segunda-feira, 19 de agosto de 2024

TESTOSTERONA BAIXA É UM PROBLEMA?

 

TESTOSTERONA BAIXA É UM PROBLEMA?  

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando em Ciências Biológicas: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.




Olá pessoal, tudo bem? Nos últimos meses tenho observado alguns pacientes, homens, com menos de 50 anos, com baixos níveis de testosterona total e livre no exame de sangue. Alguns estavam preocupados, enquanto que outros nem tanto. Todavia, uma pergunta comum sempre surgia: testosterona muito baixa é um problema e será que devo repor? Gostaria de opinar sobre este assunto com base em meujs estudos e experiência clínica. Essa matéria não discutirá os níveis de testosterona e reposição hormonal em mulheres, embora farei comentários breves.  

 

COMO FUNCIONA A REGULAÇÃO DA TESTOSTERONA?

A testosterona é um hormônio esteroide secretado pelas células de Leydig dos testículos em homens, sendo regulada pelo eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Quer dizer, o hipotálamo secreta o hormônio hipotalâmico de liberação das gonadotrofinas (GnRH), que estimula a hipófise anterior (adeno-hipófise) quanto a secreção do hormônio luteinizante (LH) e do hormônio folículo-estimulante (FSH). LH promove esteroidogênese (formação e secreção de testosterona), enquanto que FSH participa da espermatogênese (formação de espermatozóides).

O eixo hipotálamo-hipófise também é regulado por retroalimentação negativa, ou seja, um excesso na produção de testosterona inibe sua própria síntese. Ao mesmo tempo, o hormônio inibina, secretado pelas céulas de Sertoli dos testículos, inibe a adeno-hipófise.

Por fim, a zona reticulosa do córtex adrenal (glândula suprarrenal) produz e secreta uma pequena quantidade de andrógenos (DHEA ou desidroepiandroterona, testosterona e androstenodiona), que reflete em uma pequeníssima quantidade de andrógenos circulantes em mulheres. A glândula suprerrenal é estimulada pelo hormônio adrenocorticotrópico (ACTH), derivado da adeno-hipófise. Aliás, a produção de andrógenos, em mulheres, que é pequena, ocorre a partir das glândulas suprarrenais e ovários.

Não faça confusão: o ACTH também pode estimular a glândula suprarrenal para produzir cortisol e aldosterona, mas aí é assunto para outra matéria.

 

QUAIS SÃO OS NÍVEIS ACEITÁVEIS DE TESTOSTERONA?

Em homens, os níveis de testosterona oscilam entre 2,5 a 11 mg/dia (17,5 a 77 mg/semana) e, nas mulheres, os níveis oscilam de 0,2 a 0,4 mg/dia (1,4 a 2,8 mg/semana). Isso mesmo: os níveis de testosterona são absurdamente baixos em mulheres quando comparado aos homens.

Os laboratórios de análise clínicas trazem os seguintes valores de referência: testosterona total (soro) de 240 a 850 ng/dL para homens; e 10 a 80 ng/dL para mulheres. Para testosterona livre (soro), os valores são 130-640 pmol/L para homens e 2,4-37,0 pmol/L para mulheres. Isso mesmo: os níveis de testosterona total e livre, em mulheres, são naturalmente baixos quando comparados aos homens.

Portanto, a reposição de testosterona em mulheres é polêmica e discutível, onde os maiores especialistas no assunto não recomendam.

Não faça confusão: existe reposição de estrógenos e outros hormônios em mulheres, que pode ser assunto para outra matéria aqui.

 

BAIXOS NÍVEIS DE TESTOSTERONA SÃO PREOCUPANTES?

Em homens jovens, não há necessidade de reposição de testosterona quando os valores são iguais ou superiores a 350 ng/dL. Todavia, os valores abaixo de 240 ng/dL geram preocupação e necessidade de esclarecimentos com médico de confiança. Neste caso, solicita-se uma investigação detalhada: testosterona total e livre, LH, FSH, DHEA, DHT (diidrotestosterona), SHBG (proteína de ligação para hormônios sexuais), E2 (estradiol) e PSA (antígeno prostático específico).

Os baixos níveis de testosterona, nestes homens jovens, é preocupante pelos seguintes motivos: queda da libido, perda da força e massa muscular (sarcopenia), aumento da gordura corporal (adiposidade ou dificuldade para perder gordura corporal) e perda da densidade mineral óssea (DMO). Alguns pacientes também relatam fadiga e letargia, ansiedade e depressão, disfunção erétil, menor tolerância ao esforço físico e prejuízos na memória e concentração. Além disso, estudos relacionam os baixos níveis de testosterona com desfechos clínicos desfavoráveis, incluindo sarcopenia, risco aumentado para contrair infecções respiratórias e prejuízos na contratilidade cardíaca.  

Não faça confusão: as doses suprafisiológicas de testosterona, obtidas através do uso (abuso) de esteroides anabólico-androgênicos (EAA), não estão sendo debatidos aqui. Aliás, o uso de EAA para fins estéticos não é foco desta matéria.

