AMINOÁCIDOS DE CADEIA RAMIFICADA (BCAA):
ÚTIL OU INÚTIL? (Parte 3 - Final)
JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina:
Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.
Olá pessoal, tudo bem? Os aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA, branched-chain amino acids),
particularmente a leucina, a isoleucina e a
valina, foram discutidos na PARTE 1 (28/09/2021) e na PARTE 2
(30/09/2021) deste Blog, mas fiquei devendo a PARTE 3 (que consegui finalizar
somente hoje: 09/08/2022), que corresponde a parte final. Pois bem, os BCAAs não são bons ou ruins, nem mesmo mocinhos ou vilões, são
apenas aminoácidos. Todavia, as pessoas adoram uma polêmica e, portanto, alguns
vão crucificar quem prescreve BCAA no esporte, enquanto outros vão glorificar
quem prescreve BCAA na clínica. KEEP CALM (mantenha a calma), pois vamos relembrar
rapidamente os capítulos anteriores e, em seguida, finalizar este assunto. Lembre-se: se gostou
pode compartilhar, desde que citado a fonte (Prof. Joelso Peralta, Blog: https://peraltanutri.blogspot.com).
AHHH, siga-me nas redes sociais (@peraltanutri).
RESUMO DA
PARTE 1:
Na PARTE 1, vimos que os BCAAs podem ser
metabolizados de forma eficaz nos músculos esqueléticos e, em menor
grau, no tecido adiposo, cérebro, fígado, intestino, rins e coração (Leia: Brosnan
e Brosnan. Branched-Chain Amino Acids: Enzyme and Substrate Regulation. J. Nutr. 136: 207S-211S, 2006). Este
fato deve-se a presença de aminotransferases de cadeia ramificada (BCAT) e
desidrogenases dos a-cetoácidos
de cadeia ramificada (BCKADH), que são enzimas responsáveis pelo catabolismo
destes aminoácidos, em maior concentração nos músculos esqueléticos (Leia:
Eva Blomstrand et al. Branched-chain amino acids activate key enzymes in
protein synthesis after physical exercise. J.
Nutr. 136: 269S-273, 2006). Seu catabolismo envolve a formação do ácido a-cetoisocaproato (KIC), ácido a-ceto-β-metilvalerato (KMV) e o ácido a-cetoisovalerato (KIV) que, ao final da
rota metabólica, acaba gerando acetil-CoA para o ciclo de Krebs (ciclo dos
ácidos tricarboxílicos ou ciclo TCA) e, subsequente, oxidação na cadeia oxidativa
mitocondrial transportadora de elétrons (COMTE) (Leia:
Victor W. Rodwell et al. Bioquímica
Ilustrada de Harper, 2016; e Donald Voet, Judith G. Voet e Charlotte W.
Pratt. Fundamentos de Bioquímica,
2000). Então, os BCAAs podem ser usados para a geração de energia
celular.
Em seguida, avaliamos algumas alegações (ou propostas
mercadológicas) associadas ao consumo de BCAA. Uma das alegações mais
divulgadas no meio acadêmico, especialmente nos cursos de Nutrição em
Instituições de Ensino Superior (IES), nas aulas de dietoterapia ou terapia
nutricional do paciente hospitalizado ou crítico, é que os BCAAs poderiam
melhorar a resposta clínica em pacientes cirróticos e com encefalopatia
hepática (EH). Pois bem, vimos os BCAAs, em sua forma oral, segundo a
literatura, parece ser útil para prevenir a insuficiência hepática progressiva
e cirrose avançada (Leia: Giulio Marchesini et al. Nutritional supplementation with
branched-chain amino acids in advanced cirrhosis: a double-blind, randomized
trial. Gastroenterology 124(7):
1792-1801, 2003) e aumenta a perfusão cerebral de pacientes com encefalopatia
hepática (EH) (Leia: Fernando Gomes Romeiro et al. Which of the branched-chain amino acids
increases cerebral blood flow in hepatic encephalopathy? A double-blind
randomized trial. Neuroimage Clin
28(19): 302-310, 2018).
Deixa-me acrescentar outro estudo, que não estamos na Parte 1
(original). Segundo Lise Lotte Gluud e colaboradores (Leia:
Lise Lotte Gluud et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy
(Review). Cochrane Database of Systematic
Reviews, 2020), em uma revisão sistemática da Cochrane com 11 ensaios clínicos
randomizados (RCT) sobre os BCAAs versus
intervenções de controle, os BCAAs podem beneficiar as pessoas com
encefalopatia hepática (EH) e devem ser considerados na gestão de pessoas com
EH.
