quinta-feira, 2 de junho de 2022

BEBIDAS ALCOÓLICAS: Se Beber, a Bioquímica Explica!

 BEBIDAS ALCOÓLICAS:

Se Beber, a Bioquímica Explica!

JOELSO PERALTA,

Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas, Doutorando junto ao PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.

 

Olá pessoal, tudo bem? Em meu último post falei sobre as bebidas energéticas (“Bebidas Energéticas e Efeitos Adversos à Saúde”) e, agora, falarei de outra bebida, aquela que “passarinho não bebe” (rs), adivinhou? Sim, falarei das bebidas alcoólicas. Para tanto, imaginem a seguinte situação:

Quatro amigos, Goku, Obelix, Tom e Jerry (nomes fictícios, rs), se encontram após aprovação em uma prova de vestibular e resolvem comemorar bebendo cerveja. Goku, que é descendente de japoneses, já apresenta rubor intenso e tontura após beber apenas um copo de cerveja. Obelix, descendente de alemães, não apresentou nenhum sintoma, mesmo após consumir 6 copos de cerveja. Tom e Jerry, que são dois irmãos americanos, não estão acostumados com bebidas alcoólicas e resolvem ingerir a mesma quantidade (ou seja, 2 ou 3 copos). Tom faz sua ingestão de cerveja em jejum, enquanto que Jerry faz seu consumo comendo uma porção de batata-frita com queijo. Curiosamente, Tom fica bêbado, mas seu irmão Jerry não, ingerindo a mesma quantidade de álcool.

Com base nisso, pergunta-se:

Por que algumas pessoas, durante a ingestão de bebidas alcoólicas, ficam bêbadas, embriagadas, mais rapidamente que outras? Por que Goku ficou em “pileque” (embriagado, bêbado) com uma pequena porção de álcool no organismo, enquanto que Obelix praticamente “mergulhou no copo de cerveja” e nada sentiu? A descendência japonesa ou alemã teve influência na embriaguez? Por que Tom e Jerry apresentaram sintomas diferentes após a ingestão da mesma quantidade de cerveja? Será que a ingestão de bebidas alcoólicas concomitante com refeições (neste caso, batata-frita com queijo) interferiu na embriaguez dos irmãos? Existe diferença entre beber de “estômago vazio” e beber de “barriga cheia”? 

Enfim, você pode não simpatizar com a bioquímica (embora tenha alguma simpatia com as bebidas alcoólicas, rs), mas ela (a bioquímica) pode explicar todos estes questionamentos no estudo de caso fictício. Pois bem, vamos entender isso agora mesmo e lembre-se: “SE BEBER, NÃO DIRIJA”. Porém, “SE FOR BEBER, LEIA PREVIAMENTE ESTE POST E ME SIGA NAS REDES SOCIAIS" (@peraltanutri).

 

METABOLISMO DO ETANOL

O etanol (ETOH), presente nas bebidas alcoólicas, é absorvido lentamente pelo estômago, porém rapidamente pelo intestino. Sendo solúvel em água, ETOH rapidamente ganha a corrente sanguínea (cerca de 1 hora ou menos), sendo distribuído para a grande maioria dos órgãos e tecidos (fígado, músculos, rins e coração). ETOH é metabolizado praticamente no fígado (95%) com pequena excreção pelos pulmões e rins. Sua metabolização ocorre em três (03) etapas, embora vou apresentar quatro (04) etapas, que será devidamente justificada. 

 

PRIMEIRA REAÇÃO:

ETOH sofre reação catalisada pela álcool desidrogenase (ADH) no citosol (citoplasma), que gera acetaldeído, ou seja:

ETOH + NAD+ ® acetaldeído + NADH

Onde:

ETOH = etanol

ADH = álcool desidrogenase

NAD+ = nicotinamida adenina dinucleotídeo (forma oxidada)

NADH = nicotinamida adenina dinucleotídeo (forma reduzida)

SEGUNDA REAÇÃO:

ETOH sofre reação da acetaldeído desidrogenase (ALDH) mitocondrial, que gera acetato, ou seja:

Acetaldeído + NAD+ ® acetato + NADH

Acetato é convertido em acetil-CoA para o ciclo de Krebs e, em seguida, lançado a cadeia respiratória com liberação de CO2 + H2O + ATP.