 

SERÁ QUE DEVO REPOR MINHA TESTOSTERONA?

A melhor resposta é DEPENDE. Deixa-me explicar melhor.

Primeiro, DEPENDE da opinião de seu médico. Uma possível terapia de reposição hormonal (TRH) deve ser realizada e acompanhada pelo seu médico, onde endocrinologistas me parecem ser os profissionais mais adequados para uma conversa franca e direta. Este profissional, além de investigar a testosterona e outros marcadores bioquímicos, irá observar os relatos (sinais e sintomas) descritos pelo paciente, que podem estar prejudicando a qualidade de vida deste. Todavia, cuidado com as promessas da chamada Medicina Anti-Aging Funcional Integrativa e blábláblá. Lembre-se: a medicina anti-aging não é uma especialidade reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). As coisas devem ser tratadas com seriedade.

Segundo, DEPENDE das contraindicações. Sim, existem situações onde a TRH não é indicada: suspeita (atual ou pregressa) de câncer ou de condições malignas mediadas por hipersensibilidade à testosterona ou estrógenos, hemorragia genital não diagnosticada, hiperplasia prostática, atual tromboembolismo venoso, ativo ou recente doença arterial tromboembólica ou hipertensão arterial descontrolada ou não tratada, insuficiência cardíaca ou qualquer distúrbio grave em cardiomiócitos, doença hepática ativa, porfiria cutâneo tardia (uma doença do grupo Heme da hemoglobina) e hematrócrito elevado (acima de 50%). O foco desta postagem são os homens, mas existem contraindicações para mulheres: hiperplasia endometrial e câncer de mama, além dos itens já mencionados (hipertensão, tromboembolismo, alteração cardíaca, doença hepática e hematrócito elevado).

Terceiro, DEPENDE de seu bom senso, que seria a capacidade de agir de forma coerente, sensata e inteligente. Quer dizer, não seja enganado: não existem alimentos e/ou suplementos que possam colocar sua testosterona nas “nuvens” do dia para a noite. Seria muita inocência sua acreditar nisso. Todavia, já falei neste Blog de outros recursos que aumentam testosterona, incluindo o exercício físico e qualidade do sono. Além disso, uma possível TRH (decorrente dos baixos níveis de testosterona em homens jovens) não é para ficar mais bonito, charmoso, atraente ou musculoso (embora possa lhe trazer benefícios estéticos), mas, sim, uma questão de saúde e qualidade de vida.

 

Enfim, existem inúmeras formas de repor sua testosterona sob acompanhamento médico (eu disse: médico), incluindo injeções intramusculares de testosterona e derivados, adesivos e gel de testosterona, comprimidos ou cápsulas hormonais e, até mesmo, implantes hormonais. Uma dica importante, geralmente negligenciada, é o acompanhamento da TRH.



segunda-feira, 29 de julho de 2024

SUPLEMENTAÇÃO DE CREATINA: 4 perguntas cruciais

 

SUPLEMENTAÇÃO DE CREATINA: 

respondendo 4 perguntas cruciais

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando em Ciências Biológicas: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.



Olá pessoal, tudo bem? A creatina é um dos suplementos mais populares entre os esportistas e atletas e, provavelmente, aquele que mais possui embasamento científico. Em uma busca simples no PubMed, nos últimos 5 anos, encontrará facilmente mais de 800 estudos. Se refinar sua pesquisa para a suplementação de creatina no exercício e no esporte, terá quase 300 estudos. E, se filtrar ainda mais para ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises, encontrará mais de 150 estudos. Portanto, a literatura é vasta sobre a suplementação de creatina e, mesmo assim, as pessoas (incluindo os profissionais de saúde) se questionam: a suplementação de creatina requer a fase de sobrecarga e manutenção? Devo usar creatina antes ou depois do treino? A suplementação de creatina requer a necessidade de carboidrato? Existe dano renal associado à suplementação de creatina? Com base nisso, resolvi abordar rapidamente este assunto através de perguntas e respostas, porém baseado em evidências. Boa leitura!

 

Pergunta #1:

A SUPLEMENTAÇÃO DE CREATINA REQUER UMA FASE DE SOBRECARGA E MANUTENÇÃO?

No passado, acredita-se que a suplementação de creatina era eficaz quando realizado em 2 fases: uma fase de sobrecarga (consumo de creatina por 5 a 7 dias com 20 a 25 g/dia), seguido de uma fase de manutenção (3 a 5 g/dia por vários meses). Atualmente, sabe-se que os resultados quanto a hipertrofia muscular, bem como na força, nos depósitos de fosfocreatina intramuscular e no auxílio da glicogênese (biossíntese de glicogênio muscular), são similares sem a necessidade da fase de sobrecarga de creatina.

