VITAMINA C AUMENTA A MORTALIDADE EM PACIENTES COM SEPSE?
(Bônus: tudo o que você queria saber sobre a vitamina C, mas ninguém te
falou, agora está aqui)
JOELSO PERALTA, Nutricionista, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.
Olá pessoal, tudo bem? Um recente estudo, publicado na The New England Journal of Medicine (2022), causou supressa aos leitores quando mostrou que o uso de vitamina C aumentou a mortalidade em pacientes adultos, com sepse, internados em unidades de terapia intensiva (UTI), quando comparado ao uso de placebo. Isso mesmo, o uso de vitamina C, um antioxidante bastante famoso, aumentou a mortalidade em pacientes com sepse. Os próprios autores relataram: “Este foi um achado inesperado”. Quer dizer, inesperado porque a plausibilidade para o uso de vitamina C na sepse fazia bastante sentido e já existiam estudos anteriores sugerindo benefícios deste antioxidante. Então, que tal conhecer este estudo e aprofundar seus conhecimentos sobre a vitamina C? “Borá lá”!
CONHECENDO A VITAMINA C
No século XVI, o escorbuto se
popularizou como sendo uma doença dos marinheiros, caracterizada por fadiga, perda
de apetite, palidez, deformidade dentária, dificuldade para a cicatrização de
feridas e presença de hemorragias. O problema, principalmente entre os
marinheiros que viviam por vários meses em alto mar, era revertido com a
ingestão de suco de limão com repolho e suco de limão com laranja.
Posteriormente, associou-se à doença (escorbuto) com a deficiência severa de
vitamina C (ácido ascórbico) no organismo, já que a falta de vitamina C causa enfraquecimento
das estruturas colágenas (com má cicatrização da ferida) e imunidade
prejudicada (com susceptibilidade para infecções potencialmente fatais, como a pneumonia).
Mas porque limão, laranja e repolho? Bem, um (01) limão pequeno (165 g) contém
87,45 mg de vitamina C, segundo Manuela Pacheco (Tabela de Equivalentes,
Medidas Caseiras e Composição Química dos Alimentos. 2.ed. Rio de Janeiro:
Editora Rubio, 2011). De acordo com Manuela Pacheco (2011), uma (01) laranja
pequena (140 g) contém 74,48 mg de vitamina C. Todavia, usando a mesma tabela
de composição química de alimentos, o repolho teria apenas traços de vitamina C,
o que diverge de outras tabelas para auxilio nutricional de alimentos. Por
exemplo, consultando a tabela da Ana Beatriz Vieira Pinheiro et al. (Tabela
para Avaliação de Consumo Alimentar em Medidas Caseiras. 5.ed. São Paulo:
Atheneu, 2008), o repolho (cru), em 100 g, contém 43 mg de vitamina C (onde uma
folha média de repolho contém 12,90 mg de vitamina C). Quer dizer, duas coisas
podemos concluir: primeiro, limão, laranja e repolho fornecem vitamina C aos
marinheiros; e segundo, estes marinheiros não estavam se alimentando muito bem
(desnutridos). Aí, você pensa: a laranja não seria na maior fonte de vitamina C
e, portanto, só ela bastaria neste suco? Calma, deixa-me lhe apresentar as devidas
comparações (em um padrão de 100 g de alimento) destacando algumas boas fontes
de vitamina C e aposto que ficará surpreso(a). A informação abaixo segue usando
a tabela de Manuela Pacheco:
Quantidade de vitamina C, em 100 g de alimento:
1677 mg = Acerola
219 mg = Caju
184 mg = Goiaba
98 mg = Kiwi
78,5 mg = Mamão formosa
61,8 mg = Mamão papaya
56,7 mg = Morango
53,2 mg = Laranja
53 mg = Limão
Como você pode observar, a acerola é uma importante fonte de vitamina C
(1677 mg), embora nem sempre consumida pela população. Ao mesmo tempo, o caju (219
mg) e a goiaba (184 mg) são outras boas fontes, seguido de kiwi (98 mg), mamão
(78,5 mg no formosa; 61,8 mg no papaya) e morango (56,7 mg). Laranja (53,2 mg) e
limão (53 mg) são as frutas mais famosas por conter vitamina C (não é mesmo?),
embora sua quantidade (em 100 g) seja bem inferior a acerola, por exemplo. Segundo
Anitra C. Carr e Silvia Maggini (Vitamin C and Immune Function. Nutrients 9: 1211, 2017; doi: 10.3390/nu9111211),
somente 10 mg/dia de vitamina C são necessários para prevenir o escorbuto
(portanto, os marinheiros do século XVI estavam se alimentando bem mal).