QUAL O MECANISMO
DO BCAA NA DOENÇA HEPÁTICA?
Pois bem, na doença hepática ocorre o acúmulo de substâncias
tóxicas, como a amônia (NH3), em virtude da inabilidade do ciclo da
uréia (ciclo da ornitina) em metabolizar o nitrogênio oriundo dos aminoácidos (Leia: Sue
Rodwell Willians. Fundamentos de Nutrição
e Dietoterapia, 1997). A hiperamonemia (elevação dos níveis de amônia), portanto,
iria comprometer a neurotransmissão no sistema nervoso central (SNC), bem como
o sistema neuromuscular. Aliás, na doença hepática estão prejudicados a
detoxificação da amônia pelo ciclo da uréia, bem como a biossíntese de
glicogênio (glicogênese hepática) (Leia: Robins
e Cotran. Patologia – Bases Patológicas
das Doenças, 2016). Além disso, a NH3
atravessa a barreira hematoencefálica (BHE), sofrendo conversão para glutamina,
que favorece ao edema em astrócitos (Leia: Laís
Augusti et al. Ingestão proteica na encefalopatia hepática: panorama
atual. Nutrire 39(3): 338-347, 2014).
Os BCAAs, então, poderiam ser usados para evitar a desnutrição do
paciente cirrótico, já que 50-90% destes
evoluem para desnutrição, bem como evitar a neurotoxicidade. Lembre-se,
novamente, que todos os aminoácidos são metabolizados no fígado, exceto os
BCAAs, que são metabolizados nos músculos esqueléticos (principalmente) e, em
menor grau, em outros tecidos extra-hepáticos (tecido
adiposo, cérebro, intestino, rins e coração) (Leia:
Brosnan e Brosnan. Branched-Chain Amino Acids: Enzyme and Substrate Regulation. J. Nutr. 136: 207S-211S, 2006). OK, deixa-me explicar melhor esse mecanismo fascinante.
De acordo com Lise Lotte Gluud et al. (Leia:
Lise Lotte Gluud et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy
(Review). Cochrane Database of Systematic
Reviews, 2020), os BCAAs fornecem aos
músculos esqueléticos esqueletos de carbono para a reposição do a-cetoglutarato do ciclo de
Krebs, que teria sido esgotado pela hiperamonemia presente na doença hepática.
Quer dizer, segundo Romeo Ernesto Riegel (Leia: Romeo Ernesto Riegel. Bioquímica. 5.ed. Editora Unisinos,
2012), amônia (NH3) combina-se com a-cetoglutarato para formar
glutamato, sendo a reação catalisada pela glutamato desidrogenase (GDH). Havendo
hiperamonemia (excesso de amônia circulante), o a-cetoglutarato
é subtraído do ciclo de Krebs, o que diminui o ritmo dessa via metabólica. O resultado,
obviamente, é a reduzida produção de equivalente de redução (NADH e FADH2)
e, consequentemente, de adenosina trifosfato (ATP). Quando esse acontecimento
ocorre no cérebro, temos a neurotoxicidade. Aliás, NH3 atravessa a barreira
hematoencefálica (BHE) e causa edema em astrócitos, devido excesso na formação de
glutamina a partir do glutamato (Leia: Laís Augusti et al. Ingestão
proteica na encefalopatia hepática: panorama atual. Nutrire 39(3): 338-347, 2014). Ainda, glutamato (a-cetoglutarato + NH3
® glutamato) atua como
neurotransmissor excitatório no sistema nervoso central (SNC), o que influencia
na toxicidade pela propriedade neuroexcitatória do glutamato (Leia: Romeo Ernesto Riegel. Bioquímica. 5.ed. Editora Unisinos, 2012). O glutamato, portanto, precisa ser removido da fenda
sináptica dos neurônios para evitar a superexcitação neuronal pós-sináptica e a
morte de neurônios, o que ocorre via formação de glutamina (ação da glutamina
sintetase) em astrócitos com uso de NH3. A glutamina, então, deve
voltar aos neurônios pré-sinápticos para evitar o edema em astrócitos, onde NH3
é liberada (ação da glutaminase) e o glutamato resultante pode ser armazenamento
em vesículas sinápticas para uso futuro. Aliás, glutamato pode ser convertido
em ácido g-aminobutírico (GABA), que é o principal neurotransmissor
inibitório do SNC (Leia: Alexandre Valotta da Silva
e Francisco Romero Cabral. Ictogênese, epileptogênese e mecanismo de ação das drogas
na profilaxia e tratamento da epilepsia. J
Epilepsy Clin Neurophysiol 14(Suppl 2):39-45, 2008).
