terça-feira, 1 de julho de 2025

PSEUDOCIÊNCIA E USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

 

PSEUDOCIÊNCIA E USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:

UMA BREVE REFLEXÃO 


JOELSO PERALTA

Nutricionista, Professor, Palestrante.

Mestre em Medicina: Ciências Médicas – UFRGS.

PhD em Ciências Biológicas: Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.


Olá pessoal, tudo bem?

Em uma prova para a disciplina de ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS NA NUTRIÇÃO (“O pavor dos alunos”, rsrs), do curso de Nutrição em uma Instituição de Ensino Superior (IES), apresentei o texto abaixo e fiz a seguinte pergunta: qual sua opinião sobre a desinformação nas mídias sociais, especialmente na Era da Inteligência Artificial (IA)? Deixa-me apresentar a questão:

Leia o trecho abaixo, extraído de uma reportagem da BBC News Brasil, publicada em 2019 (https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-49497989):

Promessas falsas de cura do câncer geram milhões de visualizações e lucro no YouTube.

- Oi, estou com um parente com metástase óssea, você pode me receitar esse remédio?

- Sua irmã, de 44 anos, foi diagnosticada com câncer de mama e está em seu terceiro tratamento de quimioterapia depois que o câncer se espalhou.

Após alguns minutos de conversa, surge a receita para curar o câncer da irmã:

- Tenho um remédio caseiro contra o câncer, tumores e outros: o melão-de-são-caetano, planta de origem asiática.

O “vendedor de ilusões” no vídeo continua:

- De 80% a 90% das células de câncer são desfeitas com melão-de-são-caetano.

 

Segundo reportagem, o vídeo original no YouTube é de 2016 e teve 142 mil visualizações na época, além de inúmeros pedidos de entrega do melão curandeiro. Investigações mostraram que as falsas curas do câncer estavam em 10 idiomas e o vídeo foi monetizado, ou seja, os criadores e a própria plataforma faturou alto com a desinformação (o autor do vídeo colocou o mesmo no modo privado após reportagem). Atualmente, existem vários vídeos no canal do YouTube sobre o melão-de-são-caetano (“Sim, o melão ficou famoso”), onde alguns são apelativos e levantam possíveis benefícios do melão em diferentes doenças (câncer, diabetes, gastrite e AIDS) e, outros, prometem emagrecimento. Claro, também temos especialistas desmascarando as inverdades e desinformações associadas ao melão.

 

Contudo, o que diz a ciência?

Em busca rápida no PubMed, com filtro de 10 anos, observamos não existir nenhum ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado por placebo (portanto, elevado grau de evidência científica), sobre o melão-de-são-caetano e câncer. O que existe são alguns estudos in vitro e com animais, que não podem ser extrapolados para seres humanos. O fato é: a natureza fornece uma série de plantas e frutas com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias (o que é fantástico e deve ser estudado), mas isso não significa que “cura o câncer”. Aliás, câncer é o nome genérico para mais de 100 doenças que tem em comum o crescimento descontrolado e acelerado de células (meus alunos tiveram essa aula e falarei disso em outra matéria aqui). Não existe somente um tipo de célula em nosso organismo e, dessa forma, não existe somente um tipo de câncer que poderia ter a “cura” por meio de um único e isolado alimento. Seria muita inocência (ou ignorância) você acreditar nisso, mas infelizmente os leigos caem nestas “armadilhas”, pois estão fragilizadas com seus entes queridos acometidos por um câncer, por vezes, potencialmente fatal.

 

O recado aqui deve ser bem direto:

A desinformação é extremamente perigosa e poucos se dão conta disso! Muitas pessoas abandonam o tratamento convencional do câncer na busca de alimentos e/ou suplementos milagrosos. O fato é: existe uma preocupação extrema com a saúde e a cura de doenças, onde somos constantemente bombardeados com informações (e desinformações) de dietas milagrosas, suplementos mágicos, exercícios mirabolantes, enfim, muita PSEUDOCIÊNCIA.

Pseudociência, como o próprio nome sugere, são afirmativas ou práticas não científicas, muitas vezes baseadas em opinião pessoal, que misturam discursos aparentemente técnico-científicos, mas é uma “falsa ciência”. Em outras palavras, os pseudocientistas estabelecem um discurso sem qualquer embasamento científico, pois não aplicam (ou desconhecem) os métodos científicos. Outros, por sua vez, “enganam muito bem”, pois conhecem os métodos científicos, mas estabelecem falácias lógicas não testadas pela ciência e, na maioria dos casos, usando discursos vagos, exagerados, improváveis, apelativos, milagrosos, espirituais, equivocados, ou melhor, completamente errôneos.   