Retomando a vitamina C, o químico e bioquímico Linus Carl Pauling (ou,
simplesmente, Linus Pauling) (1901-1994), vencedor de dois prêmios Nobel
(química e paz), descobriu a importância da vitamina C para a saúde, mas não
foi ele quem descobriu a estrutura química desta vitamina. A vitamina C foi
descoberta pelo cientista bioquímico norte-americano Charles Glen king
(1896-1988), em 1932. Pauling, contudo, trouxe inúmeras contribuições para a
ciência que vão além da vitamina C: estudo do núcleo atômico, mecânica
quântica, biologia molecular, estudos das reações catalisadas por enzimas, entre
outras. Todavia, Pauling, por volta de 1975, foi acusado de charlatanismo em
seus discursos de que a vitamina C poderia prevenir gripes e resfriados (muita
gente acredita até hoje, não é?) e, até mesmo, curar doenças como o câncer.
Dizem (pois a história se perde no tempo e, portanto, “dizem”), que Pauling
administrava para si mesmo altas doses de vitamina C (5, 6, 10 e, até mesmo, 18
g de vitamina C) para prevenir gripes e resfriados, bem como curar o câncer
(“dizem” que Pauling faleceu devido complicações do câncer de estômago; outros
“dizem” câncer de próstata; e outros ainda “dizem” câncer de fígado). De
qualquer forma, meu objetivo não é descrever a vida e morte de Pauling (faça
sua pesquisa), mas, sim, falar um pouquinho da vitamina C antes de abordar o
estudo previamente referido.
A vitamina C (ácido ascórbico) é absorvida no intestino delgado (transporte
ativo dependente de sódio), cujo excesso é excretado na urina. Trata-se de um antioxidante
hidrossolúvel, capaz de interagir diretamente com o radical livre superóxido (O2–·) e oxigênio singlet (1O2),
bem como regenera a vitamina E (tocoferol). Peraí, vamos por partes:
O que são
antioxidantes?
Antioxidante é qualquer
substância que, quando presente em baixa concentração quando comparada ao
substrato oxidável, regenera o substrato ou previne significativamente a
oxidação do mesmo. Existem antioxidantes endógenos (enzimas antioxidantes) e
exógenos (obtidos através da dieta e suplementação). Todavia, gosto mais da
classificação de antioxidantes enzimáticos e não-enzimáticos, por exemplo:
Antioxidantes enzimáticos: superóxico dismutase (SOD),
glutationa peroxidadase (GPX), catalase (CAT) e tioredoxina redutase (TRR)
[Quer dizer, aqui você observa facilmente as enzimas, portanto, antioxidantes
endógenos].
Antioxidantes não-enzimáticos: lipossolúveis (vitamina E, vitamina A
e beta-caroteno) e hidrofílicos (vitamina C, gutationa reduzida ou GSH, ácido
úrico plasmático, tioredoxina, bilirrubinas e polifenóis) [Quer dizer, essa
classificação não se limita aos antioxidantes obtidos pela dieta e, portanto, é
mais completa].
