terça-feira, 1 de julho de 2025

PSEUDOCIÊNCIA E USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

 

PSEUDOCIÊNCIA E USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:

UMA BREVE REFLEXÃO 


JOELSO PERALTA

Nutricionista, Professor, Palestrante.

Mestre em Medicina: Ciências Médicas – UFRGS.

PhD em Ciências Biológicas: Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.


Olá pessoal, tudo bem?

Em uma prova para a disciplina de ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS NA NUTRIÇÃO (“O pavor dos alunos”, rsrs), do curso de Nutrição em uma Instituição de Ensino Superior (IES), apresentei o texto abaixo e fiz a seguinte pergunta: qual sua opinião sobre a desinformação nas mídias sociais, especialmente na Era da Inteligência Artificial (IA)? Deixa-me apresentar a questão:

Leia o trecho abaixo, extraído de uma reportagem da BBC News Brasil, publicada em 2019 (https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-49497989):

Promessas falsas de cura do câncer geram milhões de visualizações e lucro no YouTube.

- Oi, estou com um parente com metástase óssea, você pode me receitar esse remédio?

- Sua irmã, de 44 anos, foi diagnosticada com câncer de mama e está em seu terceiro tratamento de quimioterapia depois que o câncer se espalhou.

Após alguns minutos de conversa, surge a receita para curar o câncer da irmã:

- Tenho um remédio caseiro contra o câncer, tumores e outros: o melão-de-são-caetano, planta de origem asiática.

O “vendedor de ilusões” no vídeo continua:

- De 80% a 90% das células de câncer são desfeitas com melão-de-são-caetano.

 

Segundo reportagem, o vídeo original no YouTube é de 2016 e teve 142 mil visualizações na época, além de inúmeros pedidos de entrega do melão curandeiro. Investigações mostraram que as falsas curas do câncer estavam em 10 idiomas e o vídeo foi monetizado, ou seja, os criadores e a própria plataforma faturou alto com a desinformação (o autor do vídeo colocou o mesmo no modo privado após reportagem). Atualmente, existem vários vídeos no canal do YouTube sobre o melão-de-são-caetano (“Sim, o melão ficou famoso”), onde alguns são apelativos e levantam possíveis benefícios do melão em diferentes doenças (câncer, diabetes, gastrite e AIDS) e, outros, prometem emagrecimento. Claro, também temos especialistas desmascarando as inverdades e desinformações associadas ao melão.

 

Contudo, o que diz a ciência?

Em busca rápida no PubMed, com filtro de 10 anos, observamos não existir nenhum ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado por placebo (portanto, elevado grau de evidência científica), sobre o melão-de-são-caetano e câncer. O que existe são alguns estudos in vitro e com animais, que não podem ser extrapolados para seres humanos. O fato é: a natureza fornece uma série de plantas e frutas com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias (o que é fantástico e deve ser estudado), mas isso não significa que “cura o câncer”. Aliás, câncer é o nome genérico para mais de 100 doenças que tem em comum o crescimento descontrolado e acelerado de células (meus alunos tiveram essa aula e falarei disso em outra matéria aqui). Não existe somente um tipo de célula em nosso organismo e, dessa forma, não existe somente um tipo de câncer que poderia ter a “cura” por meio de um único e isolado alimento. Seria muita inocência (ou ignorância) você acreditar nisso, mas infelizmente os leigos caem nestas “armadilhas”, pois estão fragilizadas com seus entes queridos acometidos por um câncer, por vezes, potencialmente fatal.

 

O recado aqui deve ser bem direto:

A desinformação é extremamente perigosa e poucos se dão conta disso! Muitas pessoas abandonam o tratamento convencional do câncer na busca de alimentos e/ou suplementos milagrosos. O fato é: existe uma preocupação extrema com a saúde e a cura de doenças, onde somos constantemente bombardeados com informações (e desinformações) de dietas milagrosas, suplementos mágicos, exercícios mirabolantes, enfim, muita PSEUDOCIÊNCIA.

Pseudociência, como o próprio nome sugere, são afirmativas ou práticas não científicas, muitas vezes baseadas em opinião pessoal, que misturam discursos aparentemente técnico-científicos, mas é uma “falsa ciência”. Em outras palavras, os pseudocientistas estabelecem um discurso sem qualquer embasamento científico, pois não aplicam (ou desconhecem) os métodos científicos. Outros, por sua vez, “enganam muito bem”, pois conhecem os métodos científicos, mas estabelecem falácias lógicas não testadas pela ciência e, na maioria dos casos, usando discursos vagos, exagerados, improváveis, apelativos, milagrosos, espirituais, equivocados, ou melhor, completamente errôneos.   

A fronteira entre a ciência e a pseudociência é muita estreita quando você é leigo em ciências da saúde, ou seja, pode ser facilmente enganado. Essas pessoas, os pseudocientistas, sabem disso. É importante que você reconheça dois tipos de indivíduos nas mídias sociais: o picareta e o charlatão. O PICARETA é uma pessoa desonesta e de má índole, enquanto que o CHARLATÃO é uma pessoa dita curandeiro e, muitas vezes, sabe perfeitamente que está enganando. Ambos têm conotação negativa, onde o charlatão geralmente se apresenta como especialista e vende um “tratamento milagroso”, sem comprovação científica, alegando muitas vezes “que a indústria farmacêutica está escondendo de você a cura do câncer”. Calma, as coisas podem piorar: existem profissionais de saúde “leigos” em relação à ciência (“Sim, isso existe”), que são “charlatães de jaleco branco” (médicos, nutricionistas, biomédicos, farmacêuticos, fisioterapeutas, etc.) e enganam os fragilizados por fama e fortuna (“Sim, isso também existe”). Isso tem um impacto negativo gigantesco na sociedade, pois um “charlatão da saúde” usa seu “diploma” para exercer autoridade e, afinal, quem iria duvidar de uma “autoridade”?