Onde:

CO2 = dióxido de carbono

H2O = água

ATP = adenosina trifosfato

TERCEIRA REAÇÃO:

ETOH é metabolizado pelo sistema microssomal oxidante de etanol (MEOS), que inclui o citocromo P450, isoforma CYP2E1, gerando acetaldeído e NADP+, ou seja:

ETOH + NADPH + O2  ® acetaldeído + NADP+ + H2O

Onde:

MEOS = sistema microssomal oxidante de etanol

(microssomal ethanol oxidizing system)

CYP2E1 = citocromo P450, isoforma 2E1

O2 = oxigênio

NADP+ = nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (forma oxidada)

NADPH = nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (forma reduzida)

QUARTA REAÇÃO:

ETOH sofre a reação da catalase (CAT) nos peroxissomas, que também pode gerar acetaldeído, ou seja:

ETOH + H2O2 ® acetaldeído + H2O

Onde:

CAT = catalase

H2O2 = peróxido de hidrogênio

 

Contudo, algumas considerações devem ser feitas.

 

ÁLCOOL E ACETALDEÍDO DESIDROGENASES

Essencialmente, o ETOH sofre ação da ADH (primeira reação) para gerar acetaldeído e NADH. Acetaldeído é produto tóxico (veremos mais adiante) e, portanto, é convertido em acetato pela ALDH (segunda reação). Acetato é eliminado pela expiração. Quer dizer, as reações primárias para oxidação do ETOH envolvem ADH e ALDH. Além disso, ADH possui baixo Km (quer dizer, constante de Michaelis-Menten) quando comparado a ALDH e, portanto, tem maior eficiência catalítica para metabolizar ETOH. Peraí, “deu ruim” esse negócio de Km? Não sabe ou não lembra? Sem problemas, vamos voltar um pouquinho nos conceitos de cinética enzimática da bioquímica básica antes de continuar.

CINÉTICA ENZIMÁTICA E KM

Cinética enzimática é o capítulo da bioquímica que estuda os fatores que afetam a velocidade das reações químicas catalisadas por enzimas. Entre estes fatores, existem os efeitos dos sais e solventes polares e apolares; a temperatura (óbvio, altas temperaturas ou hipertermia desnaturam as proteínas); o potencial de hidrogênio (pH); a concentração de enzima (ou seja, quanto mais enzimas, mais encaixe da enzima e substrato, isto é, E+S); e a concentração de substrato (mais substrato, maior velocidade da reação). Na concentração de substrato que estudamos a constante de Michaelis-Menten (Km).

Resumidamente, Km seria a concentração de substrato que produz metade de velocidade máxima (Vmax/2) ao observar um gráfico (substrato no eixo X, velocidade no eixo Y). Neste sentido, quanto menor o valor de Km de uma determinada enzima, menores serão as concentrações de substrato necessárias para que a enzima atinja a metade da velocidade máxima (Vmax/2), ou seja, maior eficiência catalítica (E+S ® E + P).

Confuso? Talvez sim, talvez não. Deixa-me exemplificar:

A hexoquinase (HK) é uma enzima que existe no músculo esquelético (e cérebro), enquanto que a glicoquinase (GK) existe no fígado (e pâncreas). Ambas catalisam a mesma reação química, ou seja, transformação de glicose (Gli) em glicose-6-fosfato (Gli-6P) após captação da glicose pelo transportadores de glicose (GLUTs), isto é:

Gli + ATP ® Gli-6P +ADP

Onde:

ATP = adenosina trifosfato

ADP = adenosina difosfato

HK = hexoquinase

GK = glicoquinase

Gli = glicose

Gli-6P = glicose-6-fosfato

Vmax/2 = metade da velocidade máxima

 

Contudo, a HK atinge a Vmax/2 com muito menos substrato (ou seja, menos Gli) do que a GK, portanto, a HK tem Km menor que a GK. A HK (músculo), na verdade, é mais eficiente que a GK (fígado) na reação química ou, se preferir, HK tem mais afinidade pelo substrato.