A fronteira entre a ciência e a pseudociência é muita estreita quando você é leigo em ciências da saúde, ou seja, pode ser facilmente enganado. Essas pessoas, os pseudocientistas, sabem disso. É importante que você reconheça dois tipos de indivíduos nas mídias sociais: o picareta e o charlatão. O PICARETA é uma pessoa desonesta e de má índole, enquanto que o CHARLATÃO é uma pessoa dita curandeiro e, muitas vezes, sabe perfeitamente que está enganando. Ambos têm conotação negativa, onde o charlatão geralmente se apresenta como especialista e vende um “tratamento milagroso”, sem comprovação científica, alegando muitas vezes “que a indústria farmacêutica está escondendo de você a cura do câncer”. Calma, as coisas podem piorar: existem profissionais de saúde “leigos” em relação à ciência (“Sim, isso existe”), que são “charlatães de jaleco branco” (médicos, nutricionistas, biomédicos, farmacêuticos, fisioterapeutas, etc.) e enganam os fragilizados por fama e fortuna (“Sim, isso também existe”). Isso tem um impacto negativo gigantesco na sociedade, pois um “charlatão da saúde” usa seu “diploma” para exercer autoridade e, afinal, quem iria duvidar de uma “autoridade”?

 

Com base nisso, vamos retomar a pergunta:

Qual sua opinião sobre a desinformação nas mídias sociais, especialmente na Era da Inteligência Artificial (IA)?

Na prova dos alunos, como relatado acima, obtive várias respostas interessantes e, agora, faço um breve REFLEXÃO sobre este assunto. Vem comigo, pois vou “ABRIR SUA MENTE” em duas etapas:

 

ETAPA 1:

A Inteligência Artificial (IA) ou Artificial Intelligence (AI) pode ser uma ferramenta útil para “quem sabe usar o cérebro”, digamos assim. Deixa-me explicar algumas vantagens:

IA pode analisar grandes conjuntos de dados em pouquíssimo período de tempo, trazendo os fatores mais relevantes para você usar e tomar uma decisão mais assertiva na sua vida e na vida de seus pacientes (se for um profissional de saúde). Uso do ChatGPT, por exemplo, ajuda a concluir tarefas 60% mais rápido do que o usual sem seu auxílio. IA também pode ser usado na educação, expandindo seu conhecimento devido a facilidade de acesso aos conteúdos de forma rápida e eficaz. É uma baita ferramenta e, em princípio, não parece lógica interromper o avanço da ciência e tecnologia usando IA.

 

Porém, deixa-me pensar:

Um estudo recente (https://doi.org/10.48550/arXiv.2506.08872), publicado em junho de 2025, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos Estados Unidos da América (EUA), avaliou o cérebro de 54 voluntários usando escaneamento com eletroencefalograma (EEG) por 4 meses. Os voluntários foram divididos em três grupos: 1) escrever redações sem auxílio de qualquer ferramenta (sem internet, sem ChatGPT); 2) escrever redações com acesso ao Google, mas sem acesso ao ChatGPT; e 3) escrever redações com acesso apenas ao ChatGPT. Observe as conclusões dos autores, resumidamente:

1.    A conectividade neural reduziu 47% em quem usou recurso de IA;

2.    Dos voluntários, 83,3% não conseguiam lembrar dos textos que escreveram minutos antes usando recursos de IA;

3.    Quem usa recurso de IA provavelmente tem menor capacidade de lembrar o que escreveu, pois delegou essa função ao IA;

4.    As pessoas podem ficar dependentes de IA para tarefas simples, como escrever e lembrar dos próprios textos. Ou seja, sugere-se atrofia cognitiva;

5.    Usuários de IA têm queda na capacidade de pensamento criativo e crítico. Ou seja, novamente estamos atrofiando nosso cérebro porque verdadeiramente não estamos usando-o.

 

Assustador, não é? Porém, penso eu:

1.    Não me parece que proibir IA seja a solução da Humanidade para manter o cérebro funcional, mas ensinar a usar corretamente a ferramenta;

2.    No passado, queriam proibir o uso da calculadora, acreditando que iria atrofiar nosso cérebro. Hoje sabemos quanto útil é uma calculadora ou mesmo Excel no computador para acelerar os processos. Ao mesmo tempo, conhecemos pessoas que não sabem somar 2,58 + 4,17 em uma folha de papel sem o uso de uma calculadora. Conhecemos pessoas que não sabem devolver o troco em uma compra realizada no supermercado, que custou 8,45 reais e ele deu 10 reais, sem o uso de uma calculadora;

3.    Talvez seja interessante usar seu cérebro antes de recorrer ao Google ou IA para produzir textos ou pequenos cálculos matemáticos;

