a biodisponibilidade (F) da substância ou fármaco; o volume de distribuição (Vd);
o tempo de meia-vida (t½) e a depuração ou clearance
(CL). A farmadinâmica (PD, pharmacodynamics),
por sua vez, estuda a ligação substância ou fármaco com o receptor em uma
célula-alvo, o mecanismo de ação e os efeitos fisiológicos ou metabólicos. Em
outras palavras, a metabolização do ETOH no fígado, mesmo em se tratando do
citocromo P450 (CYP2E1), é um processo estudado na PK e não da PD.
Com
base nisso, já podemos entender os sinais e sintomas relatados por Goku,
Obelix, Tom e Jerry após a ingestão de cerveja? KEEP CALM (mantenha a calma),
pois tudo será respondido. Continue a leitura.
ÁLCOOL E ALIMENTOS
No
caso das bebidas alcoólicas, a taxa de absorção determina o pico de
concentração de álcool no sangue (BAC, blood
alcohol concentration). Quer dizer, a taxa de absorção do ETOH é maior que
a taxa de eliminação. ETOH é absorvido mais rapidamente em jejum do que no
estado alimentado, pois as refeições (especialmente sólidas e contendo
carboidratos, lipídeos, proteínas e/ou fibras) retardam o esvaziamento gástrico
e, consequentemente, passagem ao intestino delgado. De forma similar, as bebidas
alcoólicas diluídas em suco, no jejum, podem ser absorvidas mais lentamente
quando comparadas as bebidas alcoólicas não diluídas. Aliás, drinks e coquetéis
alcoólicos, que são misturados com sucos, frutas (limão, morango, manga,
cereja, abacaxi, laranja e banana) ou outros ingredientes (açúcar, mel,
chocolate, creme de cacau e essência de baunilha) podem retardar o esvaziamento
gástrico. Com base nisso, esses drinks e coquetéis doces podem evitar sua
embriaguez, desde que consumidos sem exageros (afinal, bebidas doces são mais
aceitas e bem toleradas pelas pessoas).
Porém,
apenas alimentos retardam o esvaziamento gástrico ou tipo de bebida alcoólica
tem interferência neste processo? Pois bem, existe um estudo publicado em 2014
(Mack C. Mitchell Jr. et al. Absorption and peak blood alcohol concentration after
drinking beer, wine, or spirits. Alcohol
Clin Exp Res 38(5): 1200-1204, 2014) que pode nos ajudar a entender.
Segundo estudo, ETOH é realmente absorvido mais rapidamente em jejum (estado
pré-absortivo) do que no estado alimentado (estado pós-prandial), o que se deve
ao efeito dos alimentos sobre o esvaziamento gástrico e absorção intestinal.
Todavia, os autores também descobriram, experimentalmente, que a concentração
de álcool nas bebidas é mais determinante para o esvaziamento gástrico e
absorção intestinal do ETOH do que o aporte calórico das bebidas. Peraí,
deixa-me detalhar o estudo:
O
estudo foi conduzido com 15 homens, saudáveis, não fumantes, entre 25 e 65 anos
de idade, com índice de massa corporal (IMC) médio de 26,35 km/m2
(oscilando entre 21,9 e 29,9 kg/m2) e peso corporal médio de 82,66
kg (oscilando entre 68,6 e 96,4 kg). Foram excluídos no estudo aqueles com IMC
menor que 18,5 kg/m2 (desnutridos) e maior que 30,0 kg/m2
(obesidade). O estudo foi realizado em 3 dias consecutivos, onde os voluntários
receberiam, aleatoriamente, as seguintes bebidas: cerveja (5,1% v/v), vinho
(12,5% v/v) e vodca (20% v/v), porém, a vodca (que geralmente tem graduação
alcoólica de 40%) foi diluída em tônica. Os voluntários deveriam ingerir 0,5 g
de ETOH por quilograma de peso corporal (0,5 g/kg/dia), quer dizer, 41,33 g
ETOH para o homem médio do estudo (0,5 g x 82,66 kg = 41,33 g). Cabe destacar
que 12 onças (350 ml) de cerveja; 5 onças (140 ml) de vinho; e 1,5 onças (40
ml) de vodca/tônica possuem a mesma quantidade de ETOH. Quanto ao procedimento
experimental, resumidamente, temos: após jejum de 8h (e sem ingestão de bebidas
alcoólicas nas últimas 48h), os voluntários deveriam ingerir suas bebidas
alcoólicas (5 voluntários para cerveja; 5 voluntários para vinho; e 5
voluntários para vodca/tônica, selecionados aleatoriamente) dentro de 20
minutos. Amostras de sangue venoso foram coletadas nos seguintes tempos (em
minutos) após administração das bebidas alcoólicas: 10, 20, 30, 40, 60 (portanto,
1h), 90, 120 (2h), 150, 180 (3h), 210, 240 (4h), 360 (6h) e 480 minutos (finalmente,
8h).