 

Com base nisso, vamos retomar a pergunta:

Qual sua opinião sobre a desinformação nas mídias sociais, especialmente na Era da Inteligência Artificial (IA)?

Na prova dos alunos, como relatado acima, obtive várias respostas interessantes e, agora, faço um breve REFLEXÃO sobre este assunto. Vem comigo, pois vou “ABRIR SUA MENTE” em duas etapas:

 

ETAPA 1:

A Inteligência Artificial (IA) ou Artificial Intelligence (AI) pode ser uma ferramenta útil para “quem sabe usar o cérebro”, digamos assim. Deixa-me explicar algumas vantagens:

IA pode analisar grandes conjuntos de dados em pouquíssimo período de tempo, trazendo os fatores mais relevantes para você usar e tomar uma decisão mais assertiva na sua vida e na vida de seus pacientes (se for um profissional de saúde). Uso do ChatGPT, por exemplo, ajuda a concluir tarefas 60% mais rápido do que o usual sem seu auxílio. IA também pode ser usado na educação, expandindo seu conhecimento devido a facilidade de acesso aos conteúdos de forma rápida e eficaz. É uma baita ferramenta e, em princípio, não parece lógica interromper o avanço da ciência e tecnologia usando IA.

 

Porém, deixa-me pensar:

Um estudo recente (https://doi.org/10.48550/arXiv.2506.08872), publicado em junho de 2025, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos Estados Unidos da América (EUA), avaliou o cérebro de 54 voluntários usando escaneamento com eletroencefalograma (EEG) por 4 meses. Os voluntários foram divididos em três grupos: 1) escrever redações sem auxílio de qualquer ferramenta (sem internet, sem ChatGPT); 2) escrever redações com acesso ao Google, mas sem acesso ao ChatGPT; e 3) escrever redações com acesso apenas ao ChatGPT. Observe as conclusões dos autores, resumidamente:

1.    A conectividade neural reduziu 47% em quem usou recurso de IA;

2.    Dos voluntários, 83,3% não conseguiam lembrar dos textos que escreveram minutos antes usando recursos de IA;

3.    Quem usa recurso de IA provavelmente tem menor capacidade de lembrar o que escreveu, pois delegou essa função ao IA;

4.    As pessoas podem ficar dependentes de IA para tarefas simples, como escrever e lembrar dos próprios textos. Ou seja, sugere-se atrofia cognitiva;

5.    Usuários de IA têm queda na capacidade de pensamento criativo e crítico. Ou seja, novamente estamos atrofiando nosso cérebro porque verdadeiramente não estamos usando-o.

 

Assustador, não é? Porém, penso eu:

1.    Não me parece que proibir IA seja a solução da Humanidade para manter o cérebro funcional, mas ensinar a usar corretamente a ferramenta;

2.    No passado, queriam proibir o uso da calculadora, acreditando que iria atrofiar nosso cérebro. Hoje sabemos quanto útil é uma calculadora ou mesmo Excel no computador para acelerar os processos. Ao mesmo tempo, conhecemos pessoas que não sabem somar 2,58 + 4,17 em uma folha de papel sem o uso de uma calculadora. Conhecemos pessoas que não sabem devolver o troco em uma compra realizada no supermercado, que custou 8,45 reais e ele deu 10 reais, sem o uso de uma calculadora;

3.    Talvez seja interessante usar seu cérebro antes de recorrer ao Google ou IA para produzir textos ou pequenos cálculos matemáticos;

4.    Lembro-me de uma frase de um autor anônimo: “Sua mente é como um paraquedas, só funciona se estiver aberta”.

 

O estudo do MIT tem limitações e eu não poderia deixar de falar disso:

1.   A amostra é pequena e pouco representativa do universo de pessoas que usam IA;

2.  O contexto e a tarefa realizada são muito específicos, ou seja, apenas escrever uma redação sem testar outras capacidades cerebrais;

3.  A avaliação mostra um efeito agudo, mas não crônica. Será que a longo prazo vamos atrofiar o cérebro?;

4.  O EEG (eletroencefalograma) pode não ser a melhor estratégia de avaliação cerebral aqui e não foram dosados biomarcadores cerebrais e de sangue;

5.  Enfim, não podemos extrapolar os resultados deste estudo. Ao mesmo tempo, você não deveria ignorar essa reflexão crítica dos autores.

 

Deixa-me concluir dizendo:

O ser humano tem uma preguiça inata para várias coisas (rsrs), vejam:

Temos preguiça para caminhar até a televisão e criamos o controle remoto. O controle remoto facilita nossa vida? Claro. Estamos mais sedentários? Claro também.

Temos uma preguiça de andar pelo shopping e optamos pela escada rolante. Ou seja, se já está passeando, porque não continua caminhando?

Usamos tele pizza ao invés de elaborar uma bela pizza caseira com pais e filhos, pois temos essa preguiça inata. O que pensa disso?

Passamos o dia pendurados no smartphone olhando bobagens sobre saúde e nutrição ao invés de abrir um bom livro de bioquímica ou fisiologia para estudar. Não é mesmo prezado(a) aluno(a), rsrs?

Estou fazendo apenas uma brincadeira (ou não), pois o fato é: o problema está na tecnologia (neste caso o uso do IA) ou no ser humano (que é um tanto preguiçoso)?

Já falei das vantagens do IA no início do texto, então agora deixa-me resumir algumas desvantagens do uso (ou abuso) do IA:

1.    Risco de desumanização no processo de ensino-aprendizagem;

2.    Redução do pensamento crítico e, obviamente, da autonomia intelectual;

3. Excesso de confiança em respostas automáticas que, nem sempre, são verdadeiras;

4.    IA não pode tomar decisões por você, pois é apenas uma ferramenta apenas;

5.   IA não sabe interpretar um estudo científico, ele apenas traduz o que os autores estão descrevendo (sejam elas conclusões boas ou ruins; falsas ou verdadeiras).