Pois bem, retomamos os BCAAs. As concentrações de BCAA e
glutamato no plasma e tecido muscular são baixas na doença hepática (cirrose) e
hiperamonemia, onde a remoção da NH3 pelo músculo esquelético é
proporcional a remoção de BCAA em pessoas com cirrose. Como vimos, NH3
“rouba” a-cetoglutarato do ciclo de
Krebs, que se torna improdutivo para a geração de NADH/FADH2 e ATP. Todavia,
os BCAAs, nos músculos esqueléticos (lembre-se, BCAAs são direcionados aos
músculos, logo após ingestão), fornecem esqueletos carbônicos necessários para
a reposição do a-cetoglutarato
do ciclo de Krebs. Neste sentido, os músculos esqueléticos e os BCAAs possuem
papeis fundamentais na detoxificação da NH3. Além disso, a síntese de
glutamina é elevada no musculo esquelético (atividade aumentada da glutamina
sintetase), o que auxilia no processo de detoxificação (ou seja, consumindo NH3,
que não ficará livre para atravessar a barreira hematoencefálica, BHE). A
suplementação de BCAA, portanto, participa da detoxificação da NH3 e
formação de glutamina; e reduz o fluxo de aminoácidos aromáticos através da BHE
(competição por sítios de ligação), mantendo o equilíbrio de dopamina, noradrenalina
e serotonina. Os benefícios dos BCAAs também se
manifestam na redução da desnutrição em pacientes cirróticos e outras doenças
hepáticas, revertendo a perda de massa muscular. Todavia, os BCAAs não possuem
efeito sobre a taxa de mortalidade (Leia:
Lise Lotte Gluud et al. Branched-chain amino acids for people with hepatic encephalopathy
(Review). Cochrane Database of Systematic
Reviews, 2020).
Segundo
Francislene Juliana Martins et al. (Leia: Francislene
Juliana Martins et al. Nutrição em paciente cirrótico. HU Revista, Juiz de Fora, 39: 3-4, 2013), a dieta do paciente com cirrose deve ser personalizada,
especialmente em relação a proteína, onde a suplementação com BCAA melhora o
estado nutricional e estimula a regeneração hepática (NOTA: regeneração
hepática não depende unicamente de BCAA, mas também de glutamina, vitaminas do
complexo B, zinco, magnésio, entre outros). De acordo com L. Kathleen
Mahan e Janice L. Raymond (Leia: L. Kathleen Mahan
e Janice L. Raymond. Alimentos, Nutrição
e Dietoterapia, 2018), a prática da restrição
proteica em pacientes com encefalopatia hepática (EH) é considerado ultrapassada,
onde a restrição pode agravar a desnutrição. A Sociedade
Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral, o Colégio Brasileiro de Cirurgiões
e a Associação Brasileira de Nutrologia, em sua publicação Terapia Nutricional
nas Doenças Hepáticas Crônicas e Insuficiência Hepática (2011), contudo, diz não há indicação para uma restrição proteica
em pacientes com insuficiência hepática e o uso de BCAA pode atuar como fonte
de nutriente na presença de cirrose. E complementa: na cirrose avançada, a suplementação
com BCAA é útil para melhorar a evolução clínica e retardar a progressão da insuficiência
hepática, embora não existam evidências para redução de mortalidade.
Neste
sentido, BCAA é útil ou inútil?
Ou,
melhor, útil para quê? Inútil em qual situação?
RESUMO DA
PARTE 2:
Já na PARTE 2, discutimos outras alegações
associadas ao uso de BCAA, por exemplo, na hipótese de prevenção da fadiga
central. Quer dizer, a suplementação de BCAA poderia prevenir a fadiga central (relacionada
a hipoglicemia e/ou síntese de 5-hidroxitriptamina, 5-HT, ou serotonina) em
atletas submetidos ao exercício de longa duração (maratonistas, triatletas e
ultramaratonistas).
QUAL O MECANISMO
DO BCAA NA FADIGA CENTRAL?
