BCAA: útil ou inútil? (Parte 2)
Olá, você leu a “Parte 1”? Não? Então, caro
leitor, leia antes de continuar, afinal: “A
mente é como uma paraquedas, só funciona quando aberta”. Já leu? Perfeito,
vamos ver as demais alegações em relação ao uso de aminoácidos de cadeia
ramificada (BCAA).
– ALEGAÇÃO N.2 –
Manutenção da aminoacidemia e fornecimento de nitrogênio
aos processos metabólicos
Essa alegação, na realidade, nem precisaria ser discutida,
afinal já foi abordada e parece tão óbvia. Quer dizer, os aminoácidos (não
somente os BCAAs) são fonte de nitrogênio ao organismo e, estes, podem ser
usados para a biossíntese de proteínas musculares (miofibrilas) e síntese de
substâncias nitrogenadas com diferentes funções, tais como: hemoglobina (proteína que transporta o
oxigênio no sangue), mioglobina
(proteína presente nos músculos e, portanto, envolvida na contração muscular), lipoproteínas plasmáticas (compostos
responsáveis pelo transporte lipídico no meio aquoso plasmático), porfirinas (pigmentos que podem se
ligar facilmente à metais, onde destaca-se a heme pertencente da hemoglobina e mioglobina), ácidos nucléicos (moléculas que podem transmitir informações
genéticas e, aliás, os mais “famosos” deste grupos incluem o DNA e RNA), ferritina (proteína que armazena ferro
nos tecidos, particularmente o fígado) e transferrina
(proteína sérica transportadora de ferro, sendo uma proteína produzida pelo
fígado).
Sendo assim, é importante manter os aminoácidos no sangue
(aminoacidemia), pois seu organismo agradece. Todavia, o que ocorre se você não
ingerir uma fonte proteica diariamente? Será que as funções acima citadas vão
deixar de existir? Claro que não, caso contrário em um jejum prolongado ou
exercício de longa duração já estaríamos todos “mortos”, por assim dizer. Em
outras palavras, seu corpo vai buscar aminoácidos (e nitrogênio) de seus
músculos esqueléticos (catabolismo proteico ou proteólise). Também ocorrerão
gliconeogênese (por isso deve ler a Parte 1) a fim de manter a glicemia. De fato,
em qualquer livro de bioquímica básica poderá encontrar um capítulo sobre o
Equilíbrio Dinâmico das Proteínas (“pool”
de aminoácidos), sendo um processo dinâmico de síntese (proteinogênese) e
degradação (proteólise). Enfim, só para deixar claro, aminoácidos são
importantes para inúmeras funções no organismo, mas isso não significa que você
deve ingerir apenas BCAA, percebeu?
– ALEGAÇÃO N.3 –
Fornecimento de energia, especialmente usado antes do
treino ou competição
Os aminoácidos possuem um esqueleto carbônico, que podem ser
usados para a geração de glicose (gliconeogênese) no períodos de jejum
prologando ou exercício de longa duração. No estado alimentado, contudo, os
aminoácidos podem ser usados para a geração de energia (desaminação oxidativa).
OK, no estado realimentado inicial também ocorre gliconeogênese a partir de
aminoácidos (com duração de apenas poucos minutos), porém com o intuito de
formar glicogênio. Todavia, esse processo é um capítulo adicional, pouco discutido,
somente apresentado em tópicos avançados em bioquímica (que poucos conhecem ou
já ouviram falar). Não discutiremos isso aqui, ficando para uma próxima
postagem.
Voltando ao foco, 20% dos aminoácidos da dieta correspondem aos
BCAAs, os quais chegam ao fígado pela veia porta hepática. Todavia, o fígado
metaboliza praticamente todos os aminoácidos, exceto os BCAAs. Quer dizer, 50%
dos aminoácidos que saem do fígado são BCAAs, os quais se direcionam ao músculo
esquelético. STOP, vamos explicar isso melhor para não deixar “buracos”. Os BCAAs
são degradados nos músculos esqueléticos, principalmente, onde encontramos
altas concentrações de BCAT (aminotransferase de cadeia ramificada) e BCKADH (a-cetoácido desidrogenase
de cadeia ramificada). Aliás, lembrei de um estudo interessante sobre o
catabolismo de BCAA em humanos e a distribuição de BCAT/BCKADH: John T.