 

Existe outra preocupação com o uso (abuso) de IA:

IA está produzindo, atualmente, vídeos hiper-realistas e será praticamente impossível diferenciar uma pessoa “real” de outra fictícia, imaginária, irreal, inexistente, artificial em um futuro muito próximo. IA já consegue, por exemplo, imitar as imperfeições humanas em tarefas cotidianas para deixar ainda mais realista seus vídeos. Vou te dar um exemplo:

Eu não estou usando IA para escrever este texto (gosto realmente de “usar e abusar” do meu cérebro), mas eu poderia solicitar ao IA escrever um texto como se fosse Joelso Peralta. Ou melhor, eu poderia facilmente pedir para o famoso ator Leonardo DiCaprio para falar esse texto em vídeo (e até usando minha voz) e você ficaria abismado. Ou, pior, alguém poderia usar minha imagem em um vídeo hiper-realista para falar que “Leite é inflamatório e causa autismo” ou “Melão-de-são-caetano cura qualquer tipo de câncer”. Já imaginaram EU falando essas bizarrices, que poderiam ser compartilhadas no grupo de WhatsApp da família (rsrs)? Pois é, você consegue diferenciar um “EU real” de um “EU irreal”? E sua mãe, de 60 anos (que não nasceu na Era do ChatGPT) consegue diferenciar o “real” e “irreal”? Seu avô, um idoso muito gente boa de 89 anos, que ainda faz cálculos matemáticos “só usando o cérebro”, consegue diferenciar o “real” e “irreal”? Sendo assim, como diferenciar o FATO e o FAKE?

 

ETAPA 2:

Voltamos ao melão-de-são-caetano, que cura o câncer, teve 142 mil visualizações, foi monetizado e distribuído em vários idiomas. Por que as pessoas caem facilmente nestas informações pseudocientíficas? Existem inúmeras explicações, mas gosto dessa aqui:

Muitas decisões que tomamos são influenciadas por terceiros e, por vezes, nem percebemos. Nas áreas de saúde temos uma dieta mirabolante, um treino inovador jamais documentado, uma suplementação milagrosa, uma medicação revolucionária que estavam escondendo de você e por aí vai (...). Todo esse consumo é influenciado por terceiros. Essa influência externa, quando promovida por uma “pessoa de autoridade” (médico, nutricionista, profissional de educação física, biomédico, farmacêutico, etc.) acaba influenciando mais facilmente uma tomada de decisão, afinal tem respaldo de um “diploma” (embora sem respaldo científico).

Em 2019, por exemplo, o Jornal Britânico The Independent (www.independent.co.uk), publicou uma matéria realizada pela Universidade de Glasgow, na Escócia, onde a maioria dos Blogs de Saúde e Fitness não são fontes seguras de informações quanto a temática de saúde, nutrição e composição corporal (Fonte: Christina Sabbagh et al. Analysing Credibility of UK Social Media Influencers’ Weight-Management Blogs: A Pilot Study. International Journal of Enviromental Research and Public Health 17: 9022, 2020). Esse achado não se limita aos blogs, mas pensem no Facebook, Instagram, Telegram, YouTube e inúmeras outras mídias digitais, inclusive grupos de WhatsApp. O fato é: todos agora querem ser “influenciadores digitais”, mas quem realmente tem conhecimento para repassar informações de saúde? Aliás, vejam os títulos de algumas matérias facilmente encontradas para leitura:

 

“Sonho de ser influenciador digital leva jovens a abandonarem os estudos: escritora de 14 anos faz alerta sobre leitura”.

 

“Estudar pra quê? Os jovens que sonham em virar influencers”.

 

“O risco de seguir os influencers em vez de fazer faculdade”.

 

“A Ilusão do Instagram: por que seguir influencers não é a vida real”.

 

“Jovens influenciadores promovem a ideia de que estudar não traz riqueza”.

 

E por aí vai (...).


Eu poderia continuar essa discussão, mas existe outro problema atual: as pessoas “não têm saco” para leitura de um grande texto. Aliás, quantos livros você leu este ano? Quantos livros leu no ano passado? Se você é estudante em cursos das áreas de saúde, quantos livros você leu ou apenas baseia sua experiência acadêmica nos slides de seu professor? (Nota: meus slides são ótimos, rsrs, mas você entendeu o recado). Enfim, se você chegou até aqui: meus Parabéns!   

 

Agora, vou dar algumas dicas valiosas:

 

1.    LEIA A MATÉRIA DE INTERESSE OU ARTIGO CIENTÍFICO NA ÍNTEGRA, não dependa do cérebro dos outros para tirar suas conclusões. Muitas pessoas repassam informações incompletas (ou falsas) para reforçar suas próprias convicções (cherry picking), que podem ser verdadeiras ou falsas;

2. SIGA E APRENDA COM PROFISSIONAIS DE SAÚDE HONESTOS E DE CONFIANÇA. Se você não tem tempo de leitura ou lhe faltam habilidades para ler e interpretar os estudos científicos, vá atrás de quem sabe. Para tanto, observe seu currículo; observe sua trajetória profissional; observe seu caráter;

3.   LIGUE SEU “DESCONFIÔMETRO ORGÂNICO”. Exemplo: você compraria um automóvel pelo grupo de WhatsApp de um condomínio, onde aparece uma foto linda do veículo novinho, baixíssima quilometragem, preço muito abaixo da tabela FIBE, tendo como proprietário apenas uma senhorinha idosa que passeava somente nos finais de semana nos últimos 5 anos? E, para fechar negócio, você deveria depositar, urgentemente, 70% do valor antecipadamente a fim de não perder a promoção? Faça isso por meio do PIX e receba gratuitamente um protetor solar de última tecnologia feito pela NASA, assim pode passear em seu carro novo sem risco de câncer de pele, complementa o vendedor. Certamente “Quando a esmola é demais, o santo desconfia” (rsrs) e você não vai cair nessa. Então porque você não liga seu “desconfiômetro” natural ao olhar notícias de saúde (e outras) nas mídias sociais? Nosso organismo tem uma espécie de “pisca-alerta” para essas coisas (bobagens, bizarrices, enganações), mas você parece que deixou de lado;

4.   NÃO CONFUNDA APARÊNCIA COM COMPETÊNCIA na hora de contratar um nutricionista, profissional de educação física, médico, etc. Quem disse que “barriga tanquinho” é sinônimo de “cérebro altamente evoluído” ou “inteligência super-humana”? (Nota: nem existe inteligência super-humana, rsrs). Quem disse que uma pessoa usando de marca, reconhecida e altamente respeitada, de grande estilo e qualidade, dentro de um confortável automóvel recém lançado no mercado, é sinônimo de sucesso? Cuidado: as aparências nas mídias sociais enganam e são facilmente editadas, especialmente na Era das IAs.