Claro, existem outros antioxidantes: proteínas de choque térmico (HSPs),
proteínas com grupamento sulfidrila (N-Acetil-L-cisteína, NAC), ceruloplasmina
(ferroxidase ou ferro(II):oxigênio oxidorredutase), coenzima Q (ubiquinona),
melatonina, hormônios sexuais (acredita-se que o estrogênio tenha papel
antioxidante, além de anti-apoptótico), bioflavonóides e alguns minerais
(selênio, zinco e magnésio).
O que são radicais
livres?
Radical livre (RL) é uma espécie química, de existência independente,
que contenha um ou mais elétrons desemparelhados (solitários), ocupando o
orbital mais periférico, capaz de atacar qualquer biomolécula para assegurar
sua estabilidade. Quer dizer, os radicais livres (RLs) são altamente instáveis
e reativos e, dessa forma, na busca pela estabilidade vão verdadeiramente
“roubar” elétrons de outras biomoléculas (causando danos em lipídeos de
membrana, dano em enzimas e proteínas e, até mesmo, dano ao DNA nuclear). Os
danos em lipídeos da bicamada lipídica são estudados como lipoperoxidação ou
peroxidação lipídica, produzindo fragmentos de aldeídos que podem ser medidos e
estudados. O dano em proteína pode ser problemático, pois leva a desnaturação
proteica e, consequentemente, perda da função proteica no organismo. Todavia, o
dano ao DNA (ácido desoxirribonucleico), como ataque da guanina para formação
de 8-hidroxideoxiguanosina (8-OHdG) pode resultar em mutações gênica, incluindo
o câncer.
Neste sentido, o ânion superóxido (O2–·), produzido pelo escape eletrônico na
cadeia respiratória mitocondrial, é um radical livre (RL), pois possui um
elétron desemparelhado. O oxigênio singlet ou singlete (1O2)
é uma forma mais reativa do oxigênio molecular (O2), mas não é um RL.
Todavia, tanto o superóxido (O2–·), quanto o oxigênio singlet (1O2),
podem ser prejudiciais ao organismo. Dessa forma, devemos falar em Espécies Reativas de Oxigênio (ROS, Reactive Oxygen Species), que
engloba os radicais livres.
São Espécies Reativas de Oxigênio (ROS), ou seja, espécies derivadas do
O2 molecular: ânion superóxido (O2–·), oxigênio singlet (1O2),
peróxido de hidrogênio (H2O2) e radical hidroxil (OH·). Perceba que nem todos os ROS são RLs,
mas todos os RLs são ROS. Explicando melhor: o ânion superóxido (O2–·) e o radical hidroxil (OH·) são RLs e também são ROS; enquanto
que o oxigênio singlet (1O2) e o peróxido de hidrogênio
(H2O2) são ROS, mas não são RLs. Parece confuso? Não é,
leia novamente! Pensando bem, pretendo elaborar um post falando especificamente
dos antioxidantes, RLs, ROS, espécies reativas do nitrogênio (RNS), peróxidos
lipídicos, 8-OHdG (8-hidroxideoxiguanosina), estresse oxidativo e estresse
redutivo, aguardem! Contudo, para melhor entendimento deste post, lembre-se que
estresse oxidativo é o desbalanço
entre as defesas antioxidantes e os pró-oxidantes a favor dos pró-oxidantes
(por isso, estresse de caráter oxidativo).
Com base nisso, podemos resumir, perguntando:
Quais são as funções
da vitamina C?
A vitamina C (ácido ascórbico) é um antioxidante hidrossolúvel, capaz de
interagir diretamente com o radical livre superóxido (O2–·) e oxigênio singlet (1O2).
Em outras palavras, a vitamina C pode prontamente doar elétrons, protegendo as biomoléculas
(proteínas, lipídios, carboidratos e ácidos nucleicos) contra os danos oxidativos
gerados pelo metabolismo celular ou referentes a exposição de toxinas e
poluentes (por exemplo, fumaça de cigarro).