Brosnan; Margaret E. Brosnan. Branched-Chain Amino Acids: Enzyme and Substrate
Regulation. J. Nutr. 136: 207S-211S,
2006.
Relatando apenas o ponto que interessa, o estudo mostra que os BCAA são
degradados basicamente no tecido muscular esquelético e, em pequenas taxas,
também no tecido adiposo, rins, cérebro, fígado, intestino e coração.
Mas,
professor, os BCAAs podem ser usados como fonte de energia celular? Sim,
claramente que sim. Vou usar o estudo de Brosnan
& Brosnan (2006), supracitado, para explicar melhor. Os BCAAs
(leucina, isoleucina e valina) sofrem transaminação (leia a Parte 1, já falei,
rs) pela BCAT, gerando cetoácidos de cadeia ramificada (KA). Os KAs incluem o
ácido a-cetoisocaproato (KIC), o ácido a-ceto-β-metilvalerato
(KMV) e o ácido a-cetoisovalerato (KIV).
Complicou? Não diga isso, apenas “decore” as siglas KIC, KMV e KIV. Estes, por
sua vez, sofrem descarboxilação oxidativa pela BCKADH,
gerando, agora, isovaleril-CoA (a partir do KIC), metilbutiril-CoA (a partir do
KMV) e isobutiril-CoA (a partir do KIV). Por fim, estes últimos componentes
sofrem desidrogenação, gerando produtos intermediários do ciclo de Krebs (ciclo
dos ácidos tricarboxílicos ou TCA): succinil-CoA e acetil-CoA. O ciclo TCA, por
sua vez, consegue gerar equivalentes de redução (NADH e FADH2), que
serão usados para a geração de energia (ATP, adenosina trifosfato) na cadeia
oxidativa mitocondrial transportadora de elétrons (COMTE) ou, simplesmente,
cadeia respiratória. Resumidamente: os BCAAs podem ser usados para a geração de
energia celular.
Entretanto, é sério que alguém pretende gastar o “suado
dinheiro” comprando BCAA para obter energia (kcal) ao organismo, especialmente
usando como refeição pré-treino? Não seria mais barato (e inteligente) comer
uma maçã, banana, batata-doce ou qualquer carboidratos de seu interesse? AHHH,
mas você é contra o consumo de carboidratos (e acha isso inteligente)? Bem,
está na hora de consultar um bom profissional nutricionista, ler menos “posts” em redes sociais e mais livros,
artigos científicos e diretrizes.
– ALEGAÇÃO N.4 –
BCAA e a hipótese de prevenção da fadiga central
A suplementação de BCAA tem sido vinculada à prevenção da fadiga
central em atletas submetidos ao exercício de longa duração, como é o caso de
maratonistas, triatletas e ultramaratonistas.
Mas, professor, o que seria fadiga central? Aliás, qual
diferença entre fadiga central e periférica?
A fadiga central pode
estar relacionada à hipoglicemia ou relacionada à síntese do neurotransmissor
5-hidroxitriptamina (5-HT), também conhecido como serotonina. A hipoglicemia é
fácil de entender, pois os baixos níveis de glicose no sangue resultam em
neuroglicopenia e seus sintomas clássicos: tontura, sudorese, fraqueza e
desmaio. Em casos graves, a hipoglicemia pode conduzir ao coma e óbito. Neste
sentido, em casos hipoglicêmicos, medidas de emergências devem ser tomadas para
salvar o paciente e evitar maiores complicações neuronais, por exemplo. Já a
fadiga central relacionada ao 5-HT (serotonina) é mais complexo, mas vamos
“mastigar” o assunto. Mas, antes, deixa-me falar da fadiga periférica, embora
não seja o foco deste capítulo.