4.    Lembro-me de uma frase de um autor anônimo: “Sua mente é como um paraquedas, só funciona se estiver aberta”.

 

O estudo do MIT tem limitações e eu não poderia deixar de falar disso:

1.   A amostra é pequena e pouco representativa do universo de pessoas que usam IA;

2.  O contexto e a tarefa realizada são muito específicos, ou seja, apenas escrever uma redação sem testar outras capacidades cerebrais;

3.  A avaliação mostra um efeito agudo, mas não crônica. Será que a longo prazo vamos atrofiar o cérebro?;

4.  O EEG (eletroencefalograma) pode não ser a melhor estratégia de avaliação cerebral aqui e não foram dosados biomarcadores cerebrais e de sangue;

5.  Enfim, não podemos extrapolar os resultados deste estudo. Ao mesmo tempo, você não deveria ignorar essa reflexão crítica dos autores.

 

Deixa-me concluir dizendo:

O ser humano tem uma preguiça inata para várias coisas (rsrs), vejam:

Temos preguiça para caminhar até a televisão e criamos o controle remoto. O controle remoto facilita nossa vida? Claro. Estamos mais sedentários? Claro também.

Temos uma preguiça de andar pelo shopping e optamos pela escada rolante. Ou seja, se já está passeando, porque não continua caminhando?

Usamos tele pizza ao invés de elaborar uma bela pizza caseira com pais e filhos, pois temos essa preguiça inata. O que pensa disso?

Passamos o dia pendurados no smartphone olhando bobagens sobre saúde e nutrição ao invés de abrir um bom livro de bioquímica ou fisiologia para estudar. Não é mesmo prezado(a) aluno(a), rsrs?

Estou fazendo apenas uma brincadeira (ou não), pois o fato é: o problema está na tecnologia (neste caso o uso do IA) ou no ser humano (que é um tanto preguiçoso)?

Já falei das vantagens do IA no início do texto, então agora deixa-me resumir algumas desvantagens do uso (ou abuso) do IA:

1.    Risco de desumanização no processo de ensino-aprendizagem;

2.    Redução do pensamento crítico e, obviamente, da autonomia intelectual;

3. Excesso de confiança em respostas automáticas que, nem sempre, são verdadeiras;

4.    IA não pode tomar decisões por você, pois é apenas uma ferramenta apenas;

5.   IA não sabe interpretar um estudo científico, ele apenas traduz o que os autores estão descrevendo (sejam elas conclusões boas ou ruins; falsas ou verdadeiras).

 

Existe outra preocupação com o uso (abuso) de IA:

IA está produzindo, atualmente, vídeos hiper-realistas e será praticamente impossível diferenciar uma pessoa “real” de outra fictícia, imaginária, irreal, inexistente, artificial em um futuro muito próximo. IA já consegue, por exemplo, imitar as imperfeições humanas em tarefas cotidianas para deixar ainda mais realista seus vídeos. Vou te dar um exemplo:

Eu não estou usando IA para escrever este texto (gosto realmente de “usar e abusar” do meu cérebro), mas eu poderia solicitar ao IA escrever um texto como se fosse Joelso Peralta. Ou melhor, eu poderia facilmente pedir para o famoso ator Leonardo DiCaprio para falar esse texto em vídeo (e até usando minha voz) e você ficaria abismado. Ou, pior, alguém poderia usar minha imagem em um vídeo hiper-realista para falar que “Leite é inflamatório e causa autismo” ou “Melão-de-são-caetano cura qualquer tipo de câncer”. Já imaginaram EU falando essas bizarrices, que poderiam ser compartilhadas no grupo de WhatsApp da família (rsrs)? Pois é, você consegue diferenciar um “EU real” de um “EU irreal”? E sua mãe, de 60 anos (que não nasceu na Era do ChatGPT) consegue diferenciar o “real” e “irreal”? Seu avô, um idoso muito gente boa de 89 anos, que ainda faz cálculos matemáticos “só usando o cérebro”, consegue diferenciar o “real” e “irreal”? Sendo assim, como diferenciar o FATO e o FAKE?

 

ETAPA 2:

Voltamos ao melão-de-são-caetano, que cura o câncer, teve 142 mil visualizações, foi monetizado e distribuído em vários idiomas. Por que as pessoas caem facilmente nestas informações pseudocientíficas? Existem inúmeras explicações, mas gosto dessa aqui:

Muitas decisões que tomamos são influenciadas por terceiros e, por vezes, nem percebemos. Nas áreas de saúde temos uma dieta mirabolante, um treino inovador jamais documentado, uma suplementação milagrosa, uma medicação revolucionária que estavam escondendo de você e por aí vai (...). Todo esse consumo é influenciado por terceiros. Essa influência externa, quando promovida por uma “pessoa de autoridade” (médico, nutricionista, profissional de educação física, biomédico, farmacêutico, etc.) acaba influenciando mais facilmente uma tomada de decisão, afinal tem respaldo de um “diploma” (embora sem respaldo científico).