Os seres humanos não podem sintetizar a vitamina C e, portanto,
necessitam desta vitamina através da dieta e/ou suplementação. Aliás, a
ingestão diária pode prevenir a hipovitaminose por vitamina C. De acordo com Anitra
C. Carr e Silvia Maggini (Vitamin C and Immune Function. Nutrients 9: 1211, 2017; doi: 10.3390/nu9111211), a hipovitaminose
C (vitamina C plasmática < 23 μmol/L) é relativamente comum em populações
ocidentais, enquanto que a deficiência de vitamina C (<11 μmol/L) é a quarta
deficiência de nutrientes líder nos Estados Unidos.
Além disso, a vitamina C pode regenerar a vitamina E (tocoferol), que é
um antioxidante lipossolúvel. Porém, não acabou, pois a vitamina C participa
das reações de hidroxilação da prolina e lisina para a síntese de colágeno no
tecido conjuntivo (o que explicaria alguns dos sintomas na doença dos
marinheiros: escorbuto) e está envolvida na síntese de L-carnitina (necessária
para a beta-oxidação de ácidos graxos na mitocôndria celular), epinefrina (EP),
norepinefrina (NE) e serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT). Quer dizer, a
vitamina C é cofator enzimático nas reações biossintéticas de L-carnitina e
neurotransmissores.
Outros papéis foram associados a vitamina C, por exemplo, regulação da
transcrição gênica e vias de sinalização celular. Por exemplo, regulação do fator
induzido por hipóxia-1-alpha (HIF-1a), que regula os processos transcricionais
de resposta celular e desenvolvimento de hipóxia. A vitamina C também regula a metilação
de histonas, desempenhando um papel na transcrição gênica e epigenética. Epigenética, resumidamente, seria a capacidade
do corpo humano em ativar ou desativar alguns genes de acordo com o ambiente,
hábitos e estilo de vida das pessoas, porém sem alterar a sequência de
nucleotídeos do DNA. Em outras palavras, a epigenética modifica o fenótipo (características
físicas, morfológicas e comportamentais) sem alterar o genótipo (relativo aos
genes). É um ramo fantástico de estudo, pois estuda o impacto da dieta,
tabagismo, alcoolismo, exposição a agrotóxicos, poluentes e drogas em seres
humanos, onde fica a pergunta: esses fatores podem causar modificações epigenéticas
que poderiam ser herdadas através das gerações? Claro, se você já ouviu falar
em genética e epigenética, certamente deve ter escutado o termo nutrigenética. Nutrigenética, por sua vez, é o ramo da
nutrição, aliado a genética, que busca desvendar o impacto da alimentação em
nossos genes. Ou, em outra forma de pensar, como o DNA da cada pessoa responde aos
alimentos e nutrientes (além de muita “porcaria” ingerida) obtidos através da
alimentação. As respostas, obviamente, podem impactar totalmente na conduta
alimentar, permitindo condutas mais assertivas, inclusive na relação saúde e
doença. Óbvio, também, que condutas mais assertivas permitiriam maior adesão dos
pacientes ao plano alimentar, mas aí o assunto vai longe e precisaríamos de
outro post (quem sabe, no futuro, vou pensar).
A vitamina C também é importante
para absorção, depósito e transporte de ferro não-heme, bem como tem ação na
conversão de colesterol em sais (ácidos) biliares. Atualmente, especialmente em
virtude da pandemia de Covid-19, discute-se muito o papel da vitamina C no
sistema imunológico. Isso faz bastante sentido, afinal a vitamina C é necessária
para função fagocitária (neutrófilos e macrófagos), melhorando a imunidade
celular; e participa da integridade da barreira epiteliais (melhora a síntese e
estabilização de colágeno, aumenta a diferenciação de queratinócitos e melhora
a proliferação e migração de fibroblastos) e da função de leucócitos (melhora
diferenciação e proliferação de linfócitos T e B, bem como melhora os níveis de
anticorpos). Para maiores informações, aconselha-se a
leitura: Anitra C. Carr e Silvia Maggini. Vitamin C and Immune Function. Nutrients 9: 1211, 2017 (doi: 10.3390/nu9111211).