Vejamos, outro exemplo similar:

Se fossemos comparar a captura de glicose, durante o jejum prolongado cursando com hipoglicemia, entre o cérebro e o músculo esquelético (já que ambos possuem HK), notará que a pouca glicose circulante será capturada pelo cérebro ao invés do músculo. Você poderia justificar que o cérebro está sempre “trabalhando, exercitando-se” e, portanto, precisa mais da glicose do que os músculos esqueléticos. Outros poderiam dizer que o cérebro é o “chefe” e, portanto, “ele que manda”, recebendo mais glicose. Entretanto, a HK do cérebro possui baixo Km (mais eficiente) quando comparada a HK do músculo (menos eficiente), o que justifica o destino da glicose ao cérebro em situações hipoglicêmicas.

Voltando ao nosso exemplo de bebidas alcoólicas. O ETOH que chega ao organismo pela ingestão de bebidas alcoólicas (absorção pelo trato gastrintestinal) é rapidamente metabolizado no fígado em acetaldeído e NADH pela ADH (primeira reação), mas lentamente convertido em acetato pela ALDH (segunda reação). Isso ocorre porque ADH possui baixo Km (portanto, maior eficiência catalítica), enquanto que ALDH possui alto Km (portanto, menor eficiência catalítica). Dessa forma, como você pode perceber, forma-se muito rapidamente acetaldeído (que é tóxico) e o indivíduo precisa “pegar leve” na ingestão de bebidas alcoólicas se não quer ficar embriagado com antecedência.

Acredito que já possa responder alguns dos questionamentos, não é mesmo? Beleza, mas vamos continuar.

 

SISTEMA MICROSSOMAL OXIDANTE DE ETANOL (MEOS)

Agora, lembra do sistema microssomal oxidante de etanol (MEOS), que inclui CYP2E1? Pois bem, essa reação bioquímica também pode gerar acetaldeído (e NADP+) a partir do ETOH, embora ocorra nos microssomas. Microssomas são pequenas vesículas fechadas formadas por membranas do retículo endoplasmático (ou originários da homogeneização celular em laboratório), que contém sistemas enzimáticos, como citocromo P450 (CYP450) e uridinodifosfato glucuroniltransferase (UGT). Na farmácia e indústria farmacêutica, os microssomas hepáticos são exaustivamente estudados para a descoberta de novos medicamentos. Neste sentido, um desequilíbrio em MEOS/CYP2E1 nos hepatócitos humanos tem grande importância na toxicidade induzida pelo ETOH (Alguém, antes de beber, foi verificar se o fígado está saudável? Já sabemos a resposta, rs). Além disso, CYP2E1 tem Km maior do que ALDH (ou seja, CYP2E1 é menos eficiente para metabolizar ETOH quando comparado a ALDH). Ainda, o uso crônico de ETOH aumenta a expressão de CYP2E1.

 

CATALASE

E, finalmente, precisamos falar da catalase (CAT). Quer dizer, não seria exatamente justo considerar a reação da CAT como uma reação específica para metabolização do ETOH, pois sua principal função é remover peróxido de hidrogênio (H2O2) do meio, evitando toxicidade desta espécie reativa de oxigênio (ROS, reactive oxygen species) sobre as células (em outro post podemos conversar sobre ROS e antioxidantes, aguardem). Em outras palavras, a reação da CAT tem menor papel na oxidação do ETOH quando comparado as reações anteriormente citadas (MEOS/CYP2E1, ADH e ALDH), mas não poderia deixar de mencioná-la.