 

Por fim, deixo o pensamento de Martin Luther King:

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.


segunda-feira, 19 de agosto de 2024

TESTOSTERONA BAIXA É UM PROBLEMA?

 

TESTOSTERONA BAIXA É UM PROBLEMA?  

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando em Ciências Biológicas: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.




Olá pessoal, tudo bem? Nos últimos meses tenho observado alguns pacientes, homens, com menos de 50 anos, com baixos níveis de testosterona total e livre no exame de sangue. Alguns estavam preocupados, enquanto que outros nem tanto. Todavia, uma pergunta comum sempre surgia: testosterona muito baixa é um problema e será que devo repor? Gostaria de opinar sobre este assunto com base em meujs estudos e experiência clínica. Essa matéria não discutirá os níveis de testosterona e reposição hormonal em mulheres, embora farei comentários breves.  

 

COMO FUNCIONA A REGULAÇÃO DA TESTOSTERONA?

A testosterona é um hormônio esteroide secretado pelas células de Leydig dos testículos em homens, sendo regulada pelo eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Quer dizer, o hipotálamo secreta o hormônio hipotalâmico de liberação das gonadotrofinas (GnRH), que estimula a hipófise anterior (adeno-hipófise) quanto a secreção do hormônio luteinizante (LH) e do hormônio folículo-estimulante (FSH). LH promove esteroidogênese (formação e secreção de testosterona), enquanto que FSH participa da espermatogênese (formação de espermatozóides).

O eixo hipotálamo-hipófise também é regulado por retroalimentação negativa, ou seja, um excesso na produção de testosterona inibe sua própria síntese. Ao mesmo tempo, o hormônio inibina, secretado pelas céulas de Sertoli dos testículos, inibe a adeno-hipófise.

Por fim, a zona reticulosa do córtex adrenal (glândula suprarrenal) produz e secreta uma pequena quantidade de andrógenos (DHEA ou desidroepiandroterona, testosterona e androstenodiona), que reflete em uma pequeníssima quantidade de andrógenos circulantes em mulheres. A glândula suprerrenal é estimulada pelo hormônio adrenocorticotrópico (ACTH), derivado da adeno-hipófise. Aliás, a produção de andrógenos, em mulheres, que é pequena, ocorre a partir das glândulas suprarrenais e ovários.

Não faça confusão: o ACTH também pode estimular a glândula suprarrenal para produzir cortisol e aldosterona, mas aí é assunto para outra matéria.

 

QUAIS SÃO OS NÍVEIS ACEITÁVEIS DE TESTOSTERONA?

Em homens, os níveis de testosterona oscilam entre 2,5 a 11 mg/dia (17,5 a 77 mg/semana) e, nas mulheres, os níveis oscilam de 0,2 a 0,4 mg/dia (1,4 a 2,8 mg/semana). Isso mesmo: os níveis de testosterona são absurdamente baixos em mulheres quando comparado aos homens.

Os laboratórios de análise clínicas trazem os seguintes valores de referência: testosterona total (soro) de 240 a 850 ng/dL para homens; e 10 a 80 ng/dL para mulheres. Para testosterona livre (soro), os valores são 130-640 pmol/L para homens e 2,4-37,0 pmol/L para mulheres. Isso mesmo: os níveis de testosterona total e livre, em mulheres, são naturalmente baixos quando comparados aos homens.

Portanto, a reposição de testosterona em mulheres é polêmica e discutível, onde os maiores especialistas no assunto não recomendam.

Não faça confusão: existe reposição de estrógenos e outros hormônios em mulheres, que pode ser assunto para outra matéria aqui.

 

BAIXOS NÍVEIS DE TESTOSTERONA SÃO PREOCUPANTES?

Em homens jovens, não há necessidade de reposição de testosterona quando os valores são iguais ou superiores a 350 ng/dL. Todavia, os valores abaixo de 240 ng/dL geram preocupação e necessidade de esclarecimentos com médico de confiança. Neste caso, solicita-se uma investigação detalhada: testosterona total e livre, LH, FSH, DHEA, DHT (diidrotestosterona), SHBG (proteína de ligação para hormônios sexuais), E2 (estradiol) e PSA (antígeno prostático específico).

Os baixos níveis de testosterona, nestes homens jovens, é preocupante pelos seguintes motivos: queda da libido, perda da força e massa muscular (sarcopenia), aumento da gordura corporal (adiposidade ou dificuldade para perder gordura corporal) e perda da densidade mineral óssea (DMO). Alguns pacientes também relatam fadiga e letargia, ansiedade e depressão, disfunção erétil, menor tolerância ao esforço físico e prejuízos na memória e concentração. Além disso, estudos relacionam os baixos níveis de testosterona com desfechos clínicos desfavoráveis, incluindo sarcopenia, risco aumentado para contrair infecções respiratórias e prejuízos na contratilidade cardíaca.  

Não faça confusão: as doses suprafisiológicas de testosterona, obtidas através do uso (abuso) de esteroides anabólico-androgênicos (EAA), não estão sendo debatidos aqui. Aliás, o uso de EAA para fins estéticos não é foco desta matéria.