Deixa-me exemplificar: a suplementação com 3 a 5 g/dia de creatina monoidratada, sem um período de sobrecarga, aumenta a creatina total e fosfocreatina intramuscular em 16 a 22%; a força também aumenta, verificado por 1 repetição máxima (1RM) em exercícios básicos para os membros superiores (p.ex.: supino) e membros inferiores (p.ex.: agachamento); e o glicogênio intramuscular aumenta em 25% (que parece estar associado à retenção hídrica intramuscular, devido ao poder osmótico da creatina).

Claro, alguns atletas persistem no esquema clássico de suplementação de creatina, porém com a seguinte estratégia: 0,3 g de creatina por quilograma de peso corporal diariamente (0,3 g/kg/dia). Neste sentido, se você é um atleta do sexo masculino com 75 kg, então poderia consumir 22,5 g/dia (0,3 g x 75 kg = 22,5 g), divididos em 4 doses ao dia (5,6 g em cada refeição), cujo período de sobrecarga ocorre por 5 a 7 dias, seguido de um período de manutenção (apenas 5 g/dia, aproximadamente). Essa estratégia, contudo, tem controvérsias. Por exemplo, se você é um atleta, homem, de 120 kg, poderia ingerir 36 g/dia de creatina (0,3 g x 120 kg = 36 g), o que resultaria em 9 g de creatina em 4 doses diárias. Portanto, 36 g/dia de creatina seria um verdadeiro exagero, que diferente grandemente da maioria dos estudos com 20-25 g/dia.    

Particularmente, não vejo vantagem na sobrecarga de creatina (especialmente para praticantes de atividades físicas recreativos), pois como dito: os resultados são similares ao final de alguns meses sem necessitar o período de sobrecarga de creatina. Ou melhor, existe uma vantagem em não realizar a fase de sobrecarga: evita-se a inibição endógena. Como assim, professor? Peraí, vamos lá:

O aminoácido arginina e glicina se combinam nos rins para formar guanidoacetato (ou guanidinoacetato) e ornitina (reação da arginina-glicina aminotransferase renal, AGAT). Em seguida, guanidoacetato se combina com S-adenosil-metionina (SAM) para formar creatina e S-adenosil-homocisteína (SAH) no fígado (reação da guanidoacetato N-metiltransmetilase hepática, GAMT). Creatina, por fim, é convertida em fosfocreatina (CP), com gasto de adenosina trifosfato (ATP), em uma reação (reversível) pela creatina fosfoquinase (CPK) no músculo esquelético. Como deve perceber, creatina é um tripeptídeo formado pelos aminoácidos arginina, glicina e metionina, sendo um processo que perpassa pelos rins, fígado e músculo. A suplementação em demasia (20-25 g/dia ou mais) de creatina causa inibição endógena (desnecessária ao meu ver), que retorna ao normal (sim, volta ao normal) depois de certo período após a interrupção da suplementação.

Em suma, a suplementação mais comum de creatina monoidratada é de 3 a 5 g/dia por alguns meses, geralmente 2 a 4 meses (embora alguns mantém a suplementação contínua por 12 meses).

 

Pergunta #2:

DEVO USAR CREATINA PRÉ OU PÓS-TREINO?

Antes de responder à pergunta, deixa-me fazer duas observações:

Primeiro, 95 a 98% da creatina total está presente no músculo esquelético, sendo 40% na forma de creatina e 60% na forma de fosfocreatina. Portanto, apenas 2 a 5% da creatina estão presentes no sangue, coração e cérebro, bem como espermatozoides.

Segundo, o músculo esquelético possui um certo grau de saturação para creatina. Em outras palavras, você passa de 90 a 125 mmol Cr/kg músculo seco (normalidade) para 160 a 162 mmol Cr/kg (saturação intramuscular).

O que isso tudo quer dizer, professor?

Simples, não adiante se “entupir” da suplementação de creatina (20-30 g/dia) por inúmeros meses (12 meses), pois existe um “limite” intramuscular para creatina e fosfocreatina, seja você um homem atlético de 1,70 m ou grande fisiculturista de 2,10 m.

Com base nisso, voltamos a pergunta: devo usar creatina antes ou depois do treino?   

A suplementação de creatina, segundo a “luz da ciência”, não possui um horário preestabelecido de consumo. Ou seja, você pode usar creatina antes ou depois do treino, pois não faz diferença alguma. Deixa-me explicar de outra maneira: os efeitos da creatina sobre a musculatura esquelética não são imediatos (não são agudos), mas, sim, a longo prazo (efeito crônico). Portanto, parece anedótico achar que a suplementação de creatina deva ocorrer 30 minutos antes do esforço físico, como se essa creatina proveria “força, energia e disposição” ao treino. Lembre-se: você precisa “saturar” sua musculatura com creatina para obter os efeitos desejados da creatina sobre o desempenho atlético e hipertrofia muscular. A regra de ouro é: mantenha a suplementação de creatina monoidratada frequentemente, independente do horário. Se você prefere pré-treino para não esquecer, então beleza! Se você prefere no pós-treino, tudo perfeito! 