Enfim, a carência de vitamina C está associada ao estilo e hábitos de
vida (estresse e tabagismo, por exemplo), mas seus baixos níveis também são observados
nas infecções e doenças (sepse, por exemplo). Vou exemplificar: um (01) cigarro
consegue neutralização cerca de 25 mg de vitamina C. Neste caso, considerando
uma carteira de cigarros (ou seja, 20 cigarros), a neutralização seria de 500
mg de vitamina C. Outro exemplo: pacientes com diabetes tipo 2 (DM2) apresentam
baixos níveis de vitamina C (Wilson R. et al. Inadequate Vitamin C Status in
Prediabetes and Type 2 Diabetes Mellitus: Associations with Glycaemic Control,
Obesity, and Smoking. Nutrientes
9:997, 2017; doi: 10.3390/nu9090997) e, como sabemos, DM2 é uma importante complicação
de saúde em virtude da resistência periférica à insulina e maior risco para infecções
(influenza e pneumonia) (Peleg A.Y. et al. Common infections in diabetes:
pathogenesis, management and relationship to glycaemic control Diabetes Metab. Res. Rev. 23:3-13, 2007;
doi: 10.1002/dmrr.682).
É muita informação, não é mesmo? Pois bem, vamos resumir:
1 – Antioxidante hidrossolúvel, capaz de interagir diretamente com o
radical livre superóxido (O2–•) e oxigênio singlet (1O2);
2 – Regeneração da vitamina E (tocoferol), protegendo, assim, as membras
biológicas (inclusive preveni a oxidação da LDL, lipoproteína de baixa
densidade);
3 – Participa das reações de hidroxilação da prolina e lisina para a
síntese de colágeno no tecido conjuntivo;
4 – É cofator para síntese de L-carnitina, epinefrina (EP),
norepinefrina (NE) e serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT);
5 – Regula a transcrição gênica e as vias de sinalização celular, por
exemplo, regula o fator induzido por hipóxia-1-alpha (HIF-1a);
6 – Regula o DNA e a metilação de histonas, desempenhando um papel na transcrição
gênica e epigenética;
7 – É importante para absorção, depósito e transporte de ferro não-heme,
bem como tem ação na conversão de colesterol em sais (ácidos) biliares;
8 – Atua no sistema imunológico: função fagocitária (neutrófilos e
macrófagos) e integridade da barreira epiteliais, bem como função de leucócitos
(diferenciação e proliferação de linfócitos T e B).
Agora, sim, podemos discutir o estudo publicado na The New England Journal of Medicine (2022).
VITAMINA C EM ADULTOS COM SEPSE NA UTI
Um estudo randomizado, controlado por placebo (portanto, elevado grau de
evidência científica), recentemente publicado por François Lamontagne et al.
(2022), na The New England Journal of
Medicine (Intravenous Vitamin C in Adults with Sepsis in the Intensive Care
Unit, doi: 10.1056/NEJMoa2200644), em pacientes adultos com sepse nas unidades
de terapia intensiva (UTI), mostrou que o uso vitamina C intravenosa (50 mg/kg
peso/dia) aumentou o risco de morte ou disfunção orgânica persistente (definida
pelo uso de vasopressores, ventilação mecânica invasiva ou nova terapia de
substituição renal). Peraí, vamos por partes:
O que é sepse?