 

SERÁ QUE DEVO REPOR MINHA TESTOSTERONA?

A melhor resposta é DEPENDE. Deixa-me explicar melhor.

Primeiro, DEPENDE da opinião de seu médico. Uma possível terapia de reposição hormonal (TRH) deve ser realizada e acompanhada pelo seu médico, onde endocrinologistas me parecem ser os profissionais mais adequados para uma conversa franca e direta. Este profissional, além de investigar a testosterona e outros marcadores bioquímicos, irá observar os relatos (sinais e sintomas) descritos pelo paciente, que podem estar prejudicando a qualidade de vida deste. Todavia, cuidado com as promessas da chamada Medicina Anti-Aging Funcional Integrativa e blábláblá. Lembre-se: a medicina anti-aging não é uma especialidade reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). As coisas devem ser tratadas com seriedade.

Segundo, DEPENDE das contraindicações. Sim, existem situações onde a TRH não é indicada: suspeita (atual ou pregressa) de câncer ou de condições malignas mediadas por hipersensibilidade à testosterona ou estrógenos, hemorragia genital não diagnosticada, hiperplasia prostática, atual tromboembolismo venoso, ativo ou recente doença arterial tromboembólica ou hipertensão arterial descontrolada ou não tratada, insuficiência cardíaca ou qualquer distúrbio grave em cardiomiócitos, doença hepática ativa, porfiria cutâneo tardia (uma doença do grupo Heme da hemoglobina) e hematrócrito elevado (acima de 50%). O foco desta postagem são os homens, mas existem contraindicações para mulheres: hiperplasia endometrial e câncer de mama, além dos itens já mencionados (hipertensão, tromboembolismo, alteração cardíaca, doença hepática e hematrócito elevado).

Terceiro, DEPENDE de seu bom senso, que seria a capacidade de agir de forma coerente, sensata e inteligente. Quer dizer, não seja enganado: não existem alimentos e/ou suplementos que possam colocar sua testosterona nas “nuvens” do dia para a noite. Seria muita inocência sua acreditar nisso. Todavia, já falei neste Blog de outros recursos que aumentam testosterona, incluindo o exercício físico e qualidade do sono. Além disso, uma possível TRH (decorrente dos baixos níveis de testosterona em homens jovens) não é para ficar mais bonito, charmoso, atraente ou musculoso (embora possa lhe trazer benefícios estéticos), mas, sim, uma questão de saúde e qualidade de vida.

 

Enfim, existem inúmeras formas de repor sua testosterona sob acompanhamento médico (eu disse: médico), incluindo injeções intramusculares de testosterona e derivados, adesivos e gel de testosterona, comprimidos ou cápsulas hormonais e, até mesmo, implantes hormonais. Uma dica importante, geralmente negligenciada, é o acompanhamento da TRH.



segunda-feira, 29 de julho de 2024

SUPLEMENTAÇÃO DE CREATINA: 4 perguntas cruciais

 

SUPLEMENTAÇÃO DE CREATINA: 

respondendo 4 perguntas cruciais

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando em Ciências Biológicas: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.



Olá pessoal, tudo bem? A creatina é um dos suplementos mais populares entre os esportistas e atletas e, provavelmente, aquele que mais possui embasamento científico. Em uma busca simples no PubMed, nos últimos 5 anos, encontrará facilmente mais de 800 estudos. Se refinar sua pesquisa para a suplementação de creatina no exercício e no esporte, terá quase 300 estudos. E, se filtrar ainda mais para ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises, encontrará mais de 150 estudos. Portanto, a literatura é vasta sobre a suplementação de creatina e, mesmo assim, as pessoas (incluindo os profissionais de saúde) se questionam: a suplementação de creatina requer a fase de sobrecarga e manutenção? Devo usar creatina antes ou depois do treino? A suplementação de creatina requer a necessidade de carboidrato? Existe dano renal associado à suplementação de creatina? Com base nisso, resolvi abordar rapidamente este assunto através de perguntas e respostas, porém baseado em evidências. Boa leitura!

 

Pergunta #1:

A SUPLEMENTAÇÃO DE CREATINA REQUER UMA FASE DE SOBRECARGA E MANUTENÇÃO?

No passado, acredita-se que a suplementação de creatina era eficaz quando realizado em 2 fases: uma fase de sobrecarga (consumo de creatina por 5 a 7 dias com 20 a 25 g/dia), seguido de uma fase de manutenção (3 a 5 g/dia por vários meses). Atualmente, sabe-se que os resultados quanto a hipertrofia muscular, bem como na força, nos depósitos de fosfocreatina intramuscular e no auxílio da glicogênese (biossíntese de glicogênio muscular), são similares sem a necessidade da fase de sobrecarga de creatina.

Deixa-me exemplificar: a suplementação com 3 a 5 g/dia de creatina monoidratada, sem um período de sobrecarga, aumenta a creatina total e fosfocreatina intramuscular em 16 a 22%; a força também aumenta, verificado por 1 repetição máxima (1RM) em exercícios básicos para os membros superiores (p.ex.: supino) e membros inferiores (p.ex.: agachamento); e o glicogênio intramuscular aumenta em 25% (que parece estar associado à retenção hídrica intramuscular, devido ao poder osmótico da creatina).

Claro, alguns atletas persistem no esquema clássico de suplementação de creatina, porém com a seguinte estratégia: 0,3 g de creatina por quilograma de peso corporal diariamente (0,3 g/kg/dia). Neste sentido, se você é um atleta do sexo masculino com 75 kg, então poderia consumir 22,5 g/dia (0,3 g x 75 kg = 22,5 g), divididos em 4 doses ao dia (5,6 g em cada refeição), cujo período de sobrecarga ocorre por 5 a 7 dias, seguido de um período de manutenção (apenas 5 g/dia, aproximadamente). Essa estratégia, contudo, tem controvérsias. Por exemplo, se você é um atleta, homem, de 120 kg, poderia ingerir 36 g/dia de creatina (0,3 g x 120 kg = 36 g), o que resultaria em 9 g de creatina em 4 doses diárias. Portanto, 36 g/dia de creatina seria um verdadeiro exagero, que diferente grandemente da maioria dos estudos com 20-25 g/dia.    