A fadiga periférica está associados aos
fatores que prejudicam a contração muscular (junção neuromuscular), tais como:
depleção de fosfocreatina (CP), depleção de glicogênio muscular, redução do pH
intramuscular e a hiperlactatemia (aumento do lactato circulante) e déficit de
ATP (aumento do ADP, adenosina difosfato), bem como disfunção do retículo sarcoplasmático,
liberação ou absorção inadequada de cálcio pelo retículo sarcoplasmático,
presença de espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species) e de nitrogênio (RNS, reactive nitrogen species). Enfim, são inúmeros fatores que podem,
inclusive, resultar em desnaturação proteica, redução da sensibilidade da
troponina e competição entre cátios de hidrogênio (H+) e cálcio (Ca2+)
na fibra muscular. Havendo, portanto, um prejuízo no mecanismo contráctil temos
a fadiga periférica.
Na realidade, acredito que ambas as fadigas
(central e periférica) podem estar interligadas e presentes em um atleta que
desistiu de uma competição. Mas, voltando à fadiga central e sua relação com
BCAA, podemos dizer que existe intima relação com hipoglicemia
(onde devemos observar as reservas iniciais de glicogênio hepático do atleta)
e/ou relacionada à síntese de 5-HT (serotonina). A serotonina age sobre a
regulação do ciclo sono-vigília, a modulação da dor e a regulação da atividade
motora. Sendo assim, qualquer fator que altere essa relação pode prejudicar ou
otimizar o desempenho atlético. Sabe-se, portanto, que durante o exercício
prolongado (especialmente em maratonistas, triatletas e ultramaratonistas) ocorre
um aumento na produção de serotonina pela maior disponibilidade do precursor
plasmático, que seria o aminoácido aromático triptofano (TRP). Aliás, usaremos
o termo TRPL (triptofano livre) quando nos referirmos ao aminoácido que atua
como transportador.
A hipótese diz que os BCAAs retardam a fadiga central no exercício
e no esporte prolongado. Como assim? Não é simples, mas é interessante e,
portanto, torna-se simples (rs). Vamos lá.
Um aumento de TRPL está diretamente relacionado ao aumento de
ácidos graxos circulantes (AGL). Em outras palavras, durante o exercício
prolongado ocorre a mobilização dos triglicerídeos (TG) do tecido adiposo
(lipólise), catalisada pela lipase hormônio sensível (LHS). Estes ácidos graxos
serão, posteriormente, usados como fonte energética (β-oxidação dos ácidos
graxos), que é um processo mitocondrial bem complexo (vamos evitar essa
complexidade neste momento). Todavia, tanto o TRPL, quanto os AGL, necessitam
de albumina para serem transportados no plasma. Albumina sérica é uma proteína
produzida pela fígado. Como a lipólise está acelerada nestes exercícios de
longa duração, acaba sobrando TRPL pela indisponibilidade de albumina, que se
ligou aos ácidos graxos. Em suma, o “coitado” do TRP ficou sem albumina para
seu transporte (por isso, TRPL), enquanto que os AGL estão “felizes” da vida
com tanta albumina para seu transporte. Como consequência do fato acima, o TRPL
atravessa a barreira hematoencefálica (BHE) para formar serotonina (5-HT), que
está relacionado à fadiga central e a desistência do atleta frente ao esforço
físico. Legal, bioquimicamente falando, não é? Mas, peraí, cadê os BCAAs nessa
“historinha”? Claro, vamos lá.
Os BCAAs podem competir pelo sítio de ligação do TRPL e,
consequentemente, limitar a entrada do TRPL através da barreira
hematoencefálica (BHE). Aliás, essa competição não se dá apenas com TRP, pois
os BCAAs também competem com Phe (fenilalanina) e tirosina (Tyr). Em outras
palavras, a redução da fadiga central pode ocorrer pelo decréscimo da produção
de serotonina, quando os BCAAs estiverem presentes, o que reduziria a captação
de TRP. AHHH, professor, então não teria nenhuma lógica o uso de BCAA no
pré-treino de musculação (exercício de alta intensidade e curta duração)? O que
você acha “pequeno gafanhoto”?