Uma curiosidade: segundo Louise Deldicque et al.  (J Appl Physiol 104:371-378, 2008; DOI: 10.1152/japplphysiol.00873.2007), a suplementação de creatina após o esforço físico pode ser mais vantajosa. Neste estudo, os autores mostraram que a suplementação de creatina no pós-treino (durante 6 semanas), em homens saudáveis, submetidos ao teste de 1RM para determinados exercícios, aumentou a expressão do transportador de glicose do tipo 4 (GLUT-4) e do fator de crescimento semelhante à insulina (IGF-1), bem como ativação de células satélites que estariam associados com aumento da cadeia longa da miosina no músculo esquelético (proteína contrátil miofibrilar, que desempenha papel crucial na contração muscular). Os autores concluíram que a suplementação de creatina no período pós-treino promove hipertrofia muscular. Todavia, cabe destacar: os indivíduos também estavam submetidos ao acompanhamento nutricional, onde receberam uma dieta com 48% de carboidrato, 30% de lipídeos e 22% de proteína. 

 

Pergunta #3:

PRECISO DE CARBOIDRATO PARA ABSORVER CREATINA E UTILIZAR NO MÚSCULO ESQUELÉTICO?

Na década de 90, acreditava-se que creatina necessitava de carboidratos para ser absorvida e promover hipertrofia muscular, ou seja, acredita-se na co-ingestão de creatina e carboidratos. Essa hipótese tinha um bom raciocínio lógico: a captação de monossacarídeos (glicose, particularmente) ocorre por cotransporte de sódio-glicose na membrana apical das microvilosidades intestinais, que acabam ganhando a veia porta hepática até o fígado. Neste sentido, a creatina (arginina, glicina e metionina) pegariam “carona” neste processo absortivo facilitado pela glicose. Ao mesmo tempo, carboidratos (geralmente dextrose, maltodextrina, bebidas esportivas ou sucos) causariam secreção aumentada de insulina (hiperinsulinemia), que facilitaria o processo hipertrófico via GLUT-4 e estímulo da proteína quinase B (PKB ou Akt) e da proteína quinase de mamíferos alvo de rapamicina (mTOR), portanto, via Akt/mTOR. A creatina (seus aminoácidos), novamente, pegaria “carona” para ingressar no músculo esquelético a fim de aumentar a creatina e fosfocreatina intramuscular, bem como favorecer o desempenho atlético. A insulina também estimula a bomba ATPase sódio-potássio dependente, que poderia facilitar o transporte de creatina ao músculo. Quer dizer, a captação de creatina pelos músculos ocorre por gradiente de concentração sódio-dependente, após interação da creatina com sítios específicos na membrana muscular (sarcolema), que seria facilitado pela glicemia, ou melhor, pela insulinemia. Suspeitava-se, também, que a creatina necessitaria de um transportador plasmático de creatina, que seria estimulado pela insulina. Portanto, a coingestão de creatina e carboidratos fazia (e faz) bastante sentido. Contudo, estudos posteriores mostraram não existir essa necessidade de carboidratos para absorção intestinal e uso de creatina pelos músculos.

O que você pensa disso, professor?

Deixa-me explicar da seguinte maneira:

Primeiro, uma grande parcela de estudos estabelece a suplementação de creatina monoidratada sem o consumo concomitante de carboidratos, sendo que os resultados almejados (ganho ponderal, hipertrofia muscular, força e desempenho atlético) também são obtidos.

Segundo, a co-ingestão de creatina e carboidratos é vantajoso para alguns, mas desvantajoso para outros indivíduos. Quer dizer, os carboidratos administrados aumentam a síntese de glicogênio muscular que, por sua vez, melhoram o desempenho atlético, sendo uma vantagem. Além disso, os carboidratos administrados promovem hiperinsulinemia e, como sabemos, a insulina é um hormônio anabólico que estimula a via Akt-mTOR, sendo outra vantagem. Todavia, aqueles indivíduos com elevado percentual de gordura corporal, observado na avaliação física prévia, podem obter desvantagem dessa suplementação combinada. Em outras palavras, um excesso de carboidrato pode facilitar a lipogênese e adiposidade, pois insulina estimula a proteína 1c de ligação do elemento de resposta aos esteróis (SREBP1c), bem como estímulo das enzimas lipogênicas (acetil-CoA carboxilase e ácido graxo sintase). Além disso, insulina, secretada em decorrência da hiperglicemia, inibe a lipólise (mobilização de ácidos graxos dos adipócitos), pois inibe a lipase hormônio sensível (LHS). Mas, claro, não faça confusão: a insulina “não engorda”, pois o que engorda é o excesso calórico da dieta. Insulina, contudo, pode favorecer essas vias metabólicas que acabariam “engordando” um indivíduo que já exibe inadequação na composição corporal. Dessa forma, seria mais vantajoso usar creatina sem carboidratos, mantendo o aporte calórico total reduzido, porém com desempenho atlético superior através do uso de creatina. 