Particularmente, não vejo vantagem na sobrecarga de creatina (especialmente para praticantes de atividades físicas recreativos), pois como dito: os resultados são similares ao final de alguns meses sem necessitar o período de sobrecarga de creatina. Ou melhor, existe uma vantagem em não realizar a fase de sobrecarga: evita-se a inibição endógena. Como assim, professor? Peraí, vamos lá:

O aminoácido arginina e glicina se combinam nos rins para formar guanidoacetato (ou guanidinoacetato) e ornitina (reação da arginina-glicina aminotransferase renal, AGAT). Em seguida, guanidoacetato se combina com S-adenosil-metionina (SAM) para formar creatina e S-adenosil-homocisteína (SAH) no fígado (reação da guanidoacetato N-metiltransmetilase hepática, GAMT). Creatina, por fim, é convertida em fosfocreatina (CP), com gasto de adenosina trifosfato (ATP), em uma reação (reversível) pela creatina fosfoquinase (CPK) no músculo esquelético. Como deve perceber, creatina é um tripeptídeo formado pelos aminoácidos arginina, glicina e metionina, sendo um processo que perpassa pelos rins, fígado e músculo. A suplementação em demasia (20-25 g/dia ou mais) de creatina causa inibição endógena (desnecessária ao meu ver), que retorna ao normal (sim, volta ao normal) depois de certo período após a interrupção da suplementação.

Em suma, a suplementação mais comum de creatina monoidratada é de 3 a 5 g/dia por alguns meses, geralmente 2 a 4 meses (embora alguns mantém a suplementação contínua por 12 meses).

 

Pergunta #2:

DEVO USAR CREATINA PRÉ OU PÓS-TREINO?

Antes de responder à pergunta, deixa-me fazer duas observações:

Primeiro, 95 a 98% da creatina total está presente no músculo esquelético, sendo 40% na forma de creatina e 60% na forma de fosfocreatina. Portanto, apenas 2 a 5% da creatina estão presentes no sangue, coração e cérebro, bem como espermatozoides.

Segundo, o músculo esquelético possui um certo grau de saturação para creatina. Em outras palavras, você passa de 90 a 125 mmol Cr/kg músculo seco (normalidade) para 160 a 162 mmol Cr/kg (saturação intramuscular).

O que isso tudo quer dizer, professor?

Simples, não adiante se “entupir” da suplementação de creatina (20-30 g/dia) por inúmeros meses (12 meses), pois existe um “limite” intramuscular para creatina e fosfocreatina, seja você um homem atlético de 1,70 m ou grande fisiculturista de 2,10 m.

Com base nisso, voltamos a pergunta: devo usar creatina antes ou depois do treino?   

A suplementação de creatina, segundo a “luz da ciência”, não possui um horário preestabelecido de consumo. Ou seja, você pode usar creatina antes ou depois do treino, pois não faz diferença alguma. Deixa-me explicar de outra maneira: os efeitos da creatina sobre a musculatura esquelética não são imediatos (não são agudos), mas, sim, a longo prazo (efeito crônico). Portanto, parece anedótico achar que a suplementação de creatina deva ocorrer 30 minutos antes do esforço físico, como se essa creatina proveria “força, energia e disposição” ao treino. Lembre-se: você precisa “saturar” sua musculatura com creatina para obter os efeitos desejados da creatina sobre o desempenho atlético e hipertrofia muscular. A regra de ouro é: mantenha a suplementação de creatina monoidratada frequentemente, independente do horário. Se você prefere pré-treino para não esquecer, então beleza! Se você prefere no pós-treino, tudo perfeito! 

Uma curiosidade: segundo Louise Deldicque et al.  (J Appl Physiol 104:371-378, 2008; DOI: 10.1152/japplphysiol.00873.2007), a suplementação de creatina após o esforço físico pode ser mais vantajosa. Neste estudo, os autores mostraram que a suplementação de creatina no pós-treino (durante 6 semanas), em homens saudáveis, submetidos ao teste de 1RM para determinados exercícios, aumentou a expressão do transportador de glicose do tipo 4 (GLUT-4) e do fator de crescimento semelhante à insulina (IGF-1), bem como ativação de células satélites que estariam associados com aumento da cadeia longa da miosina no músculo esquelético (proteína contrátil miofibrilar, que desempenha papel crucial na contração muscular). Os autores concluíram que a suplementação de creatina no período pós-treino promove hipertrofia muscular. Todavia, cabe destacar: os indivíduos também estavam submetidos ao acompanhamento nutricional, onde receberam uma dieta com 48% de carboidrato, 30% de lipídeos e 22% de proteína. 

 

Pergunta #3:

PRECISO DE CARBOIDRATO PARA ABSORVER CREATINA E UTILIZAR NO MÚSCULO ESQUELÉTICO?