 

FARMACOCINÉTICA E FARMADINÂMICA

O mecanismo de absorção, distribuição, metabolismo e excreção (portanto, ADME) é estudado na farmacologia, especificamente na farmacocinética (PK, pharmacokinetics). Neste sentido, a PK avalia a biodisponibilidade (F) da substância ou fármaco; o volume de distribuição (Vd); o tempo de meia-vida (t½) e a depuração ou clearance (CL). A farmadinâmica (PD, pharmacodynamics), por sua vez, estuda a ligação substância ou fármaco com o receptor em uma célula-alvo, o mecanismo de ação e os efeitos fisiológicos ou metabólicos. Em outras palavras, a metabolização do ETOH no fígado, mesmo em se tratando do citocromo P450 (CYP2E1), é um processo estudado na PK e não da PD.

Com base nisso, já podemos entender os sinais e sintomas relatados por Goku, Obelix, Tom e Jerry após a ingestão de cerveja? KEEP CALM (mantenha a calma), pois tudo será respondido. Continue a leitura.

 

ÁLCOOL E ALIMENTOS

No caso das bebidas alcoólicas, a taxa de absorção determina o pico de concentração de álcool no sangue (BAC, blood alcohol concentration). Quer dizer, a taxa de absorção do ETOH é maior que a taxa de eliminação. ETOH é absorvido mais rapidamente em jejum do que no estado alimentado, pois as refeições (especialmente sólidas e contendo carboidratos, lipídeos, proteínas e/ou fibras) retardam o esvaziamento gástrico e, consequentemente, passagem ao intestino delgado. De forma similar, as bebidas alcoólicas diluídas em suco, no jejum, podem ser absorvidas mais lentamente quando comparadas as bebidas alcoólicas não diluídas. Aliás, drinks e coquetéis alcoólicos, que são misturados com sucos, frutas (limão, morango, manga, cereja, abacaxi, laranja e banana) ou outros ingredientes (açúcar, mel, chocolate, creme de cacau e essência de baunilha) podem retardar o esvaziamento gástrico. Com base nisso, esses drinks e coquetéis doces podem evitar sua embriaguez, desde que consumidos sem exageros (afinal, bebidas doces são mais aceitas e bem toleradas pelas pessoas).

Porém, apenas alimentos retardam o esvaziamento gástrico ou tipo de bebida alcoólica tem interferência neste processo? Pois bem, existe um estudo publicado em 2014 (Mack C. Mitchell Jr. et al. Absorption and peak blood alcohol concentration after drinking beer, wine, or spirits. Alcohol Clin Exp Res 38(5): 1200-1204, 2014) que pode nos ajudar a entender. Segundo estudo, ETOH é realmente absorvido mais rapidamente em jejum (estado pré-absortivo) do que no estado alimentado (estado pós-prandial), o que se deve ao efeito dos alimentos sobre o esvaziamento gástrico e absorção intestinal. Todavia, os autores também descobriram, experimentalmente, que a concentração de álcool nas bebidas é mais determinante para o esvaziamento gástrico e absorção intestinal do ETOH do que o aporte calórico das bebidas. Peraí, deixa-me detalhar o estudo:

O estudo foi conduzido com 15 homens, saudáveis, não fumantes, entre 25 e 65 anos de idade, com índice de massa corporal (IMC) médio de 26,35 km/m2 (oscilando entre 21,9 e 29,9 kg/m2) e peso corporal médio de 82,66 kg (oscilando entre 68,6 e 96,4 kg). Foram excluídos no estudo aqueles com IMC menor que 18,5 kg/m2 (desnutridos) e maior que 30,0 kg/m2 (obesidade). O estudo foi realizado em 3 dias consecutivos, onde os voluntários receberiam, aleatoriamente, as seguintes bebidas: cerveja (5,1% v/v), vinho (12,5% v/v) e vodca (20% v/v), porém, a vodca (que geralmente tem graduação alcoólica de 40%) foi diluída em tônica. Os voluntários deveriam ingerir 0,5 g de ETOH por quilograma de peso corporal (0,5 g/kg/dia), quer dizer, 41,33 g ETOH para o homem médio do estudo (0,5 g x 82,66 kg = 41,33 g). Cabe destacar que 12 onças (350 ml) de cerveja; 5 onças (140 ml) de vinho; e 1,5 onças (40 ml) de vodca/tônica possuem a mesma quantidade de ETOH. Quanto ao procedimento experimental, resumidamente, temos: após jejum de 8h (e sem ingestão de bebidas alcoólicas nas últimas 48h), os voluntários deveriam ingerir suas bebidas alcoólicas (5 voluntários para cerveja; 5 voluntários para vinho; e 5 voluntários para vodca/tônica, selecionados aleatoriamente) dentro de 20 minutos. Amostras de sangue venoso foram coletadas nos seguintes tempos (em minutos) após administração das bebidas alcoólicas: 10, 20, 30, 40, 60 (portanto, 1h), 90, 120 (2h), 150, 180 (3h), 210, 240 (4h), 360 (6h) e 480 minutos (finalmente, 8h).

E, agora, quais foram os resultados?

No estudo, as bebidas mais concentradas (vodca/tônica 20% v/v), quando administradas em jejum, apresentam maior pico de concentração do etanol no sangue (BAC, blood alcohol concentration) quando comparadas as bebidas menos concentradas (cerveja 5,1% v/v; e vinho 12,5% v/v). Quer dizer, as concentrações das bebidas alcoólicas interferem na absorção e pico sanguíneo uma vez que as bebidas menos concentradas (cerveja e vinho) absorvem mais lentamente do que bebidas mais concentradas (vodca). Não quero entrar em muitos detalhes farmacocinéticos (PK) – que estuda absorção, distribuição, metabolismo e excreção (ADME) –, mas as diferenças foram observadas na concentração máxima (Cmax) e no tempo máximo (Tmax), entre as bebidas. Quer dizer, o pico no sangue (Cmax) foi maior para vodca (77,4 mg/dL) do que vinho (61,7 mg/dL) e, este, maior que cerveja (50,3 mg/dL) (ou seja: vodca > vinho > cerveja). Ao mesmo tempo, nenhuma bebida ultrapassou 80 mg/dL após ingestão (limite de pico sanguíneo, portanto). Por outro lado, o Tmax é menor para vodca (0,6 horas) do que vinho (0,9 horas) e cerveja (1 hora). Em outras palavras, a exposição das pessoas a vodca é maior (elevado Cmax), porém o tempo que a substância dura no corpo é menor (baixo Tmax). Isso, obviamente, não quer dizer que você deve ingerir meia garrafa de vodca porque ela dura menos no corpo, pois lembre-se que são 40 ml de vodca para obter a mesma quantidade de ETOH nas demais bebidas (350 ml de cerveja; 140 ml de vinho).

E aí, já consegue responder os questionamentos dos quatro amigos que saíram para beber? Segura aí, em breve vamos finalizar.

 

TOXICIDADE DO ÁLCOOL

Acetaldeído é obtido pela reação da ADH (álcool desidrogenase) e MEOS/CYP2E1 (sistema microssomal oxidante de etanol, citocromo P450, isoforma 2E1). Todavia, acetaldeído é uma substância tóxica para mitocôndria hepática, bem como causa desnaturação proteica, lipoperoxidação, prejudica a exocitose celular e depleta o antioxidante glutationa (GSH). Você conhece alguns efeitos do acetaldeído quando relata tontura, náusea e cefaleia durante o abuso de bebidas alcoólicas. É óbvio, portanto, que acetaldeído precisa ser rapidamente metabolizado. ALDH (acetaldeído desidrogenase) pode metabolizar acetaldeído para obter acetato. O acetato, por sua vez, é convertido em acetil-CoA pela acetil-CoA sintetase (ACS). Acetil-CoA pode ser consumido pelo ciclo de Krebs (ciclo dos ácidos tricarboxílicos, ciclo TCA), gerando adenosina trifosfato (ATP) na cadeia respiratória (COMTE, cadeia oxidativa mitocondrial transportadora de elétrons). Ou seja, ETOH é uma fonte de energia aos tecidos.