A sepse (ou septicemia) é uma disfunção orgânica com risco de vida para
pacientes críticos em unidades de terapia intensiva (UTI) em virtude da
resposta inflamatória desregulada com liberação de citocinas pró-inflamatórias
afetando todo o organismo. Também se observa a presença de estresse oxidativo,
ativação do fator nuclear kappa B (NFkB), hipóxia tecidual, trombose
microvascular, hipotensão sistêmica, disfunção mitocondrial com depleção de adenosina
trifosfato (ATP), hipotensão, cardiomiopatia e disfunção de múltiplos órgãos. A
sepse é desencadeada pela invasão de agentes infecciosos (por exemplo, vírus e
bactérias) na corrente sanguínea. Na sepse, existem sintomatologias típicas:
alteração da temperatura corporal (maior que 38ºC ou menor que 35ºC), elevação
da frequência cardíaca (maior que 90 batimentos por minuto, ou seja, > 90
bpm) e respiratória (maior que 20 incursões respiratórias por minuto) e
alteração em leucócitos (leucocitose = aumento no número de leucócitos, maior
que 12.000 células/mm3; ou leucopenia = redução no número de
leucócitos, menor que 4.000 células/mm3). A sepse é responsável pela
morte de 8 milhões de pessoas a cada ano no mundo. Obviamente é uma condução
drástica que requer um tratamento imediato, pois a inflamação sistêmica pode
conduzir ao óbito e, por isso, os pacientes são tratados em UTI.
Retomando o estudo, existia muita plausibilidade para o uso de vitamina
C na sepse, devido presença de estresse oxidativo e ativação de NFkB, o que gerou
alguns estudos anteriores (in vitro e
com animais). Os objetivos deste estudo randomizado foram determinar se a
vitamina C intravenosa, em comparação com o placebo, poderia reduzir a mortalidade
e a morbidade na sepse induzida por patógenos bacterianos e virais. Em seguida,
comparar as medidas clínicas e bioquímicas de disfunção de órgãos e qualidade
de vida relacionada à saúde aos 6 meses. Portanto, o desfecho primário era
morbimortalidade (pacientes falecidos ou com disfunção persistente de órgãos) em
pacientes adultos com sepse quando eram administrados vitamina C ou placebo.
Para tanto, o estudo contou com 872 pacientes adultos, registramos em 35
UTIs médico-cirúrgicas no Canadá, França e Nova Zelândia, que foram randomizados
aleatoriamente em dois grupos:
Grupo VC (vitamina C): 435 pacientes para o grupo de
vitamina C (50 mg de vitamina C por quilograma de peso corporal por dia – 50
mg/kg/dia – em 50 ml de uma solução com 5% de dextrose em água, durante 30 min
a 60 min, e a cada 6h, por 96 horas);
Grupo CRTL (controle): 437 pacientes para o grupo controle
(placebo = 0,9% NaCl, solução salina, soro fisiológico, no mesmo tempo de
administração).
Quer dizer, vitamina C ou placebo foram administrados por 96 horas (4
dias) e, agora, vejamos os critérios de inclusão e exclusão para participar do
estudo:
Critérios de inclusão: pacientes admitidos na unidade de
terapia intensiva (UTI), internados em menos de 24 horas, com infecção
comprovada ou suspeita como diagnóstico principal; e pacientes tratados
atualmente com uma infusão contínua de vasopressores (norepinefrina,
epinefrina, vasopressina, dopamina e fenilefrina).
Critérios de exclusão: pacientes internados em UTI acima de
24 horas; pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PDH,
doença hereditária que afeta os eritrócitos, causando anemia hemolítica); gravidez;
alergia conhecida à vitamina C; litíase renal (pedras nos rins) conhecida no
último 1 ano; que recebeu qualquer vitamina C intravenosa durante esta
internação, a menos que incorporada à nutrição parenteral; morte esperada ou
retirada de tratamentos que sustentam a vida dentro de 48 horas.
Com base nisso, quais foram os achados?