Na década de 90, acreditava-se que creatina necessitava de carboidratos para ser absorvida e promover hipertrofia muscular, ou seja, acredita-se na co-ingestão de creatina e carboidratos. Essa hipótese tinha um bom raciocínio lógico: a captação de monossacarídeos (glicose, particularmente) ocorre por cotransporte de sódio-glicose na membrana apical das microvilosidades intestinais, que acabam ganhando a veia porta hepática até o fígado. Neste sentido, a creatina (arginina, glicina e metionina) pegariam “carona” neste processo absortivo facilitado pela glicose. Ao mesmo tempo, carboidratos (geralmente dextrose, maltodextrina, bebidas esportivas ou sucos) causariam secreção aumentada de insulina (hiperinsulinemia), que facilitaria o processo hipertrófico via GLUT-4 e estímulo da proteína quinase B (PKB ou Akt) e da proteína quinase de mamíferos alvo de rapamicina (mTOR), portanto, via Akt/mTOR. A creatina (seus aminoácidos), novamente, pegaria “carona” para ingressar no músculo esquelético a fim de aumentar a creatina e fosfocreatina intramuscular, bem como favorecer o desempenho atlético. A insulina também estimula a bomba ATPase sódio-potássio dependente, que poderia facilitar o transporte de creatina ao músculo. Quer dizer, a captação de creatina pelos músculos ocorre por gradiente de concentração sódio-dependente, após interação da creatina com sítios específicos na membrana muscular (sarcolema), que seria facilitado pela glicemia, ou melhor, pela insulinemia. Suspeitava-se, também, que a creatina necessitaria de um transportador plasmático de creatina, que seria estimulado pela insulina. Portanto, a coingestão de creatina e carboidratos fazia (e faz) bastante sentido. Contudo, estudos posteriores mostraram não existir essa necessidade de carboidratos para absorção intestinal e uso de creatina pelos músculos.

O que você pensa disso, professor?

Deixa-me explicar da seguinte maneira:

Primeiro, uma grande parcela de estudos estabelece a suplementação de creatina monoidratada sem o consumo concomitante de carboidratos, sendo que os resultados almejados (ganho ponderal, hipertrofia muscular, força e desempenho atlético) também são obtidos.

Segundo, a co-ingestão de creatina e carboidratos é vantajoso para alguns, mas desvantajoso para outros indivíduos. Quer dizer, os carboidratos administrados aumentam a síntese de glicogênio muscular que, por sua vez, melhoram o desempenho atlético, sendo uma vantagem. Além disso, os carboidratos administrados promovem hiperinsulinemia e, como sabemos, a insulina é um hormônio anabólico que estimula a via Akt-mTOR, sendo outra vantagem. Todavia, aqueles indivíduos com elevado percentual de gordura corporal, observado na avaliação física prévia, podem obter desvantagem dessa suplementação combinada. Em outras palavras, um excesso de carboidrato pode facilitar a lipogênese e adiposidade, pois insulina estimula a proteína 1c de ligação do elemento de resposta aos esteróis (SREBP1c), bem como estímulo das enzimas lipogênicas (acetil-CoA carboxilase e ácido graxo sintase). Além disso, insulina, secretada em decorrência da hiperglicemia, inibe a lipólise (mobilização de ácidos graxos dos adipócitos), pois inibe a lipase hormônio sensível (LHS). Mas, claro, não faça confusão: a insulina “não engorda”, pois o que engorda é o excesso calórico da dieta. Insulina, contudo, pode favorecer essas vias metabólicas que acabariam “engordando” um indivíduo que já exibe inadequação na composição corporal. Dessa forma, seria mais vantajoso usar creatina sem carboidratos, mantendo o aporte calórico total reduzido, porém com desempenho atlético superior através do uso de creatina. 

Terceiro, a melhor dieta ou suplementação é aquela que seu paciente consegue aderir. Portanto, a suplementação de creatina com ou sem carboidratos depende dessa adesão, bem como objetivos previamente traçados. Em outras palavras, se o objetivo for o desempenho atlético (p.ex.: atletas de elite) sem grande preocupação com o percentual de gordura corporal (alguns esportes não requerem “barriga tanquinho”, rs), use com carboidratos. Todavia, se o objetivo foi puramente estético (p.ex.: uma grande parcela dos usuários de recursos ergogênicos não atletas), então observe a avaliação física para a avaliar a necessidade de coingestão de creatina e carboidratos.  

 

Pergunta #4:

CREATINA CAUSA DANO RENAL OU TRAZ PREJUÍZO À SAÚDE?

Estamos em 2024 e, por incrível que pareça, ainda existem estudantes e profissionais de saúde alegando que a suplementação de creatina causa dano hepático e renal, bem como “engorda”, deixa “inchado” e causa cãibra e desidratação e, até mesmo, é cancerígeno. Sendo assim, vamos às respostas rápida sob a “luz da ciência”.

Estudos da década de 90 (Lancet 351:1252-1253, 1998; N Engl J Med 340:814-815, 1999) relataram dano renal induzido pela suplementação de creatina no esquema clássico (20 g/dia). Todavia, analisando criteriosamente os estudos, observamos que não existir investigação sobre o histórico clínico pessoal e familiar nestes relatos. Aliás, relato de caso possui baixo grau de evidência científica, justamente por permitir o viés de confusão. Os demais estudos, contudo, concluíram não existir evidências para dano renal, hepático, cãibras musculares e desidratação com a suplementação de creatina por longos períodos. Alguns pacientes podem, eventualmente, relatar complicações gastrintestinais (vômito, diarreia ou dor abdominal) com a suplementação de creatina, justamente porque não estavam acostumados com a sobrecarga de creatina (20-30 g/dia), o que é transitório e não preocupante. Aliás, nenhum estudo encontrou diferença estatística significativa nos parâmetros da função hepática (aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase, fosfatase alcalina ou gamma-glutamiltranspeptidase) que corroborem com a disfunção ou dano hepático induzido pela suplementação com creatina. Não foram observadas evidências estatisticamente significativas em parâmetros de função renal, que pudessem apoiar um dano renal: creatinina, uréia, albumina sérica, microalbuminúria ou taxa de filtração glomerular. Também não existem evidências para cãibras ou desidratação, cujo estudos relatam serem alegações anedóticas. O ganho de peso, por vezes alegado como efeito colateral (não pretendido, não esperado) ou efeito adverso (desfavorável, ruim) me deixa perplexo. Quer dizer, o ganho de peso realmente existe (0,5 a 2 kg ou mais), sendo atribuído à retenção hídrica, aumento no conteúdo de glicogênio muscular e hipertrofia induzida pelo treinamento de força. Quer dizer, não seria justamente os objetivos almejados pelo usuário de creatina monoidratada? Aliás, aumentar os depósitos de creatina e fosfocreatina intramusculares com melhoria do desempenho atlético, acompanhado pelo aumento do peso corporal, não seriam objetivos previamente traçados com seu paciente durante a suplementação de creatina? AHHH, para concluir: a retenção hídrica é intramuscular e não subcutânea, portanto, é impossível alegar que o paciente “fica inchado” ou “gordo”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existe uma sólida base de evidências científicas sobre a suplementação de creatina monoidratada no exercício e no esporte, mas também para aplicação clínica. Por exemplo, a suplementação de creatina pode ser útil com o avançar da idade, pois temos perda de fibras do tipo I e II, sendo que as do tipo II apresentam maiores concentração de creatina e fosfocreatina. Existem muitos “experts” nas mídias sociais, mas cuidado: muitos exibem excelente oratória, mas poucos realmente aprofundam os estudos sobre os recursos ergogênicos nutricionais.