Além disso, os níveis plasmáticos de BCAAs diminuem
consideravelmente durante o exercício prolongado, decorrente de uma maior
solicitação destes pelos músculos esquelético como fonte de energia (já vimos
isso, leia “Alegação n.3”). Além disso, exceto pela leucina (Leu) e lisina
(Lys), todos os demais aminoácidos podem ser utilizados na gliconeogênese (também
já vimos isso, leia “Parte 1”).
Mas, professor, quais trabalhos
posso confirmar suas palavras? Bah, não confia em mim (rs)? Brincadeira, a
hipótese de redução da fadiga central com a suplementação de BCAA pode ser
encontrada em alguns livros de Nutrição e Atividade Física, por exemplo:
· Ronaldo J. Maughan e Loiuse M. Burke. Nutrição
Esportiva. ArtMed: Porto Alegre, 2004.
· Christine
A. Rosenbloom. Sports Nutrition – A
guide for the professional working with active people. The American Dietetic
Association, Chicago, Illinois, 2000.
Estes são, apenas, alguns livros (antigos)
que tenho em minha estante (já gastei muito dinheiro com livros). Já vou lhe
apresentar estudos novos, mas deixa-me explorar um pouco mais estes livros. No
livro de Ronaldo J. Maughan e Loiuse M. Burke (Nutrição Esportiva.
ArtMed: Porto Alegre, 2004), os autores relatam que a
hipótese de fadiga central e o uso de BCAA surgiu em 1986, pelo pesquisador Dr.
Eric Newsholme. Todavia, embora atraente, a hipótese não foi confirmada quando
se administra BCAA (ou mesmo triptofano, esperando “maior fadiga”) durante o
exercício prolongado. Ao mesmo tempo, como destacado por Christine A. Rosenbloom (Sports Nutrition – A guide for
the professional working with active people. The American Dietetic Association,
Chicago, Illinois, 2000), os estudos sobre
BCAA e fadiga são equivocados e limitados. Quer dizer, alguns estudos (entre
1992 e 1995) traziam o uso de BCAAs concomitantemente com bebidas glicídicas,
que poderiam facilmente “mascarar” os possíveis benefícios atribuídos aos
BCAAs. Ainda, altas doses de BCAAs durante o esforço físico são lentamente
absorvidos pelo trato gastrintestinal (TGI), não justificando seu uso (ou abuso).
Em outros livros, você não
encontrará explicações sobre a suplementação de BCAA, mas, sim, a descrição da
via metabólica em que os BCAAs aparecem durante o exercício. Já Nancy Clark
(1998), não faz menção alguma sobre os BCAAs no esporte. Estes livros são
descritos abaixo (sim, tenho todos eles):
· Ira
Wolinsky e James F. Hickson Jr. Nutrição
no Exercício e no Esporte. São Paulo: Editora Roca, 1996.
· William
D. McArdle, Frank I. Katch e Victor L. Katch. Nutrição para o Esporte e o Exercício. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2014.
· Nancy
Clark. Guia de Nutrição Desportiva.
Porto Alegre: ArtMed, 1998.
Existem livros, contudo, que
falam abertamente sobre a suplementação de BCAA no esporte, embora com foco na hipertrofia
muscular (que discutiremos mais adiante) e uma abordagem breve e superficial do
BCAA na fadiga. São eles (novamente, tenho todos os livros citados):
· Frédéric
Delavier e Michael Gundill. Guia de
Suplementos para Atletas. São Paulo: Malone, 2009.
· Carlos
Alberto Werutsky. Nutrologia Esportiva.
Porto Alegre: AGE editora, 2013.
Enfim, se os BCAAs não servem
para “nada” ou são “inúteis” (e não estou dizendo que você deveria compra-los e
usa-los, não faça confusão), então como existem livros abordando o assunto?