Entretanto, quando uma grande quantidade de bebida alcoólica é ingerida (portanto, a quantidade de ETOH supera a capacidade de metabolização) temos o famoso “pileque” (indivíduo bêbado). Aliás, lembrem-se que a taxa de absorção determina o pico de concentração de álcool no sangue (ou seja, parece que o pico sanguíneo depende de sua ingestão, que podem ser retardada com a ingestão de alimentos, como vimos). Ainda, lembrem-se que a reação da ADH (primeira reação) é rápida (baixo Km), mas a reação da ALDH (segunda reação) é lenta (alto Km). Portanto, vai acabar sobrando acetaldeído e NADH pela reação lenta da ALDH se você exagerar na ingestão de bebidas alcoólicas. Então, antes de continuar, precisamos elucidar mais uma temática de bioquímica básica: cinética de primeira ordem e de ordem zero.

 

CINÉTICA DE PRIMEIRA ORDEM E ORDEM ZERO

Durante o processo biotransformação, onde ETOH é metabolizado praticamente no fígado (95%), as substâncias ou fármacos se enquadram na cinética de primeira ordem quando a taxa de reação química depende da concentração molar de um reagente. Por outro lado, as substâncias ou fármacos se enquadram na cinética de ordem zero quando não dependem da concentração do reagente, ou seja, o reagente não afeta a taxa de reação, desde que a temperatura seja constante. Em outras palavras, o ETOH respeita a cinética de ordem zero, ou seja, ADH (álcool desidrogenase da primeira reação) atinge seu funcionamento máximo (velocidade máxima) em baixas concentração de ETOH e, em altas concentrações de ETOH, haverá acúmulo de álcool no sangue, pois a enzima (ADH) estará saturada. O que isso quer dizer? Simples, a biotransformação será constante, independente da dose de álcool administrada ou, se preferir, você não conseguirá metabolizar mais rapidamente ingerindo mais álcool e tão pouco eliminar adequadamente o excesso de álcool ingerido. Em suma, se beber demais, ficará bêbado! Ao mesmo tempo, a depuração ou clearance (CL) – medida da capacidade do corpo em eliminar uma substância ou fármaco que, neste caso, são bebidas alcoólicas – não se altera (não aumenta) com as diferentes concentrações nas bebidas. Aliás, o estudo supracitado (Mack C. Mitchell Jr. et al. Absorption and peak blood alcohol concentration after drinking beer, wine, or spirits. Alcohol Clin Exp Res 38(5): 1200-1204, 2014) encontrou uma pequena diferença na depuração, sendo maior para cerveja (CL = 31,0) do que vinho (CL = 29,4) e vodca (CL = 27,7), embora com significância estatística apenas para vinho e cerveja (vinho < cerveja, com p<0,005). Esse achado, contudo, não foi devidamente elucidado no estudo e não podemos considerar normal, afinal, a cinética do ETOH é de ordem zero.

Retomando os efeitos adversos do acetaldeído, podemos destacar alguns pontos problemáticos:

Primeiro, um excesso de acetaldeído pode consumir NADPH e oxigênio (reação da MEOS/CYP2E1) que, em alguns pacientes, pode corresponder aos relatos de hipóxia;

Segundo, acetaldeído em excesso pode sobrecarregar a reação da CAT, que deveria remover H2O2 oriundo de diversas fontes. Neste sentido, H2O2 que não for devidamente eliminado por aumentar a produção de espécies reativas de oxigênio (ROS), particularmente radical hidroxil (H2O2 + e- + H+ ® OH· + H2O).

Terceiro, acetaldeído pode se ligar a L-cisteína, formando um complexo acetaldeído-cisteína. Ou seja, ocorre sequestro de L-cisteína, que reduz a disponibilidade de N-acetilcisteína (NAC), glutationa (GSH), glutationa peroxidase (GPX) e taurina.