E,
agora, quais foram os resultados?
No
estudo, as bebidas mais concentradas (vodca/tônica 20% v/v), quando
administradas em jejum, apresentam maior pico de concentração do etanol no
sangue (BAC, blood alcohol concentration)
quando comparadas as bebidas menos concentradas (cerveja 5,1% v/v; e vinho
12,5% v/v). Quer dizer, as concentrações das bebidas alcoólicas interferem na
absorção e pico sanguíneo uma vez que as bebidas menos concentradas (cerveja e
vinho) absorvem mais lentamente do que bebidas mais concentradas (vodca). Não
quero entrar em muitos detalhes farmacocinéticos (PK) – que estuda absorção,
distribuição, metabolismo e excreção (ADME) –, mas as diferenças foram observadas
na concentração máxima (Cmax) e no tempo máximo (Tmax), entre as bebidas. Quer
dizer, o pico no sangue (Cmax) foi maior para vodca (77,4 mg/dL) do que vinho
(61,7 mg/dL) e, este, maior que cerveja (50,3 mg/dL) (ou seja: vodca > vinho
> cerveja). Ao mesmo tempo, nenhuma bebida ultrapassou 80 mg/dL após
ingestão (limite de pico sanguíneo, portanto). Por outro lado, o Tmax é menor
para vodca (0,6 horas) do que vinho (0,9 horas) e cerveja (1 hora). Em outras
palavras, a exposição das pessoas a vodca é maior (elevado Cmax), porém o tempo
que a substância dura no corpo é menor (baixo Tmax). Isso, obviamente, não quer
dizer que você deve ingerir meia garrafa de vodca porque ela dura menos no
corpo, pois lembre-se que são 40 ml de vodca para obter a mesma quantidade de
ETOH nas demais bebidas (350 ml de cerveja; 140 ml de vinho).
E
aí, já consegue responder os questionamentos dos quatro amigos que saíram para
beber? Segura aí, em breve vamos finalizar.
TOXICIDADE DO ÁLCOOL
Acetaldeído
é obtido pela reação da ADH (álcool desidrogenase) e MEOS/CYP2E1 (sistema
microssomal oxidante de etanol, citocromo P450, isoforma 2E1). Todavia, acetaldeído
é uma substância tóxica para mitocôndria hepática, bem como causa desnaturação
proteica, lipoperoxidação, prejudica a exocitose celular e depleta o
antioxidante glutationa (GSH). Você conhece alguns efeitos do acetaldeído
quando relata tontura, náusea e cefaleia durante o abuso de bebidas alcoólicas.
É óbvio, portanto, que acetaldeído precisa ser rapidamente metabolizado. ALDH (acetaldeído
desidrogenase) pode metabolizar acetaldeído para obter acetato. O acetato, por
sua vez, é convertido em acetil-CoA pela acetil-CoA sintetase (ACS). Acetil-CoA
pode ser consumido pelo ciclo de Krebs (ciclo dos ácidos tricarboxílicos, ciclo
TCA), gerando adenosina trifosfato (ATP) na cadeia respiratória (COMTE, cadeia
oxidativa mitocondrial transportadora de elétrons). Ou seja, ETOH é uma fonte
de energia aos tecidos.