AHHH, mas tem livro “para tudo”, não é mesmo? Perfeito, mas será que temos
estudos científicos sobre o assunto? HUMMM, vejamos.
Recapitulando, através de uma
pergunta:
Existem
estudos científicos (atuais) sobre a atividade serotoninérgica (relativo a serotonina),
BCAA e a redução da fadiga central?
Inicialmente, vejamos alguns estudos mais antigos:
· Eric A.
Newsholme; Eva Blomstrand. Branched-chain amino acids and central fatigue. J Nutr 136(1 Suppl): 274S-6S, 2006.
Neste trabalho, descreve-se a hipótese de fadiga central pelo
aumento do TRP e administração de BCAA justamente para reduzir a fadiga. Também
é elucidado as causas da fadiga periférica (depleção de glicogênio e
fosfocreatina, aumento de lactato e H+) e fadiga central
(hipoglicemia, aumento do TRP com decréscimo de BCAA). Mas, obviamente,
descreve a hipótese e comprova exatamente a mesma.
· Eva
Blomstrand. A role for branched-chain amino acids in reducing central fatigue. J Nutr 136(2):544S-547S, 2006.
Já neste estudo, temos praticamente a mesma explicação. Quer
dizer, um aumento de TRP no cérebro seria responsável pela fadiga. De fato,
ocorre competição de TRP com BCAA pela BHE (barreira hematoencefálica). Além
disso, explica a presença de TRP livre (TRPL), devido desvio de albumina sérica
para AGL (ácidos graxos livres). Ou seja, já viu isso comigo anteriormente.
· Romain
Meeusen e Phil Watson. Amino acids and the brain: do they play a role in
"central fatigue"? Int J Sport
Nutr Exerc Metab 17 Suppl: S37-46, 2007.
Em 2007, este estudo descreve alguns neurotransmissores
(serotonina, dopamina e noradrenalina) envolvido na fadiga induzida pelo
exercício prolongado. Além disso, as taxas de síntese de 5-HT (serotonina)
depende de TRP (triptofano) e TYR (tirosina) e, estes, competem com BCAA pela
BHE (barreira hematoencefálica). Em suma, não há dúvidas que estes aminoácidos
(TRP e TYR) estejam envolvidos na fadiga através da geração de 5-HT. Todavia,
mas a manipulação de BCAA a fim de reverter a fadiga é controversa e,
inclusive, malsucedida.
· Sujean
Choi et al. Oral branched-chain amino acid supplements that reduce brain
serotonin during exercise in rats also lower brain catecholamines. 45(5):
1133-42, 2013.
Por fim, o estudo, publicado em 2013, descreve o mecanismo do
TRP/BCAA e fadiga, como já descrito inúmeras vezes aqui. Sendo assim, vamos
direto as conclusões: a suplementação com BCAA sobre a redução de 5-HT
(serotonina) cerebral em ratos. O exercício físico aumenta a liberação de 5-HT
(serotonina) no cérebro, mas em humanos, o uso de BCAA na redução da fadiga
permanece controverso. Além disso, o uso de BCAA pode diminuir as catecolaminas
durante o exercício que, segundo estudo, pode reduzir o desempenho atlético (um
aspecto não discutido anteriormente).
Mas, professor, não tem estudos mais novos ou atuais? Claro,
queria apenas apresentar um rastreamento dos acontecimentos. Vejamos, se você
inserir os descritores “branched-chain
amino acids and central fatigue” (aminoácidos de cadeia ramificada e fadiga
central) aparecerá, nada mais, nada menos, que 1277 estudos científicos na
pesquisa. Neste sentido, vamos filtrar melhor a informação. Para tanto, vamos
buscar estudos apenas nos últimos 5 anos e acrescentar o descritor “serotonin” (serotonina). O que temos
agora? Temos 205 estudos científicos (lembre-se: estes descritores foram
acrescidos no dia 30/09/2021, onde certamente amanhã e depois os números já
serão diferentes). Todavia, alguns estudos não envolvem apenas BCAA, mas, sim,
BCAA combinado com carboidrato, citrulina, arginina, ornitina, glutamina, etc. Estes,
portanto, serão excluídos em nossa discussão. Com base nisso, vejamos alguns
que sobraram e cumprem nosso interesse de pesquisa.