Terceiro, a melhor dieta ou suplementação é aquela que seu paciente consegue aderir. Portanto, a suplementação de creatina com ou sem carboidratos depende dessa adesão, bem como objetivos previamente traçados. Em outras palavras, se o objetivo for o desempenho atlético (p.ex.: atletas de elite) sem grande preocupação com o percentual de gordura corporal (alguns esportes não requerem “barriga tanquinho”, rs), use com carboidratos. Todavia, se o objetivo foi puramente estético (p.ex.: uma grande parcela dos usuários de recursos ergogênicos não atletas), então observe a avaliação física para a avaliar a necessidade de coingestão de creatina e carboidratos.  

 

Pergunta #4:

CREATINA CAUSA DANO RENAL OU TRAZ PREJUÍZO À SAÚDE?

Estamos em 2024 e, por incrível que pareça, ainda existem estudantes e profissionais de saúde alegando que a suplementação de creatina causa dano hepático e renal, bem como “engorda”, deixa “inchado” e causa cãibra e desidratação e, até mesmo, é cancerígeno. Sendo assim, vamos às respostas rápida sob a “luz da ciência”.

Estudos da década de 90 (Lancet 351:1252-1253, 1998; N Engl J Med 340:814-815, 1999) relataram dano renal induzido pela suplementação de creatina no esquema clássico (20 g/dia). Todavia, analisando criteriosamente os estudos, observamos que não existir investigação sobre o histórico clínico pessoal e familiar nestes relatos. Aliás, relato de caso possui baixo grau de evidência científica, justamente por permitir o viés de confusão. Os demais estudos, contudo, concluíram não existir evidências para dano renal, hepático, cãibras musculares e desidratação com a suplementação de creatina por longos períodos. Alguns pacientes podem, eventualmente, relatar complicações gastrintestinais (vômito, diarreia ou dor abdominal) com a suplementação de creatina, justamente porque não estavam acostumados com a sobrecarga de creatina (20-30 g/dia), o que é transitório e não preocupante. Aliás, nenhum estudo encontrou diferença estatística significativa nos parâmetros da função hepática (aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase, fosfatase alcalina ou gamma-glutamiltranspeptidase) que corroborem com a disfunção ou dano hepático induzido pela suplementação com creatina. Não foram observadas evidências estatisticamente significativas em parâmetros de função renal, que pudessem apoiar um dano renal: creatinina, uréia, albumina sérica, microalbuminúria ou taxa de filtração glomerular. Também não existem evidências para cãibras ou desidratação, cujo estudos relatam serem alegações anedóticas. O ganho de peso, por vezes alegado como efeito colateral (não pretendido, não esperado) ou efeito adverso (desfavorável, ruim) me deixa perplexo. Quer dizer, o ganho de peso realmente existe (0,5 a 2 kg ou mais), sendo atribuído à retenção hídrica, aumento no conteúdo de glicogênio muscular e hipertrofia induzida pelo treinamento de força. Quer dizer, não seria justamente os objetivos almejados pelo usuário de creatina monoidratada? Aliás, aumentar os depósitos de creatina e fosfocreatina intramusculares com melhoria do desempenho atlético, acompanhado pelo aumento do peso corporal, não seriam objetivos previamente traçados com seu paciente durante a suplementação de creatina? AHHH, para concluir: a retenção hídrica é intramuscular e não subcutânea, portanto, é impossível alegar que o paciente “fica inchado” ou “gordo”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existe uma sólida base de evidências científicas sobre a suplementação de creatina monoidratada no exercício e no esporte, mas também para aplicação clínica. Por exemplo, a suplementação de creatina pode ser útil com o avançar da idade, pois temos perda de fibras do tipo I e II, sendo que as do tipo II apresentam maiores concentração de creatina e fosfocreatina. Existem muitos “experts” nas mídias sociais, mas cuidado: muitos exibem excelente oratória, mas poucos realmente aprofundam os estudos sobre os recursos ergogênicos nutricionais.

 

Abaixo, seguem algumas sugestões para leitura, utilizados nesta matéria:

 

1.    Forbes SC, Candow DG, Neto JHF, Kennedy MD, Forbes JL, Machado M, Bustillo E, Gomez-Lopez J, Zapata A, Antonio J. Creatine supplementation and endurance performance: surges and sprints to win the race. J Int Soc Sports Nutr. 2023 Dec;20(1):2204071. doi: 10.1080/15502783.2023.2204071. PMID: 37096381; PMCID: PMC10132248.

2.    Candow DG, Chilibeck PD, Forbes SC, Fairman CM, Gualano B, Roschel H. Creatine supplementation for older adults: Focus on sarcopenia, osteoporosis, frailty and Cachexia. Bone. 2022 Sep;162:116467. doi: 10.1016/j.bone.2022.116467. Epub 2022 Jun 7. PMID: 35688360.