Entretanto,
quando uma grande quantidade de bebida alcoólica é ingerida (portanto, a
quantidade de ETOH supera a capacidade de metabolização) temos o famoso “pileque” (indivíduo bêbado). Aliás,
lembrem-se que a taxa de absorção determina o pico de concentração de álcool no
sangue (ou seja, parece que o pico sanguíneo depende de sua ingestão, que podem
ser retardada com a ingestão de alimentos, como vimos). Ainda, lembrem-se que a
reação da ADH (primeira reação) é rápida (baixo Km), mas a reação da ALDH (segunda
reação) é lenta (alto Km). Portanto, vai acabar sobrando acetaldeído e NADH
pela reação lenta da ALDH se você exagerar na ingestão de bebidas alcoólicas.
Então, antes de continuar, precisamos elucidar mais uma temática de bioquímica
básica: cinética de primeira ordem e de ordem zero.
CINÉTICA DE PRIMEIRA ORDEM E ORDEM ZERO
Durante
o processo biotransformação, onde ETOH é metabolizado praticamente no fígado
(95%), as substâncias ou fármacos se enquadram na cinética de primeira ordem
quando a taxa de reação química depende da concentração molar de um reagente.
Por outro lado, as substâncias ou fármacos se enquadram na cinética de ordem zero quando não dependem da concentração do
reagente, ou seja, o reagente não afeta a taxa de reação, desde que a
temperatura seja constante. Em outras palavras, o ETOH respeita a cinética de
ordem zero, ou seja, ADH (álcool desidrogenase da primeira reação) atinge seu
funcionamento máximo (velocidade máxima) em baixas concentração de ETOH e, em
altas concentrações de ETOH, haverá acúmulo de álcool no sangue, pois a enzima
(ADH) estará saturada. O que isso quer dizer? Simples, a biotransformação será
constante, independente da dose de álcool administrada ou, se preferir, você
não conseguirá metabolizar mais rapidamente ingerindo mais álcool e tão pouco
eliminar adequadamente o excesso de álcool ingerido. Em suma, se beber demais,
ficará bêbado! Ao mesmo tempo, a depuração ou clearance (CL) – medida da capacidade do corpo em eliminar uma substância
ou fármaco que, neste caso, são bebidas alcoólicas – não se altera (não
aumenta) com as diferentes concentrações nas bebidas. Aliás, o estudo
supracitado (Mack C. Mitchell Jr. et al. Absorption and peak blood alcohol
concentration after drinking beer, wine, or spirits. Alcohol Clin Exp Res 38(5): 1200-1204, 2014) encontrou uma pequena
diferença na depuração, sendo maior para cerveja (CL = 31,0) do que vinho (CL =
29,4) e vodca (CL = 27,7), embora com significância estatística apenas para
vinho e cerveja (vinho < cerveja, com p<0,005). Esse achado, contudo, não
foi devidamente elucidado no estudo e não podemos considerar normal, afinal, a cinética
do ETOH é de ordem zero.
Retomando
os efeitos adversos do acetaldeído, podemos destacar alguns pontos problemáticos:
Primeiro,
um excesso de acetaldeído pode consumir NADPH e oxigênio (reação da MEOS/CYP2E1)
que, em alguns pacientes, pode corresponder aos relatos de hipóxia;
Segundo,
acetaldeído em excesso pode sobrecarregar a reação da CAT, que deveria remover
H2O2 oriundo de diversas fontes. Neste sentido, H2O2
que não for devidamente eliminado por aumentar a produção de espécies reativas
de oxigênio (ROS), particularmente radical hidroxil (H2O2 +
e- + H+ ® OH·
+ H2O).
Terceiro,
acetaldeído pode se ligar a L-cisteína, formando um complexo
acetaldeído-cisteína. Ou seja, ocorre sequestro de L-cisteína, que reduz a
disponibilidade de N-acetilcisteína (NAC), glutationa (GSH), glutationa
peroxidase (GPX) e taurina.