· Mohammad Fayiz AbuMoh'd et al. Effects of Oral Branched‐Chain Amino Acids (BCAAs) Intake on Muscular and Central Fatigue
During an Incremental Exercise. Journal
of Human Kinetics 72: 69-78, 2020.
Trata-se
de um ensaio randomizado, duplo-cego, controlado por placebo. O protocolo deste
estudo consistia do uso de BCAA (20 g/dia, diluído em água) versus placebo em
um período de 14 dias. Para tanto, foram selecionados 16 corredores de longa
distância, do sexo masculino, adultos, saudáveis. Os indivíduos deveriam se
abster de bebidas energéticas e qualquer substância ergogênica durante o
experimento.
O
estudo visava investigar os efeitos da ingestão de BCAAs orais na fadiga
muscular. Para tanto, foram analisando creatina fostoquinase (CPK) e mioglobina,
bem como serotonina (5-HT), durante o exercício e o tempo de exaustão. Os
participantes recebiam os BCAAs (20 g/dia) ou placebo cerca de 1 hora antes de
realizar o esforço físico em esteira (velocidade: 8 km/h e aumentando a cada 5
minutos até a exaustão).
E
quais foram os resultados?
Primeiro,
os níveis de serotonina eram menores no grupo suplementado com BCAA quando
comparado ao placebo, sugerindo que BCAA pode ter limitado a entrada de
triptofano (TRP) no cérebro.
Segundo,
os níveis de CPK eram maiores no grupo BCAA do que placebo, sugerindo que o
treinamento até a fadiga para alterar o marcador bioquímico de lesão muscular,
onde BCAA não teve qualquer efeitos “protetor” sobre o fato.
Terceiro,
não foi observado qualquer diferença significativa para mioglobina entre os
grupos.
Quarto,
o tempo de exaustão foi maior no grupo BCAA do que placebo. Explicando de outra
forma, os BCAAS permitiram a manutenção do esforço físico exaustivo, retardado
a fadiga.
E
quais foram as conclusões dos autores?
Os
autores concluíram que a ingestão oral de BCAA (20 g/dia), cerca de 1h antes do
exercício, reduziu os níveis de serotonina e retardou a fadiga. De acordo com
os autores, estes dados são consistentes com os antigos estudos sobre a
hipótese de fadiga do BCAA (lembram dos estudos do Dr.
Eric Newsholme, em 1986, será que ele tinha razão?). O estudo também
descreve as vias metabólicas do TRPL e BCAA, mas isso você já viu comigo no
início do “textão”, portanto, não vou repetir. Cabe destacar que o estudo não
mediu quaisquer hormônios, os quais poderiam ter implicações importantes na
fadiga, por exemplo, prolactina, estrógenos, testosterona, e triiodotironina (T3)
e tiroxina (T4).
E
você, professor, o que acha disso?
Buenas,
embora seja um estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo
(portanto, alto grau de evidência científica), a amostra é pequena e o período
de estudo é curto (cabe lembrar, também, que estudos deste tipo são onerosos).
Além disso, foram avaliados CPK e mioglobina, que nos remete para avaliação de
dano muscular e não exatamente fadiga central (embora o estudo também descreve
fadiga periférica). Talvez seria interessante avaliar a relação serotonina e
quinureninas (explicarei mais adiante). Certamente avaliar alguns hormônios
também seria fantástico, especialmente porque o estudo usou apenas BCAA versus
placebo.
Vejamos,
agora, outro estudo:
· L.M.S. Cordeiro et al. Physical exercise-induced fatigue: the
role of serotonergic and dopaminergic systems. Brazilian Journal of Medical and Biological Research 50(12): e6432,
2017.