Em 2019, por exemplo, o Jornal Britânico The Independent (www.independent.co.uk), publicou uma matéria realizada pela Universidade de Glasgow, na Escócia, onde a maioria dos Blogs de Saúde e Fitness não são fontes seguras de informações quanto a temática de saúde, nutrição e composição corporal (Fonte: Christina Sabbagh et al. Analysing Credibility of UK Social Media Influencers’ Weight-Management Blogs: A Pilot Study. International Journal of Enviromental Research and Public Health 17: 9022, 2020). Esse achado não se limita aos blogs, mas pensem no Facebook, Instagram, Telegram, YouTube e inúmeras outras mídias digitais, inclusive grupos de WhatsApp. O fato é: todos agora querem ser “influenciadores digitais”, mas quem realmente tem conhecimento para repassar informações de saúde? Aliás, vejam os títulos de algumas matérias facilmente encontradas para leitura:

 

“Sonho de ser influenciador digital leva jovens a abandonarem os estudos: escritora de 14 anos faz alerta sobre leitura”.

 

“Estudar pra quê? Os jovens que sonham em virar influencers”.

 

“O risco de seguir os influencers em vez de fazer faculdade”.

 

“A Ilusão do Instagram: por que seguir influencers não é a vida real”.

 

“Jovens influenciadores promovem a ideia de que estudar não traz riqueza”.

 

E por aí vai (...).


Eu poderia continuar essa discussão, mas existe outro problema atual: as pessoas “não têm saco” para leitura de um grande texto. Aliás, quantos livros você leu este ano? Quantos livros leu no ano passado? Se você é estudante em cursos das áreas de saúde, quantos livros você leu ou apenas baseia sua experiência acadêmica nos slides de seu professor? (Nota: meus slides são ótimos, rsrs, mas você entendeu o recado). Enfim, se você chegou até aqui: meus Parabéns!   

 

Agora, vou dar algumas dicas valiosas:

 

1.    LEIA A MATÉRIA DE INTERESSE OU ARTIGO CIENTÍFICO NA ÍNTEGRA, não dependa do cérebro dos outros para tirar suas conclusões. Muitas pessoas repassam informações incompletas (ou falsas) para reforçar suas próprias convicções (cherry picking), que podem ser verdadeiras ou falsas;

2. SIGA E APRENDA COM PROFISSIONAIS DE SAÚDE HONESTOS E DE CONFIANÇA. Se você não tem tempo de leitura ou lhe faltam habilidades para ler e interpretar os estudos científicos, vá atrás de quem sabe. Para tanto, observe seu currículo; observe sua trajetória profissional; observe seu caráter;

3.   LIGUE SEU “DESCONFIÔMETRO ORGÂNICO”. Exemplo: você compraria um automóvel pelo grupo de WhatsApp de um condomínio, onde aparece uma foto linda do veículo novinho, baixíssima quilometragem, preço muito abaixo da tabela FIBE, tendo como proprietário apenas uma senhorinha idosa que passeava somente nos finais de semana nos últimos 5 anos? E, para fechar negócio, você deveria depositar, urgentemente, 70% do valor antecipadamente a fim de não perder a promoção? Faça isso por meio do PIX e receba gratuitamente um protetor solar de última tecnologia feito pela NASA, assim pode passear em seu carro novo sem risco de câncer de pele, complementa o vendedor. Certamente “Quando a esmola é demais, o santo desconfia” (rsrs) e você não vai cair nessa. Então porque você não liga seu “desconfiômetro” natural ao olhar notícias de saúde (e outras) nas mídias sociais? Nosso organismo tem uma espécie de “pisca-alerta” para essas coisas (bobagens, bizarrices, enganações), mas você parece que deixou de lado;

4.   NÃO CONFUNDA APARÊNCIA COM COMPETÊNCIA na hora de contratar um nutricionista, profissional de educação física, médico, etc. Quem disse que “barriga tanquinho” é sinônimo de “cérebro altamente evoluído” ou “inteligência super-humana”? (Nota: nem existe inteligência super-humana, rsrs). Quem disse que uma pessoa usando de marca, reconhecida e altamente respeitada, de grande estilo e qualidade, dentro de um confortável automóvel recém lançado no mercado, é sinônimo de sucesso? Cuidado: as aparências nas mídias sociais enganam e são facilmente editadas, especialmente na Era das IAs.

 

Por fim, deixo o pensamento de Martin Luther King:

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.