 

Abaixo, seguem algumas sugestões para leitura, utilizados nesta matéria:

 

1.    Forbes SC, Candow DG, Neto JHF, Kennedy MD, Forbes JL, Machado M, Bustillo E, Gomez-Lopez J, Zapata A, Antonio J. Creatine supplementation and endurance performance: surges and sprints to win the race. J Int Soc Sports Nutr. 2023 Dec;20(1):2204071. doi: 10.1080/15502783.2023.2204071. PMID: 37096381; PMCID: PMC10132248.

2.    Candow DG, Chilibeck PD, Forbes SC, Fairman CM, Gualano B, Roschel H. Creatine supplementation for older adults: Focus on sarcopenia, osteoporosis, frailty and Cachexia. Bone. 2022 Sep;162:116467. doi: 10.1016/j.bone.2022.116467. Epub 2022 Jun 7. PMID: 35688360.

3.    Wu SH, Chen KL, Hsu C, Chen HC, Chen JY, Yu SY, Shiu YJ. Creatine Supplementation for Muscle Growth: A Scoping Review of Randomized Clinical Trials from 2012 to 2021. Nutrients. 2022 Mar 16;14(6):1255. doi: 10.3390/nu14061255. PMID: 35334912; PMCID: PMC8949037.

4.    Antonio J, Candow DG, Forbes SC, Gualano B, Jagim AR, Kreider RB, Rawson ES, Smith-Ryan AE, VanDusseldorp TA, Willoughby DS, Ziegenfuss TN. Common questions and misconceptions about creatine supplementation: what does the scientific evidence really show? J Int Soc Sports Nutr. 2021 Feb 8;18(1):13. doi: 10.1186/s12970-021-00412-w. PMID: 33557850; PMCID: PMC7871530.

5.    Hall M, Manetta E, Tupper K. Creatine Supplementation: An Update. Curr Sports Med Rep. 2021 Jul 1;20(7):338-344. doi: 10.1249/JSR.0000000000000863. PMID: 34234088.

6.    Mills S, Candow DG, Forbes SC, Neary JP, Ormsbee MJ, Antonio J. Effects of Creatine Supplementation during Resistance Training Sessions in Physically Active Young Adults. Nutrients. 2020 Jun 24;12(6):1880. doi: 10.3390/nu12061880. PMID: 32599716; PMCID: PMC7353308.

7.    Tomcik KA, Camera DM, Bone JL, Ross ML, Jeacocke NA, Tachtsis B, Senden J, VAN Loon LJC, Hawley JA, Burke LM. Effects of Creatine and Carbohydrate Loading on Cycling Time Trial Performance. Med Sci Sports Exerc. 2018 Jan;50(1):141-150. doi: 10.1249/MSS.0000000000001401. PMID: 28806275.

8.    Kerksick CM, Wilborn CD, Roberts MD, Smith-Ryan A, Kleiner SM, Jäger R, Collins R, Cooke M, Davis JN, Galvan E, Greenwood M, Lowery LM, Wildman R, Antonio J, Kreider RB. ISSN exercise & sports nutrition review update: research & recommendations. J Int Soc Sports Nutr. 2017 Aug 1;15(1):38. doi: 10.1186/s12970-018-0242-y. PMID: 30068354; PMCID: PMC6090881.

L   Lilian Linck, Gustavo Rodrigues, Marcello Mascarenhas. La creatina, de la biosíntesis a la aplicación: un estudio de revisión. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 159, Agosto de 2011. http://www.efdeportes.com.

     Gualano B et al. Efeitos da suplementação de creatina sobre a força e hipertrofia muscular: atualizações. Rev Bras Med Esporte 16(3): 2010. https://doi.org/10.1590/S1517-86922010000300013.

     Deldicque L, Atherton P, Patel R, Theisen D, Nielens H, Rennie MJ, Francaux M. Effects of resistance exercise with and without creatine supplementation on gene expression and cell signaling in human skeletal muscle. J Appl Physiol (1985). 2008 Feb;104(2):371-8. doi: 10.1152/japplphysiol.00873.2007. Epub 2007 Nov 29. PMID: 18048590.

      Frederico SC et al. Efeitos da suplementação de creatina e do treinamento de potência sobre a performance e a massa corporal magra de ratos. Rev Bras Med Esporte 13(5): 2007. https://doi.org/10.1590/S1517-86922007000500004.

      José Peralta; Olga Maria Silverio Amancio. Creatine as an ergogenic supplement for athletes. Rev. Nutr., Campinas, 15(1):83-93, jan./abr., 2002. Disponível: https://doi.org/10.1590/S1415-52732002000100009.

      Koshy KM, Griswold E, Schneeberger EE. Interstitial nephritis in a patient taking creatine. N Engl J Med. 1999 Mar 11;340(10):814-5. doi: 10.1056/NEJM199903113401017. PMID: 10075534.

     Pritchard NR, Kalra PA. Renal dysfunction accompanying oral creatine supplements. Lancet. 1998 Apr 25;351(9111):1252-3. doi: 10.1016/s0140-6736(05)79319-3. PMID: 9643752.