O desfecho primário ocorreu em 191 de 429 pacientes (portanto, 44,5%) no
grupo de vitamina C (grupo VC); e em 167 dos 434 pacientes (portanto, 38,5%) no
grupo controle (grupo CRTL). Aos 28 dias, o óbito ocorreu em 152 dos 429
pacientes (35,4%) no grupo VC; e em 137 dos 434 pacientes (31,6%) no grupo CTRL.
A disfunção persistente de órgãos ocorreu em 39 dos 429 pacientes do grupo VC (9,1%);
e em 30 de 434 pacientes do grupo CRTL (6,9%).
Os autores concluíram que, em adultos com sepse, internados na UTI e
recebendo terapia vasopressora, a administração de vitamina C intravenosa
resultou em maior risco de morte ou disfunção persistente de órgãos aos 28 dias
do que o recebimento de placebo. Segundo os autores, este foi um achado
inesperado, pois existia plausibilidade para o uso de vitamina C na sepse e
estudos anteriores também haviam levantado essa hipótese. Quer dizer, estudos in vitro mostravam benéficos da vitamina
C potencializando, por exemplo, a ação da epinefrina (EP) via receptores beta-adrenérgicos,
bem como redução da inflamação medida pela redução do fator de necrose tumoral
(TNFa) e da molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1). Ao mesmo tempo, em ratos
feridos termicamente, a vitamina C reduziu o edema. Todavia, em animais (ratos
sépticos), a vitamina C não mostrou benefícios em parâmetros fisiológicos e seu
excesso foi excretado na urina. O fato é: até o momento não existiam grandes
ensaios clínicos randomizados, com seres humanos, sobre os efeitos da vitamina
C na sepse e choque séptico. Porém, agora temos e os resultados não foram
animados para os adoradores da vitamina C.
VITAMINA C AUMENTA A MORTALIDADE?
O estudo publicado na The New
England Journal of Medicine (2022), que é um “baita” estudo, afinal é
randomizado e controlado por placebo, com um número expressivo de pacientes, registrados
em 35 UTIs do Canadá, França e Nova Zelândia, não faz qualquer menção sobre o
mecanismo de ação (ou farmacodinâmica) que poderia explicar o maior risco de
morte e disfunção persistente de órgãos em pacientes adultos com sepse. De
qualquer forma, a ciência não está nem aí para nossa “opinião”, caso não tenha
gostado dos resultados e seja um “fã” da vitamina C. Em outras palavras, a
hipótese foi devidamente testada e os resultados foram devidamente publicados. Neste
sentido, o uso de vitamina C em adultos com sepse não é recomendado e, pior,
pode aumentar a mortalidade nestes pacientes.
Para nós resta apenas especular
sobre os achados, que farei neste momento (sem qualquer pretensão de invalidar
o excelente estudo). Em outras palavras, “perguntar não ofende”.
Primeiro, poderá observar que a idade média dos pacientes era elevada
nos dois grupos randomizados (65 anos), portanto, idosos. Ser idoso (e já fragilizado
pela sepse) pode ter contribuído para um desfecho primário ruim (ou
inesperado)? A vitamina C pode ter seu papel antioxidante não completamente
atuante em um indivíduo de idade avançada?
Segundo, 37 pacientes (8,6%) dos 429 do grupo vitamina C tinham PCR-RT
positivo para SARS-CoV-2 (Covid-19). Aliás, 33,8% (145 dos 429 do grupo
vitamina C) tinham complicações pulmonares importantes. Então, a Covid-19 (que
ainda temos muito para aprender) ou complicações pulmonares pode ter
interferido nos resultados do desfecho primário?
Terceiro, a recomendação de vitamina C para adultos, segundo a Ingestão
Dietética de Referência (DRIs, Dietary
Reference Intakes), é 60 mg/dia para mulheres e de 75 mg/dia para homens.