Além
disso, além do acetaldeído, a reação da ADH também pode gerar um excesso de
NADH citossólico. O NADH em excesso favorece a hiperlactatemia (efetor
alostérico positivo, onde piruvato forma lactato) e hiperuricemia secundária. Ainda,
NADH em excesso inibe o ciclo de Krebs (efetor alostérico negativo), o que pode
prejudicar gliconeogênese (nova formação de glicose a partir de compostos não
glicídicos) e favorecer a hipoglicemia. Por fim, o fígado pode deixar de oxidar
os substratos energéticos (carboidratos e lipídeos) em preferência por NADH do
ETOH, favorecendo o fígado gorduroso (decorrente da lipogênese).
E, agora,
pronto para responder aqueles questionamentos dos amigos Goku, Obelix, Tom e Jerry?
PERGUNTA
1:
Por
que algumas pessoas, durante a ingestão de bebidas alcoólicas, ficam bêbadas, embriagadas,
mais rapidamente que outras?
RESPOSTA
1:
A
resposta mais simples seria porque as pessoas beberam demais, afinal são
bebidas alcoólicas, gerando acetaldeído e excesso de NADH, além de perturbar a
neuroquímica cerebral (neurotransmissores). Entretanto, também vimos que o pico
de álcool na corrente sanguínea é determinado pela taxa de sua absorção
intestinal, ou seja, bebeu mais, terá mais pico sanguíneo. Por fim, existem
diferenças nas atividades da ADH (baixo Km = mais eficiente e, portanto, forma
acetaldeído e NADH rapidamente) e ALDH (alto Km = menos eficiente e, portanto,
oxida lentamente acetaldeído para acetato). Contudo, existem detalhes que
lembrei agora, vamos lá? Continue a leitura.
O
etanol (ETOH) das bebidas alcoólicas, após absorção intestinal, é enviado aos
diferentes tecidos e órgãos, incluindo cérebro. Todavia, o efeito das bebidas
alcoólicas pode ser diferente entre homens e mulheres. Sério? Sim, vou
justificar.
Homens
e mulheres possuem níveis diferentes de massa muscular e adiposidade. Sendo
assim, o volume de distribuição (Vd) do ETOH depende do volume hídrico corporal
(ou seja, mais músculos, mais água). Ao mesmo tempo, fármacos ou substâncias
mais lipofílicas circulam menos no corpo, pois se acumulam nos adipócitos do
tecido adiposo. Neste caso, a concentração plasmática do fármaco ou substância
será menor e o volume de distribuição (Vd) será maior. O ETOH, todavia, é muito
solúvel (hidrofílico) e não se acumula em adipócitos. Isso não quer dizer,
obviamente, que homens não ficam bêbados e mulheres ficam bêbadas (devido
diferença no percentual de gordura e massa muscular), pois existem outros
fatores envolvidos, incluindo a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas e a resistência
individual ao álcool.
Ainda,
a idade do indivíduo também pode influenciar no “pileque” já que jovens (crianças
e adolescentes) possuem mais água corporal do que idosos. Isso não quer dizer,
obviamente, que idosos não ficariam bêbados porque possuem menos água no corpo.
E, ao contrário, nos “velhinhos” (idosos) podemos esperar menor atividade ou
expressão de ADH/ALDH ou MEOS/ CYP2E1 e, consequentemente, maior sensibilidade
aos efeitos adversos do ETOH. Além disso, fatores patológicos (hemorragia, doença
hepática e insuficiência renal) também afetam o Vd, onde podemos encontrar
idosos com comorbidades. Já nos indivíduos jovens, embora possuam mais água
corporal, podem ter maiores efeitos adversos ao cérebro, que está em
desenvolvimento.
Aliás,
os efeitos do ETOH podem ser diferentes em uma pessoa “baixinha” (estatura =
1,55 m) e outra “longilínea” (estatura = 1,98 m) quando avaliamos o Vd após
absorção do álcool. Talvez o “baixinho” fique bêbado mais rapidamente que o
“grandão”?