Além disso, além do acetaldeído, a reação da ADH também pode gerar um excesso de NADH citossólico. O NADH em excesso favorece a hiperlactatemia (efetor alostérico positivo, onde piruvato forma lactato) e hiperuricemia secundária. Ainda, NADH em excesso inibe o ciclo de Krebs (efetor alostérico negativo), o que pode prejudicar gliconeogênese (nova formação de glicose a partir de compostos não glicídicos) e favorecer a hipoglicemia. Por fim, o fígado pode deixar de oxidar os substratos energéticos (carboidratos e lipídeos) em preferência por NADH do ETOH, favorecendo o fígado gorduroso (decorrente da lipogênese).

 

E, agora, pronto para responder aqueles questionamentos dos amigos Goku, Obelix, Tom e Jerry?

PERGUNTA 1:

Por que algumas pessoas, durante a ingestão de bebidas alcoólicas, ficam bêbadas, embriagadas, mais rapidamente que outras?

RESPOSTA 1:

A resposta mais simples seria porque as pessoas beberam demais, afinal são bebidas alcoólicas, gerando acetaldeído e excesso de NADH, além de perturbar a neuroquímica cerebral (neurotransmissores). Entretanto, também vimos que o pico de álcool na corrente sanguínea é determinado pela taxa de sua absorção intestinal, ou seja, bebeu mais, terá mais pico sanguíneo. Por fim, existem diferenças nas atividades da ADH (baixo Km = mais eficiente e, portanto, forma acetaldeído e NADH rapidamente) e ALDH (alto Km = menos eficiente e, portanto, oxida lentamente acetaldeído para acetato). Contudo, existem detalhes que lembrei agora, vamos lá? Continue a leitura.

O etanol (ETOH) das bebidas alcoólicas, após absorção intestinal, é enviado aos diferentes tecidos e órgãos, incluindo cérebro. Todavia, o efeito das bebidas alcoólicas pode ser diferente entre homens e mulheres. Sério? Sim, vou justificar.

Homens e mulheres possuem níveis diferentes de massa muscular e adiposidade. Sendo assim, o volume de distribuição (Vd) do ETOH depende do volume hídrico corporal (ou seja, mais músculos, mais água). Ao mesmo tempo, fármacos ou substâncias mais lipofílicas circulam menos no corpo, pois se acumulam nos adipócitos do tecido adiposo. Neste caso, a concentração plasmática do fármaco ou substância será menor e o volume de distribuição (Vd) será maior. O ETOH, todavia, é muito solúvel (hidrofílico) e não se acumula em adipócitos. Isso não quer dizer, obviamente, que homens não ficam bêbados e mulheres ficam bêbadas (devido diferença no percentual de gordura e massa muscular), pois existem outros fatores envolvidos, incluindo a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas e a resistência individual ao álcool.

Ainda, a idade do indivíduo também pode influenciar no “pileque” já que jovens (crianças e adolescentes) possuem mais água corporal do que idosos. Isso não quer dizer, obviamente, que idosos não ficariam bêbados porque possuem menos água no corpo. E, ao contrário, nos “velhinhos” (idosos) podemos esperar menor atividade ou expressão de ADH/ALDH ou MEOS/ CYP2E1 e, consequentemente, maior sensibilidade aos efeitos adversos do ETOH. Além disso, fatores patológicos (hemorragia, doença hepática e insuficiência renal) também afetam o Vd, onde podemos encontrar idosos com comorbidades. Já nos indivíduos jovens, embora possuam mais água corporal, podem ter maiores efeitos adversos ao cérebro, que está em desenvolvimento.

Aliás, os efeitos do ETOH podem ser diferentes em uma pessoa “baixinha” (estatura = 1,55 m) e outra “longilínea” (estatura = 1,98 m) quando avaliamos o Vd após absorção do álcool. Talvez o “baixinho” fique bêbado mais rapidamente que o “grandão”?