Trata-se de um estudo de revisão sobre a serotonina
(5-HT) e a dopamina (DA) cerebral, que são neurotransmissores envolvidos na fadiga.
A fadiga, por sua vez, leva a redução da intensidade do exercício ou, até
mesmo, sua interrupção. Segundo os autores, em experimentos com roedores
nota-se claramente que a serotonina e dopamina (via serotoninérgica e
dopaminérgica) influenciam no desempenho dos animais, embora os experimentos
com seres humanos são conflitantes. O estudo apresenta a definição de fadiga
central e periférica que, aliás, já mencionei no início da “Alegação n.4”. Essa
descrição, por sua vez, é similar a minha e, portanto, não há necessidade de
repetição. Enfim, segundo autores, parece plausível estabelecer uma relação
entre fadiga (central e periférica) com exercício físico prolongado ou, até
mesmo, exercício sob condições extremas (por exemplo, estresse térmico
ambiental). Contudo, errei na seleção deste estudo, pois não faz qualquer menção
sobre os BCAAs na fadiga. Por outro lado, a via serotoninérgica e dopaminérgica
na fadiga é detalhada, portanto, vale a pena a leitura.
Sendo assim, vejamos outro estudo
recente (2020), descrevendo o papel do TRP (triptofano) na fadiga.
· Masatoshi
Yamashita. Potential Role of Neuroactive Tryptophan Metabolites in Central
Fatigue: Establishment of the Fatigue Circuit. International Journal of
Tryptophan Research 13: 1-15, 2020.
AHHH,
este estudo de revisão é muito legal (com figuras muito legais), mas
gigantesco. Portanto, vou trazer apenas os tópicos mais importantes para nossa
discussão. A fadiga central leva à redução da capacidade de realizar tarefas
mentais, tanto na vida cotidiana, quanto durante o esforço físico. O mecanismo
neuroquímico envolve o TRP, onde este aminoácido seria captado por determinadas
regiões cerebrais, após atravessar a barreira hematoencefálica (BHE), aumentando
a produção de serotonina e, portanto, causando fadiga induzida pelo exercício. Quer
dizer, já expliquei isso anteriormente, então, tenho certeza que você está
“ligado”.
De
acordo com os autores, a serotonina (produzida a partir do TRP) pode ser
liberada de forma transitória após 30 minutos de corrida em esteira, ou seja,
você não precisa ser uma maratonista ou triatleta para experimentar uma fadiga
mediada por serotonina (já pensou nisso?). Essa serotonina, contudo, seria
metabolizada pela via da quinurenina. Sim, chegamos finalmente neste “senhor”
ou “senhora” com nome estranho (rs). A quinurenina, para facilitar o
entendimento, é um metabólito do aminoácido TRP usado na produção de niacina
(vitamina B3). Dessa forma, quinurenina e o ácido quinurínico no cérebro, pelo
menos em roedores, estão implicados na fadiga central. Aliás, em mamíferos, apenas
5% do TRP é catabolizado através da via da serotonina, pois a grande maioria do
TRP é metabolizada na via da quinurerina. Percebeu a importância disso? Vejam,
talvez toda fadiga induzida pelo exercício, mencionada até agora, dependa da
quinurenina e não exatamente da serotonina. Este é um assunto, do ponto de vista
bioquímico, fascinante. Todavia, não posso entrar em maiores detalhes para não
prejudicar o foco na fadiga central (e não cansar você, caro leitor). Sendo
assim, vamos aos principais pontos:
Primeiro,
está claro que o TRP/serotonina e/ou TRP/quinurenina estão envolvidos na
fadiga. Em estudos com animais e seres humanos, a ingestão excessiva de TRP
conduziu a sensação de fadiga e sonolência.
Segundo,
a fadiga não depende apenas das vias TRP/serotonina e TRP/quinurenina, mas,
sim, de citocinas pró-inflamatórias (por exemplo, interleucina-1β, IL-1β).