Por
fim, embora não seja o caso do etanol das bebidas alcoólicas, cabe lembrar que substâncias
e fármacos também tem seu Vd alterado pela ligação com proteínas de ligação
plasmática (por exemplo, albumina, globulina e glicoproteína a1-ácida).
PERGUNTA
2:
Por
que Goku ficou em “pileque” com uma pequena porção de álcool no organismo,
enquanto que Obelix praticamente “mergulhou no copo de cerveja” e nada sentiu? A
descendência japonesa (Goku) ou alemã (Obelix) teve influência na embriaguez?
RESPOSTA
2:
Segundo
Howard J. Edenberg (2007), ADH e ALDH, que metabolizam etanol (ETOH), possuem
vários alelos diferentes (ADH1B, ADH1C e ALDH2) que codificam essas enzimas e,
portanto, podem existir diferentes étnicas que influenciam na embriaguez e alcoolismo.
Quer dizer, alelos ADH1B e ADH1C, que codificam ADH, resultam em rápida formada
de acetaldeído e NADH. Já vimos os efeitos adversos de acetaldeído (prejuízo
mitocondrial, desnaturação proteica, lipoperoxidação, alteração na exocitose
celular e depleção de glutationa), bem como do NADH em excesso (hiperlactatemia,
inibição do ciclo de Krebs, prejuízo na gliconeogênese e hipoglicemia). Já o alelo ALDH2
codifica a forma inativa da ALDH, ou seja, resulta em acúmulo de acetaldeído já
que ALDH manterá sua forma inativa. Deixa-me ser mais direto: ADH pode ser codificada
por diferentes genes (ADH1A, ADH1B, ADH1C, ADH4, ADH5, ADH6 e ADH7) e o mesmo
ocorre para ADLH (ALDH1A1 e ALDH2) e, dessa forma, esses diferentes genes em
diferentes etnias pode justificar a embriaguez de Goku (descendência japonesa)
e Obelix (descendência alemã). Em outras palavras, as pessoas podem metabolizar
em taxas diferentes o ETOH das bebidas alcoólicas. Por exemplo, jovens
americanos europeus saudáveis, homozigos para ADH1B1, apresentam taxa de eliminação
do ETOH cerca de quatro vezes quando comparado com outros jovens. Além disso, o
alelo ADH1B2 é encontrado com maior frequência em asiáticos orientais, enquanto
que em europeus e africanos o alelo ADH1B2 não é muito comum. Claro, ter mais
ADH, de certa forma, lhe protege contra os efeitos adversos sob influência do
álcool, pois rapidamente o indivíduo ficará “tonto” e poderá interromper a
ingestão alcoólica (efeito protetor, portanto). Para maiores detalhes, leia: Howard
J. Edenberg. The Genetics of Alcohol Metabolism. Role of Alcohol Dehydrogenase
and Aldehyde Dehydrogenase Variants. Alcohol
Research & Health 30(1): 5-13, 2007.
PERGUNTA
3:
Por
que Tom e Jerry apresentaram sintomas diferentes após a ingestão da mesma
quantidade de cerveja? Será que a ingestão de bebidas alcoólicas concomitante
com refeições (neste caso, batata-frita com queijo) interferiu na embriaguez
dos irmãos? Existe diferença entre beber de “estômago vazio” e beber de
“barriga cheia”?
RESPOSTA
3:
Sim,
existe diferença entre beber de “barriga cheia” ou de “estômago vazio”. Quer
dizer, o ETOH é absorvido mais rapidamente em jejum do que no estado
alimentado, pois as refeições contêm macronutrientes e fibras que retardam o
esvaziamento gástrico e, consequentemente, a absorção de ETOH no intestino
delgado. Aliás, drinks e coquetéis alcoólicos doces (com sucos, frutas ou
misturas doces) também retardam o pico de ETOH na corrente sanguínea já que
retardam sua absorção intestinal.