No exercício prolongado (baixa intensidade e longa duração)
ocorre um aumento na produção de serotonina (5-HT) pela maior disponibilidade
de seu precursor plasmático: o aminoácido aromático triptofano (TRP). Ou seja,
durante o exercício prolongado ocorre maior mobilização dos triglicerídeos (TG)
do tecido adiposo (lipólise), onde os ácidos graxos resultantes são oxidados
para a geração de energia na mitocôndria do músculo esquelético (β-oxidação dos
ácidos graxos). Dessa forma, a albumina sérica é desviada para o transporte de
ácidos graxos, deixando o TRP livre (já que este aminoácido necessita de
albumina como transportador). Sendo assim, TRL livre (TRPL) atravessa a
barreira hematoencefálica (BHE) e forma serotonina (5-HT), que está relacionado
à fadiga central e a desistência do atleta frente ao esforço físico. E, agora,
que entra a suplementação de BCAA. Os BCAAs podem competir pelo sítio de
ligação do TRPL e, consequentemente, limitar a entrada do TRPL através da
barreira hematoencefálica (BHE) (NOTA: essa competição não se dá apenas com TRP
e BCAA, mas também fenilalanina e tirosina) (Leia: Ronaldo J. Maughan e Loiuse
M. Burke. Nutrição Esportiva. ArtMed:
Porto Alegre, 2004; e Christine A. Rosenbloom. Sports Nutrition – A guide for the professional working with active
people. The American Dietetic Association, Chicago, Illinois, 2000). Enfim, na presença de BCAA, que ganha a “porta de
entrada”, ocorre um decréscimo na produção de serotonina e, consequentemente,
redução da fadiga central
A
hipótese de fadiga central pelo aumento do TRP, que
pode ser contrabalançado com o uso de BCAA, é explorado em diversos estudos (Leia: Eric A. Newsholme e Eva Blomstrand. Branched-chain
amino acids and central fatigue. J Nutr
136(1 Suppl): 274S-6S, 2006; e Eva Blomstrand. A role for branched-chain amino
acids in reducing central fatigue. J Nutr
136(2):544S-547S, 2006). Todavia, Romain Meeusen e Phil Watson (Leia: Romain Meeusen e Phil Watson Amino acids and the
brain: do they play a role in "central fatigue"? Int J Sport Nutr Exerc Metab 17 Suppl: S37-46, 2007) relatam
não haver dúvidas que alguns aminoácidos (triptofano e tirosina) estejam
envolvidos na fadiga, com participação da serotonina
(5-HT), mas a manipulação de BCAA a fim de reverter a fadiga é controversa e
malsucedida. Já Sujean Choi et al. (Leia: Sujean
Choi et al. Oral branched-chain amino acid supplements that reduce brain
serotonin during exercise in rats also lower brain catecholamines. Amino Acids 45(5): 1133-42, 2013) diz
que a suplementação com BCAA reduz 5-HT
(serotonina) cerebral em ratos, mas seu efeito em humanos permanece controverso.
E, agora,
BCAA é útil ou inútil?
A hipótese
é consagrada, mas controversa, não acham?
FINALMENTE, A
PARTE 3 (FINAL):
A
pergunta, da PARTE 3, seria: os BCAAs favorecem a hipertrofia
muscular e atenuam o dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”)?
BCAAs podem ser usados para maximizar a hipertrofia
muscular em indivíduos treinados?
Os BCAAs e, particularmente a leucina, possuem um importante
papel na regulação da tradução de proteínas contrácteis da musculatura
esquelética (actina e miosina, por exemplo). O processo, contudo, é gigantesco
e complexo, mas vou resumir e poupar vocês de inúmeras páginas de leitura em
livros didáticos e artigos científicos (sou um cara legal, viu?).
O processo de tradução gênica é citoplasmático, diferente da
transcrição gênica que é nuclear. O mecanismo de ação (teórico) para a atuação
dos BCAAs e, particularmente da leucina, na hipertrofia muscular parece
envolver a tradução gênica. Sendo assim, vamos lá:
Em um primeiro momento,
uma molécula de ácido desoxirribonucleico mensageiro (mRNA) é selecionada por
um ribossomo para a tradução gênica, sendo um processo que ocorre no citoplasma
da célula muscular (sarcoplasma). Ocorre a leitura do mRNA, embora haja a
participação do RNA transportador (tRNA) e do RNA ribossomal (rRNA). O passo
fundamental desta primeira etapa é a dissociação ribossomal em duas
subunidades: 60S e 40S. A subunidade 40S do ribossomo interage com vários
fatores de iniciação eucarióticos (eIFs), embora destaca-se o fator de
iniciação eucariótico do tipo 2 (eIF2), que é sensível as concentrações de
leucina intracelular. Bingo, a leucina entrou na discussão.