3.    Wu SH, Chen KL, Hsu C, Chen HC, Chen JY, Yu SY, Shiu YJ. Creatine Supplementation for Muscle Growth: A Scoping Review of Randomized Clinical Trials from 2012 to 2021. Nutrients. 2022 Mar 16;14(6):1255. doi: 10.3390/nu14061255. PMID: 35334912; PMCID: PMC8949037.

4.    Antonio J, Candow DG, Forbes SC, Gualano B, Jagim AR, Kreider RB, Rawson ES, Smith-Ryan AE, VanDusseldorp TA, Willoughby DS, Ziegenfuss TN. Common questions and misconceptions about creatine supplementation: what does the scientific evidence really show? J Int Soc Sports Nutr. 2021 Feb 8;18(1):13. doi: 10.1186/s12970-021-00412-w. PMID: 33557850; PMCID: PMC7871530.

5.    Hall M, Manetta E, Tupper K. Creatine Supplementation: An Update. Curr Sports Med Rep. 2021 Jul 1;20(7):338-344. doi: 10.1249/JSR.0000000000000863. PMID: 34234088.

6.    Mills S, Candow DG, Forbes SC, Neary JP, Ormsbee MJ, Antonio J. Effects of Creatine Supplementation during Resistance Training Sessions in Physically Active Young Adults. Nutrients. 2020 Jun 24;12(6):1880. doi: 10.3390/nu12061880. PMID: 32599716; PMCID: PMC7353308.

7.    Tomcik KA, Camera DM, Bone JL, Ross ML, Jeacocke NA, Tachtsis B, Senden J, VAN Loon LJC, Hawley JA, Burke LM. Effects of Creatine and Carbohydrate Loading on Cycling Time Trial Performance. Med Sci Sports Exerc. 2018 Jan;50(1):141-150. doi: 10.1249/MSS.0000000000001401. PMID: 28806275.

8.    Kerksick CM, Wilborn CD, Roberts MD, Smith-Ryan A, Kleiner SM, Jäger R, Collins R, Cooke M, Davis JN, Galvan E, Greenwood M, Lowery LM, Wildman R, Antonio J, Kreider RB. ISSN exercise & sports nutrition review update: research & recommendations. J Int Soc Sports Nutr. 2017 Aug 1;15(1):38. doi: 10.1186/s12970-018-0242-y. PMID: 30068354; PMCID: PMC6090881.

L   Lilian Linck, Gustavo Rodrigues, Marcello Mascarenhas. La creatina, de la biosíntesis a la aplicación: un estudio de revisión. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 159, Agosto de 2011. http://www.efdeportes.com.

     Gualano B et al. Efeitos da suplementação de creatina sobre a força e hipertrofia muscular: atualizações. Rev Bras Med Esporte 16(3): 2010. https://doi.org/10.1590/S1517-86922010000300013.

     Deldicque L, Atherton P, Patel R, Theisen D, Nielens H, Rennie MJ, Francaux M. Effects of resistance exercise with and without creatine supplementation on gene expression and cell signaling in human skeletal muscle. J Appl Physiol (1985). 2008 Feb;104(2):371-8. doi: 10.1152/japplphysiol.00873.2007. Epub 2007 Nov 29. PMID: 18048590.

      Frederico SC et al. Efeitos da suplementação de creatina e do treinamento de potência sobre a performance e a massa corporal magra de ratos. Rev Bras Med Esporte 13(5): 2007. https://doi.org/10.1590/S1517-86922007000500004.

      José Peralta; Olga Maria Silverio Amancio. Creatine as an ergogenic supplement for athletes. Rev. Nutr., Campinas, 15(1):83-93, jan./abr., 2002. Disponível: https://doi.org/10.1590/S1415-52732002000100009.

      Koshy KM, Griswold E, Schneeberger EE. Interstitial nephritis in a patient taking creatine. N Engl J Med. 1999 Mar 11;340(10):814-5. doi: 10.1056/NEJM199903113401017. PMID: 10075534.

     Pritchard NR, Kalra PA. Renal dysfunction accompanying oral creatine supplements. Lancet. 1998 Apr 25;351(9111):1252-3. doi: 10.1016/s0140-6736(05)79319-3. PMID: 9643752.



terça-feira, 2 de julho de 2024

CURCUMINA: UM COMPOSTO BIOATIVO NATURAL

 

CURCUMINA: UM COMPOSTO BIOATIVO NATURAL

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e PhD Student in Biological Sciences: Pharmacology and Therapeutics, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)



Olá pessoal, tudo bem?

Você já ouviu falar em curcumina?

Certamente que sim!

Trata-se de um polifenol presente no Açafrão da Índia (cúrcuma) e normalmente referido como alimento funcional, composto bioativo natural ou nutracêutico. Alega-se que essa substância química (curcumina) possui inúmeras propriedades benéficas à saúde e pode ser usada para o tratamento de doenças crônico-degenerativas não transmissíveis (DCNT), incluindo doenças cardiovasculares, diabetes mellitus, doenças neuropsiquiátricas e, até mesmo, câncer. Pois bem, vamos analisar cientificamente este interessante composto bioativo natural.