Terceiro,
a fadiga é facilitada pela captação de aminoácidos, como TRP, através da
barreira hematoencefálica (BHE). No exercício físico prolongado há um aumento
nas concentrações de TRP livre (TRPL), devido desvio de albumina para os ácidos
graxos livres (AGL). Sendo assim, cabe a pergunta: qualquer fator que reduza
essa captação de TRP, como pela competição com os BCAAs na BHE, poderiam
reduzir a sensação de fadiga? HUMMM, vejamos o próximo comentário.
Quarto,
os pacientes com baixas concentrações de BCAA ou que apresentam mutação de BCKADH podem ter a via TRP/serotonina e TRP/quinurenina
exacerbada, favorecendo a fadiga e distúrbios de neurodesenvolvimento. Em
outras palavras, um desequilíbrio entre aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA)
e aromáticos (TRP, mas possivelmente também Phe e Tyr) pode estar associado a
fadiga. Todavia, isso se aplica aos esportistas e atletas, teoricamente,
saudáveis? A resposta é: não sei.
Quinto,
segundo os autores, a suplementação de BCAA consegue aliviar a fadiga induzida
pela exercício e melhorar, assim, o desempenho atlético. Sugere-se que o BCAA
consegue inibir a captação intracerebral de TRP advinda da circulação. Em
animais, a suplementação com BCAA reduz o ácido quinurínico no cérebro.
E, para finalizar, o que será que diz o International Society of
Sports Nutrition (ISSN), que
traz uma “gigantesca” revisão sobre diversos assuntos relacionados a nutrição
esportiva?
· Chad M.
Kerksick et al. ISSN exercise & sports nutrition review update: research
& recommendations. J Int Soc Sports
Nutr. 15: 38, 2018.
Essa
é, justamente, uma revisão atualizada do ISSN que todos os interessados em nutrição
esportiva deveriam ler (leiam, só tem 57 páginas). Vamos, direto, aos pontos de
interesse aqui:
· Entre os atletas, a
recomendação de proteína é cerca de 2 vezes a RDA (ou seja, recomendação de 1,4
a 1,8 g/kg/dia). Aliás, essa é a recomendação para a maioria dos indivíduos que
se exercitam, segundo os autores. Doses ainda maiores (acima de 3,0 g/kg/dia)
podem ser necessárias em alguns casos (esportes de longa duração, por exemplo);
· Quando as doses de
proteína foram elevadas/agudas, devem ser acompanhadas por 700-3000 mg de
leucina, além de um equilíbrio para aminoácidos essenciais;
· A suplementação do BCAA
tem sido relatada para diminuir a degradação da proteína induzida pelo
exercício e/ou a liberação de enzimas musculares (um indicador de dano muscular),
ou seja, um possível papel “anti-catabólico”. Todavia, esse é um assunto para a
“Parte 3”, em breve;
· A
ingestão de BCAA, durante os exercícios prolongados, tem sido sugerida como um
recurso para reduzir a percepção psicológica da fadiga (fadiga central). Quando
BCAA é combinado com outros suplementos (por exemplo, ornitina), observa-se
melhorias em relação à fadiga. Todavia, o mesmo não é obtido quando BCAA é administrado
isoladamente. Segundo INSS (2018), a lógica existe para apoiar um desfecho
ergogênico do BCAA, porém são necessários mais estudos para sua comprovação.
Com
base nisso, te pergunto: os BCAAs não servem para “nada”? São “úteis” ou “inúteis”?
A conclusão deve ser de VOCÊ, caro leitor. O importante, contudo, é perceber a
profundidade dos assuntos que não são vistos com essa “profundidade” nas mídias
sociais comuns (Facebook ou Instagram). Aguarde a
“Parte 3” (Final), onde falaremos do BCAA na hipertrofia muscular e na atenuação
do dano muscular induzido pelo treinamento (EIMD, do inglês “exercise-induced muscle damage”).
Nota: Seja gentil, gostou, compartilhe, desde que citado a fonte
do “querido” professor aqui.