Neste segundo momento,
na presença de leucina (advindo de alimentos, suplementos ou do “pool” de aminoácidos endógenos), ocorre
ativação do eIF2. Cabe destacar que a proteína inibitória de ligação (4E-BP1)
não permite a interação de outros eIFs (e são inúmeros) ao 40S ribossomal. Entretanto,
quando 4E-BP1 é fosforilado pela proteína quinase de mamíferos alvo de
rapamicina (mTOR) ocorre a liberação dos demais eIFs (ou seja, mTOR inibe
4E-BP1). A mTOR, por sua vez, é sensível a concentração de leucina intracelular,
isto é, quanto mais leucina, mais ativação da mTOR, teoricamente.
Em um terceiro momento,
podemos destacar a participação de outros fatores que controlam a tradução
gênica, incluindo a proteína quinase ribossomal S6 de 70 kDa (p70S6K). A p70S6K
estimula a tradução do mRNA e elongação da síntese proteica. Ocorre, então, a
síntese de proteínas contrácteis de actina e miosina, implicados no aumento da
massa muscular nos indivíduos submetidos ao treinamento e com adequação
dietética. Aliás, a dieta deve cobrir essa demanda (em calorias e nutrientes) envolvida
no processo de hipertrofia muscular. Em outras palavras, você precisa, além da leucina,
de todos os aminoácidos essenciais para o balanço nitrogenado positivo. Ainda,
precisa de carboidratos para síntese de glicogênio; e lipídeos, particularmente
colesterol, para síntese de hormônios esteroides. Não terei tempo aqui, mas
você precisa de vitaminas e minerais, que atuam como cofatores nas reações
enzimáticas envolvidas neste complexo mecanismo hipertrófico.
Por fim, digamos um quarto
momento, ocorre a introdução de códon nonsense
(ou seja, sem-sentido) no sítio de leitura do mRNA, que interrompe o processo.
E, agora, pensem:
A
participação da leucina em determinados momentos da tradução gênica significa
que este aminoácido, isoladamente, promove hipertrofia muscular?
Não seria
esperar demais de um “pobre” e “coitado” “aminoacidozinho”, isolado, perdido
nesta vasta via metabólica?
Bem,
vejamos o que dizem Maria Pontes Ferreira et al. (Leia:
Maria Pontes Ferreira et al. Periexercise coingestion of branched-chain amino
acids and carbohydrate in men does not preferentially augment resistance
exercise-induced increases in phosphatidylinositol 3 kinase/protein kinase
B-mammalian target of rapamycin pathway markers indicative of muscle protein
synthesis. Nutrition Research (34(3):
191-8, 2014). Trata-se de um estudo randomizado,
duplo-cego (portanto, elevado grau de evidência científica), publicado na Nutrition
Research, em 2014. Neste trabalho, os participantes (27 homens treinados,
entre 18 e 30 anos) foram divididos em três grupos:
Grupo
1: ingestão de carboidratos (CHO) apenas (n = 9);
Grupo
2: ingestão de CHO + BCAA (n = 8);
Grupo
3: ingestão de placebo (substância inerte, inócua, sem efeito, n= 10).
Os
BCAAs tinham a distribuição 2:1:1 (leucina, isoleucina e valina), cujo dose era
próxima de 10 g/dia. Os BCAAs (10 g/dia) e CHO (cerca de 120 g/dia) estavam dissolvidos
em água. As bebidas (contendo CHO e/ou BCAA) foram ingeridas antes e depois do
esforço físico, particularmente leg press
(pressão de pernas) e leg extension
(cadeira extensora).
E quais foram os resultados?
A
co-ingestão de CHO + BCAA não revelou diferença estatisticamente significativa
em marcadores de sinalização hipertrófica, tais como a proteína quinase de
mamíferos alvo de rapamicina (mTOR) e a proteína quinase
ribossomal S6 de 70 kDa (p70S6K). Também não foram observadas diferenças
no substrato-1 do receptor de insulina (IRS-1) e na proteína quinase B (também
conhecida como Akt). Ainda, a bebida glicídica e a bebida glicídica com BCAA
aumentaram a glicemia e insulinemia, porém a síntese proteica muscular (MPS)
não foi favorecida pela co-ingestão (CHO + BCAA) quando comparado ao CHO
isolado.
Em resumo:
BCAA não aumenta a hipertrofia muscular!