Por fim, embora não seja o caso do etanol das bebidas alcoólicas, cabe lembrar que substâncias e fármacos também tem seu Vd alterado pela ligação com proteínas de ligação plasmática (por exemplo, albumina, globulina e glicoproteína a1-ácida).

 

PERGUNTA 2:

Por que Goku ficou em “pileque” com uma pequena porção de álcool no organismo, enquanto que Obelix praticamente “mergulhou no copo de cerveja” e nada sentiu? A descendência japonesa (Goku) ou alemã (Obelix) teve influência na embriaguez?

RESPOSTA 2:

Segundo Howard J. Edenberg (2007), ADH e ALDH, que metabolizam etanol (ETOH), possuem vários alelos diferentes (ADH1B, ADH1C e ALDH2) que codificam essas enzimas e, portanto, podem existir diferentes étnicas que influenciam na embriaguez e alcoolismo. Quer dizer, alelos ADH1B e ADH1C, que codificam ADH, resultam em rápida formada de acetaldeído e NADH. Já vimos os efeitos adversos de acetaldeído (prejuízo mitocondrial, desnaturação proteica, lipoperoxidação, alteração na exocitose celular e depleção de glutationa), bem como do NADH em excesso (hiperlactatemia, inibição do ciclo de Krebs, prejuízo na gliconeogênese e hipoglicemia). Já o alelo ALDH2 codifica a forma inativa da ALDH, ou seja, resulta em acúmulo de acetaldeído já que ALDH manterá sua forma inativa. Deixa-me ser mais direto: ADH pode ser codificada por diferentes genes (ADH1A, ADH1B, ADH1C, ADH4, ADH5, ADH6 e ADH7) e o mesmo ocorre para ADLH (ALDH1A1 e ALDH2) e, dessa forma, esses diferentes genes em diferentes etnias pode justificar a embriaguez de Goku (descendência japonesa) e Obelix (descendência alemã). Em outras palavras, as pessoas podem metabolizar em taxas diferentes o ETOH das bebidas alcoólicas. Por exemplo, jovens americanos europeus saudáveis, homozigos para ADH1B1, apresentam taxa de eliminação do ETOH cerca de quatro vezes quando comparado com outros jovens. Além disso, o alelo ADH1B2 é encontrado com maior frequência em asiáticos orientais, enquanto que em europeus e africanos o alelo ADH1B2 não é muito comum. Claro, ter mais ADH, de certa forma, lhe protege contra os efeitos adversos sob influência do álcool, pois rapidamente o indivíduo ficará “tonto” e poderá interromper a ingestão alcoólica (efeito protetor, portanto). Para maiores detalhes, leia: Howard J. Edenberg. The Genetics of Alcohol Metabolism. Role of Alcohol Dehydrogenase and Aldehyde Dehydrogenase Variants. Alcohol Research & Health 30(1): 5-13, 2007.

 

PERGUNTA 3:

Por que Tom e Jerry apresentaram sintomas diferentes após a ingestão da mesma quantidade de cerveja? Será que a ingestão de bebidas alcoólicas concomitante com refeições (neste caso, batata-frita com queijo) interferiu na embriaguez dos irmãos? Existe diferença entre beber de “estômago vazio” e beber de “barriga cheia”? 

RESPOSTA 3:

Sim, existe diferença entre beber de “barriga cheia” ou de “estômago vazio”. Quer dizer, o ETOH é absorvido mais rapidamente em jejum do que no estado alimentado, pois as refeições contêm macronutrientes e fibras que retardam o esvaziamento gástrico e, consequentemente, a absorção de ETOH no intestino delgado. Aliás, drinks e coquetéis alcoólicos doces (com sucos, frutas ou misturas doces) também retardam o pico de ETOH na corrente sanguínea já que retardam sua absorção intestinal.


Enfim, gostou? Lembre-se: Se beber, a bioquímica explica!