 

INTRODUÇÃO

A cúrcuma (Curcuma longa), da família Zingiberaceae, que compreende mais de 50 gêneros e cerca de 1600 espécies (onde também se destaca o gengibre), contém curcuminóides, particularmente curcumina (CUR), demetoxicurcumina (DMC) e bisdemetoxicurcumina (BMC). A cúrcuma, também conhecida como açafrão-da-terra ou açafrão da Índia, é uma planta perene herbácea nativa do Sudeste Asiático (região que abrange Brunei, Camboja, Filipinas, Laos, Malásia, Mianmar, Singapura, Tailândia, Timor-Leste, Vietnã e Indonésia), embora também possa ser encontrada na China e América Latina. Na Tailândia, por exemplo, a CUR é usada como corante, enquanto que na Malásia como antisséptico. Em outros países, incluindo Estados Unidos e Brasil, é usada como especiaria/tempero (curry) e, até mesmo, como agente anti-inflamatório. Existem, ainda, países que utilizam o açafrão em chás e outras bebidas, incluindo o Japão e a Coréia. A CUR, o componente químico maior prevalente na cúrcuma e recebe muitas denominações quando realizamos uma busca de estudos científicos: alimento funcional, composto bioativo natural (composto natural funcional) e nutracêutico.

São chamados de ALIMENTOS FUNCIONAIS aqueles alimentos oferecem um ou mais benefícios à saúde, além do seu valor nutricional inerente de sua composição química, especialmente no tratamento e redução das DCNT. Uma substância funcional, portanto, pode ser um alimento ou parte de um alimento que proporciona benefícios à saúde, incluindo a prevenção e o tratamento de doenças [1,2]. Para outros autores [3,4], alimentos funcionais são aqueles que apresentam compostos químicos, nutrientes ou não nutrientes, com o potencial de promover a saúde e/ou diminuir o risco de doenças quando consumidos em quantidades tradicionais. A terminologia “alimentos funcionais” foi lançada na década de 80, pelo Japão, sendo uma nova concepção de alimentos com o objetivo de desenvolver e estimular o consumo de alimentos saudáveis para a população que envelhecia e apresentava uma grande expectativa de vida [5]. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) [6] também traz sua definição de alimento funcional: é todo alimento ou ingrediente que, além das funções nutricionais básicas, quando consumidos como parte da dieta usual, possui efeitos metabólicos e/ou fisiológicos e/ou benéficos à saúde, devendo ser seguro para o consumo sem supervisão médica.  

O termo COMPOSTO BIOATIVO NATURAL derivada de alimentos funcionais, ou seja, indica uma substância em particular, encontrada em vegetais ou animais, que possui algum efeito no funcionamento do organismo vivo, tecido ou célula. Estes compostos biológicos naturalmente presente nos alimentos (portanto, compostos bioativos naturais ou funcionais) podem ser carotenoides (beta-caroteno, licopeno, luteína e zeaxantina), flavonoides (quercetina, kaempfenol, apigenina, tangeretina, naringenina e 5-hidroxi-hexametoxiflavona), catequinas (epicatequina e epigalocatequina-3-galato), antocianinas, fitoesterois (ginesteína), terpenoides (limoneno, geraniol, mentol e ácido trans-retinol) e ácidos graxos ômega-3 (ácidos eicosapentaenoico, EPA; e ácido docosahexaenoico, DHA) [7].

Os compostos químicos específicos encontramos em alimentos, que podem prevenir ou tratar doenças, também são chamados de NUTRACÊUTICOS (junção das palavras ‘nutrientes’ e ‘farmacêutico’). Quer dizer, trata-se de uma modificação da terminologia bioativa natural que busca aprofundar o conhecimento destes compostos com um olhar farmacológico (farmacocinética e farmacodinâmica) [8,9,10]. Por vezes, usa-se o termo FITOQUÍMICO [11] para se referir ao nutracêutico encontrado em alimentos de origem vegetal. Todavia, o termo nutracêutico é mais abrangente, pois incluem substâncias naturalmente presente nos alimentos de origem vegetal e animais, mas também aquelas fabricadas em laboratórios (composto químicos semelhantes ou iguais aos originais, que podem desempenhar as mesmas funções biológicas do composto original). Em outras situações, nos deparamos com o termo NUTRICOSMÉTICO [12], também apelidado de “cápsula da beleza”, que seria o uso de substâncias com alegação de trazer beleza e vitalidade de “dentro para fora”, incluindo beleza da pele (antirrugas e antiacne), cabelos, unhas, combate a celulite (anticelulite) e emagrecimento. O termo nutricosmético me parece um tanto apelativo, midiático, carente de evidências fortes, mas vem ganhando investigação científica nos últimos anos.