Para
mim, não vejo novidade alguma nisso. Quer dizer, desde quando você constrói músculos
com apenas três aminoácidos (leucina, isoleucina e valina)? Cadê os demais
aminoácidos essenciais para o crescimento e desenvolvimento do ser humano,
incluindo seus músculos? É óbvio, portanto, que BCAAs não aumentaram as
respostas anabólicas, induzidas pelo treinamento no estudo supracitado, pois
simplesmente a sinalização hipertrófica é muito mais complexa que a presença ou
ausência de leucina, por exemplo. Em outras palavras, leucina, em particular,
participa da sinalização Akt/mTOR, mas você não constrói uma “casa” apenas com “1
tijolo”, capitche? Então, pensando na síntese proteica, em indivíduos submetidos
ao treinamento, o consumo de suplementos contendo BCAA parece, verdadeiramente,
desnecessário e inútil. Aliás, você consegue 5 g (5000 mg) de BCAA nestes
suplementos comerciais, mas cabe lembrar que 100 g de frango (um pedaço
pequeno) contém 5610 mg de BCAA, enquanto que 100 g de claras de ovos (cerca de
3 claras) contém 6225 mg de BCAA (Leia: Agricultural
Research Service United States Department of Agriculture – USDA, National
Nutrient Database for Standard Reference; <http://ndb.usda.gov/ndb/nutrients/index>).
E, agora,
BCAA é útil ou inútil?
Na hipertrofia
muscular, BCAA, isoladamente, é inútil.
BCAAs atenuam o dano muscular induzido pelo exercício
físico?
O dano muscular induzido pelo exercício (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”) pode
ser uma novidade para alguns leitores e, portanto, vamos as definições
inicialmente.
O EIMD ocorre quando o indivíduo realiza exercícios intensos ou
longa duração que acabam culminando danos muscular, que podem ser atribuídos a desorganização das estruturas musculares, envolvendo o sarcolema
(rompimento da membrana), linha Z (ruptura, alargamento ou prolongamento), túbulos
transversos e miofibrilas. O processo é acompanhado por estresse
mecânico/metabólico e inflamação. Muitos protocolos experimentais
têm se dedicado ao estudo do DMIE, porém poucos estudos conseguem reproduzir a
situação real do treinamento físico, especialmente envolvendo as chamadas
repetições excêntricas ou “negativas”. A ocorrência do dano muscular requer
análise de inúmeros marcadores diretos e indiretos, tais como creatina fosfoquinase
(CPK), lactato
desidrogenase (LDH), 3-metilhistidina (3MH), mioglobinemia
(mioglobina no sangue circulante), mioglobinúria (mioglobina na urina), troponina,
sensação de dor ou desconforto e, até mesmo, incapacidade para executar
determinado movimento muscular.
Pois bem, uma revisão sistemática com meta-análise, publicada na
Nutrients em 2021 (Leia: Chutimon Khemtong et al. Does branched-chain amino acids
(BCAAs) supplementation attenuate muscle damage markers and soreness after
resistance exercise in trained males? A Meta-Analysis of Randomized Controlled
Trials. Nutrients 13(6): 1880, 2021),
selecionando
artigos revisados por pares e ensaios clínicos randomizados (RCT, randomized clinical trial), entre 2010 e
2020, e usando uma ferramenta da Cochrane para avaliação do risco de viés,
buscou responder essa questão. É um excelente estudo e vamos direto ao assunto:
Qual objetivo do estudo?
O
objetivo do artigo publicado na Nutrients (2021) foi verificar os efeitos do
BCAA nos marcadores bioquímicos de lesão muscular. Que marcadores são estes? Como
foi dito existem vários, mas este estudo usou LDH (lactato desidrogenase) e CPK
(creatinina fosfoquinase).
Qual metodologia do
estudo?
Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise (maior grau
de evidência científica) que selecionou inicialmente 98 artigos científicos e,
destes, apenas 9 (nove) estudos foram usados (aqueles que atendiam os critérios
de inclusão, ou seja, artigos científicos revisados por pares e RCTs entre 2010
e 2020). Destes, 7 (sete) eram ensaios clínicos randomizados (RCT). Além disso,
usou-se uma ferramenta da Cochrane para avaliação do risco de viés.
NOTA: A Cochrane é uma rede internacional, com sede no Reino
Unido, registrada como uma organização sem fins lucrativos, usada para buscar
informações de alta qualidade para tomar decisões em saúde.
Qual foi o delineamento do
estudo?
O estudo selecionou apenas homens adultos. As mulheres não
faziam parte dos estudos, pois as oscilações nos níveis de estrógenos poderiam
influenciar os marcadores de lesão muscular, segundo autores. Os trabalhos
selecionados, por serem randomizados, contavam com grupo tratado (BCAA) e grupo
placebo. A dosagem de BCAA oscilou entre 0,2 a 1,76 gramas por quilograma de
peso corporal diariamente (0,2 a 1,76 g/kg/dia), onde a proporção de
aminoácidos ramificados mais corriqueira foi de 2:1:1 (leucina, isoleucina e
valina). Deixa-me trazer um exemplo: 0,2 g x indivíduo de 80 kg = 16 g de BCAA;
enquanto que 1,76 g x 80 kg = 140,8 g de BCAA (ou seja, não é pouca coisa). Lembre-se,
diversos estudos usam 8, 10 ou 12 g de BCAA. Além disso, muitos profissionais
nutricionistas calculam 0,05 g/kg/dia de BCAA (por exemplo: 0,05 x indivíduo de
80 kg = 4 g/dia de BCAA).