Essa recomendação de vitamina C também se aplica em idosos. Já a ingestão
máxima tolerada (UL, tolerable upper
intake level) é de 2000 mg/dia (2 g/dia). Pois bem, o estudo trabalhou com 50
mg/kg peso/dia que, exemplificando, teríamos: 3250 mg/dia de vitamina C para
uma mulher de 65 kg (50 mg x 65 kg = 3250 mg) e 3750 mg/dia para um homem de 75
kg (50 mg x 75 kg = 3750 mg/dia). Portanto, essa é uma dose bem tolerada para
pacientes idosos, já debilitados pela sepse, internados em UTI? OK, as doses
elevadas já foram usadas em outros estudos e, segundo autores, as doses maiores
foram associadas a redução dos escores da Avaliação Sequencial de Falência de
Órgãos (SOFA, Sequential Organ Failure
Assessment) em um período de 4 dias, justificando a dosagem.
Quarto, os seres humanos são incapazes se sintetizar vitamina C, enquanto
que pacientes criticamente enfermos tem seus níveis marcadamente diminuídos.
Cabe lembrar que a ingestão diária de vitamina C acima da 2 g/dia (UL) pode
causar náuseas e diarreia, além de interferir no equilíbrio fisiológico entre
antioxidantes e pró-oxidantes. Sendo assim, porque não 500 mg/dia ou 1g/dia?
Por que não respeitar 2 g/dia (UL)? Na forma oral (o estudo usou vitamina C
intravenosa), a absorção de vitamina C declina rapidamente com a ingestão acima
de 500 mg/dia e, seu excesso, pode ser acilmente excretado na urina.
Quinto, existem estudos associando a deficiência ou insuficiência de
vitamina D em pacientes com sepse. De fato, a vitamina D regula processos imunológicos
e inflamação, além de exercer papel na proteção celular endotelial. Existem,
aliás, inúmeros estudos sobre as ações não calcêmicas (ou seja, que não se limitam ao cálcio e
massa óssea) da vitamina D. Dessa forma, o estudo em questão não avaliou os
níveis de vitamina D nos pacientes e, portanto, uma correção da vitamina C pode
não ter compensando um desequilíbrio não percebido da vitamina D na sepse?
Sexto, qual agente infeccioso estaria relacionado a sepse nestes
pacientes? Quer dizer, não foram coletados dados relativos aos diferentes
patógenos (bactérias e vírus) em indivíduos adultos, mas será que isso poderia
interferir na ação da vitamina C? Em outras palavras, o que mudaria na presença
de Estafilococos, Streptococcus, Escherichia coli, Shigella,
Espiroquetas e Neisseria? E se fossem vírus, o que mudaria? Afinal, "existem mais
vírus no planeta do que estrelas no universo", segundo uma matéria interessante
na National Geographic:
Nota: “Existem mais vírus do que estrelas no universo. Por que apenas alguns
nos infectam?”, matéria veiculada na National Geographic (https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/virus-doencas-saude-patogenos-covids-19-sars-pandemia-coronavirus-hospedeiro).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vitamina C (ácido ascórbico), um antioxidante hidrossolúvel, não
deixou (e não deixará) de ser a “queridinha” das pessoas. Para a população, em
geral, um excesso de vitamina C pode contribuir para distúrbios
gastrintestinais, além de favorecer a formação de oxalato de cálcio (pedras).
No passado, um estudo publicado por Sven-Olaf Kuhn et al., em 2018 (Vitamin C
in Sepsis. Curr Opin Anesthesiol 31(1): 55-60, 2018, doi:
10.1097/ACO.0000000000000549) dizia que as evidências in vitro sustentam um papel crítico da vitamina C em mecanismos
celulares relevantes na fisiopatologia da sepse. Os autores também diziam que o
uso terapêutico de vitamina C em pacientes sépticos permanece incerto. Agora,
contudo, com a publicação da The New
England Journal of Medicine, em 2022 (François Lamontagne et al. Intravenous
Vitamin C in Adults with Sepsis in the Intensive Care Unit, doi: 10.1056/NEJMoa2200644),
essa incerteza foi embora, percebeu?
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