Como critério de exclusão, estavam todos os estudos onde os
indivíduos ingeriam, além dos BCAA, outros suplementos (por exemplo: creatina,
HMB, Whey Protein e Arginina). Isso é fantástico, pois estava cansado de ver
estudos enaltecendo um determinado suplemento, porém o estudo era conduzido com
a combinação de vários suplementos. Além disso, como já dito, as mulheres foram
excluídas, pois os níveis oscilantes de estrogênio poderiam comprometer os
resultados (pode existir controvérsia neste item, mas foi o relato dos
autores).
Os participantes do estudo eram
treinados?
Sim, nos estudos selecionados a maioria relatava o treinamento
de força (musculação), mas também haviam estudos incluindo futebol, rugby, luta
livre e ciclismo de estrada. OK, todos os estudos possuem algum risco de viés,
onde misturar esportes diferentes poderia ser um ponto de crítica. Todavia, uma
grande parte dos estudos com suplementos, incluindo BCAA, selecionam pessoas
pouco treinadas ou destreinadas, o que foi rompido neste estudo.
Quais foram os resultados?
Peraí, não posso te contar os resultados se você não entende o
que é LDH e CPK. Então, só mais 1 minuto:
LDH
(lactato desidrogenase): enzima presente em nossas
células, inclusive nas fibras musculares. Essa enzima é responsável pela
conversão de piruvato em lactato, onde o piruvato é oriundo do metabolismo da
glicose (portanto, glicólise). Sendo uma enzima intracelular, seus níveis
sanguíneos elevados sugerem extravasamento de conteúdo intracelular ao meio
extracelular, que seria resultado de algum dano celular. LDH tem sua elevação,
geralmente, logo após o esforço físico e, por isso, foi foco de estudo.
CPK
(creatina fosfoquinase): enzima presente no músculo
esquelético (chamada de CPK-MM), mas também existe no miocárdio (CPK-MB) e no
cérebro (CPK-BB). Ops! Já fiz um post sobre CPK aqui (Leia: Exame
de CPK elevada, o que significa? Disponível em: https://peraltanutri.blogspot.com/2021/09/exame-de-cpk-elevada-o-que-significa.html), então
vamos resumir: a CPK-MM (muscular) representa 95% de todas as CPKs. A
estratégia para sua solicitação é mesma da LDH, ou seja, sua presença no meio
extracelular é sugestiva de injúria tecidual, decorrente do extravasamento do
conteúdo intracelular. Todavia, a CPK tem elevação prolongada, ou seja, pode
durar 24 a 96 horas, justificando seu uso no estudo.
Ao mesmo tempo, cabe destacar que
a LDH não é muito específica para lesão muscular, pois a enzima também existe
em outros locais (coração, rins, pulmões, pâncreas e fígado, bem como placenta
e hemácias). De qualquer forma, seus valores de normalidade oscilam entre 120 e
246 UI/L (dependendo da fonte pesquisada). A CPK, por sua vez, permite uma
visão mais específica do músculo esquelético, já que 95% das CPKs são
representadas pela CPK-MM, como foi dito. A CPK total nos exames, portanto, é a
somatória das CPKs destacadas. Seus valores de referência oscilam entre 32 e
294 U/L em homens e 33 a 211 U/L em mulheres (dependendo da fonte de pesquisa).
Embora estes sejam os dois
marcadores bioquímicos de lesão muscular (LDH e CPK) usados no estudo da
Nutrients (2021), que teve como objetivo verificar o processo inicial (até 24h)
e prolongado (até 96h) de um possível dano muscular induzido pelo treinamento
(EIMD), lembre-se, novamente, que existem outros parâmetros na literatura para
avaliar EIMD.
OK, pode
me contar os resultados da Nutrientes (2021)?
Claro, a presença de níveis
sanguíneos elevados de LDH e CPK em indivíduos submetidos ao esforço físico são
sugestivos de dano muscular induzido pelo exercício (EIMD). De fato, no EIMD
ocorre vazamento do material intramuscular (sarcolema) para o sangue em virtude
do rompimento da membrana do retículo sarcoplasmático. Com base nisso,
esperam-se respostas inflamatórias (inflamação do perimísio e/ou epimísio e dos
produtos de degradação do tecido muscular) com edema local que, por vezes, pode
levar a interrupção da atividade física por horas ou dias.
Neste estudo, foi investigado a hipótese
do uso de BCAA na recuperação dos indivíduos submetidos ao treinamento, ou
seja, os efeitos dos BCAAs nos marcadores bioquímicos de lesão muscular (LDH e CPK). Estes benefícios poderiam se manifestar na estimulação da
síntese proteica, na redução do processo inflamatório e na aceleração do
processo de regeneração muscular pós-treino. Neste estudo, o uso de BCAA em
indivíduos treinados não trouxe
nenhum efeito sobre a LDH em 24h e 48h. Como vimos, a LDH tem impacto
na inflamação inicial e, segundo este estudo, não há redução da inflamação com o uso de BCAA.
NOTA: Ao mesmo tempo, essa
informação é bastante limitada. Primeiro, porque um número limitado de estudos investiga
a relação BCAA e redução de LDH no treino de força (não podemos estabelecer as
devidas comparações) e, segundo, porque um RCT (ensaio clínico randomizado),
mais completo, com inúmeros marcadores de lesão muscular, requer enormes
recursos financeiros à ciência. Ou seja, pouco dinheiro é destinado à
suplementação esportiva quando comparado a “cura” de doenças, por assim dizer.
Quanto a CPK, os resultados são
mais animadores. Observou-se um
efeito positivo para CPK em todos os tempos estudados, ou seja, menos de 24h
(< 24h), 24h e 48h. Como vimos, a resposta da CPK é mais tardia ou
prolongada, onde sua elevação pode durar 24 a 96 horas. Segundo os autores, o uso de BCAA pode mitigar o efluxo de CPK
em todos os tempos de exercício e parece ter implicação em estágios do processo
inflamatório. Este fato, segundo autores, poderia acelerar a
regeneração muscular pós-exercício de força já que o nitrogênio, oriundo dos
BCAAs, poderia ser direcionado ao processo de regeneração. Além disso, o BCAA
pode ser transaminado para glutamato que, por sua vez, pode gerar glutamina (já
vimos isso, lembra?). A glutamina (outro foco de grande polêmica, atualmente) é
altamente utilizada pelas células inflamatórias e danificadas. Em outras
palavras, a redução nos níveis de
CPK, atenuando o dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD), pode ter
relação com o BCAA em si ou sua conversão em glutamina.
NOTA: Deve existir um cuidado
especial com a interpretação das informações. O estudo não avaliou o ciclo glutamato-glutamina
e, portanto, são hipóteses (teóricas) para justificar os resultados encontrados
na vertente CPK. E, claro, o estudo finaliza com aquelas frases padrões: “mais
estudos são necessários para elucidar as vias de atenuação da dor ou dano
muscular induzido pelo exercício”. Ao mesmo tempo, o estudo mostrou que doses
maiores de BCAA (18 g/dia) foram superiores as doses baixas (6 g/dia).
E aí, BCAA
é útil ou inútil?
Quanto ao
dano muscular induzido pelo exercício, o uso de BCAA precisa ser mais estudado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E aí, os BCAAs são úteis ou
inúteis? Ou, melhor, útil para quê? Inútil em qual situação? São mocinhos ou
vilões? Não seria melhor dizer que são apenas aminoácidos, que participam de
vias metabólicas importantes? Por que esperar “milagres” dos BCAAs? Aliás,
porque esperar “milagres” em quaisquer suplementos esportivos? De fato, posso
concluir: um protocolo padrão para prescrição de BCAA, em diferentes
modalidades esportivas, permanece obscuro. Mesmo assim, alguns “treinadores de
atletas” optam por prescrever “doses cavalares” de BCAA, sem qualquer embasamento
científico, exceto apoiados na experiência “NO PAIN, NO GAIN” ou “funcionou
para mim, funciona para você”. A ciência, contudo, não existe para agradar a
Gregos e Troianos, mas, sim, para fornecer a melhor explicação para uma dúvida
da sociedade. Então, antes de sugerir, prescrever ou criticar, leiam. Caso contrário,
sempre serão manipulados pelos “pseudocientistas das redes sociais” e “experts
em treinamento e nutrição”. AHHH, se gostou pode compartilhar, desde que citado a
fonte (Prof. Joelso Peralta, Blog: https://peraltanutri.blogspot.com; @peraltanutri).