 

POTENCIAL TERAPÊUTICO DA CURCUMINA

A curcumina (CUR) tem atraído muita atenção da comunidade científica em virtude das alegações atribuídas à substância, que são inúmeras: antibactericida, antifúngico, antiviral, antioxidante, anti-inflamatório, antidiabetes, anticâncer, cardioprotetora, neuroprotetora e hepatoprotetora. São tantas alegações que precisamos discutir profundamente o assunto em dois capítulos: (1) química da cúrcuma/curcumina e (2) evidências científicas do potencial terapêutico. Para tal discussão, usarei como base o estudo de Kotha e Luthria, publicado na revista Molecules em 2019 [13], bem como outros estudos para complementar a discussão.

 

CAPÍTULO 1

QUÍMICA DA CÚRCUMA/CURCUMINA

A composição química da cúrcuma consiste em aproximadamente 70% de carboidratos, 13% de umidade, 6% de proteína, 6% de óleos essenciais (felandreno, sabineno, cineol, borneol, zingibereno e sesquiterpenos), 5% de lipídeos, 3% de minerais (potássio, cálcio, fósforo, ferro e sódio) e 3 a 5% de curcuminoides, tendo apenas traços de vitaminas hidrossolúveis (B1, B2, B3 e vitamina C). Entre os curcuminóides da cúrcuma, destacam-se: 77% de curcumina (CUR), 17% de demetoxicurcumina (DMC) e 3-6% de bisdemetoxicurcumina (BMC) [13].

A discussão mais interessante aqui, em minha opinião, é a biodisponibilidade da CUR (1,7-bis-(4-hidroxi-3-metoxifenil)-1,6-heptadieno-3,5-dione), obtida do açafrão da Índia (açafrão-da-terra), que acaba sendo ignorada pela maioria dos profissionais de saúde (e “experts” sem graduação em nutrição) quando tratam deste assunto nas mídias sociais. Para tanto, vou abordar a temática em quatro (04) limitações importantes sobre o consumo de CUR pela população. E, antes, o que é biodisponibilidade? Biodisponibilidade refere-se à extensão e à velocidade em que a substância ativa (fármaco ou composto bioativo natural) adentra na circulação sistêmica, alcançando, dessa forma, os tecidos-alvo para exercer uma ação biológica. Dessa forma, alguns acontecimentos podem reduzir a biodisponibilidade destas substâncias: insuficiente absorção gastrintestinal, metabolismo hepático, presença de enfermidades do trato digestório, idade do indivíduo, estresse, entre outros. Com base nisso, vejamos as 04 limitações para CUR:

PRIMEIRO, a CUR é praticamente insolúvel em temperatura ambiente, afinal é uma substância lipofílica (e hidrofóbica). Dessa forma, sua extração das fontes alimentares ocorre com auxílio de solventes orgânicos (metanol, etanol, acetona e dimetil sulfóxido). Existem várias técnicas de preparação de amostras para extração de curcuminóides em alimentos, como descrito por Kotha e Luthria em 2019 [13]. Neste mesmo estudo, os autores descrevem os métodos para quantificação do conteúdo de curcuminóides por cromotografia em camada delgada (TLC, Thin layer chromatography, que é uma técnica de cromatografia usada para separar compostos químicos presentes em uma amostra através do deslocamento das amostras pelo material adsorvente, geralmente sílica-gel, deixando sua impressão nessa “corrida” pelo gel, que pode ser mensurado) e espectroscopia (método que analisa a energia radiante emitida ou absorvida por moléculas ou átomos de uma amostra, onde o comprimento de onda, em nanômetros, pode ser mensurado). Em outras palavras, não basta recolher o açafrão, moer ou triturar e adicionar no cozimento dos alimentos de interesse, pois é uma substância hidrofóbica. 

SEGUNDO, a CUR é fotossensível à luz. Ou seja, sofre degradação após exposição solar. Dessa forma, onde você armazena seu açafrão ou CUR em sua residência?

TERCEIRO, a CUR possui reduzida absorção intestinal, o que reduz sua disponibilidade ao organismo (que discutirei em seguida).

QUARTO, a CUR é metabolizada no tecido hepático, reduzindo sua bioatividade no organismo (já vamos discutir este aspecto).

Você sabia disso tudo sobre a CUR? Deixa-me discutir melhor essas alegações da seguinte forma:

Apesar das inúmeras alegações de benefícios à saúde humana, a administração oral de CUR (na forma de pó ou suplementação oral) possui limitações, principalmente em decorrência da reduzida absorção intestinal (meia-vida de apenas 10 minutos sob condições ideais, ou seja, trato gastrintestinal íntegro, sem enfermidade ou doença, com pH ótimo de ação nos diferentes locais). A baixa solubilidade em água (hidrofóbica) da CUR, portanto, prejudica a absorção intestinal da mesma. Além disso, sua metabolização hepática reduz a disponibilidade e bioatividade da CUR. A CUR sofre metabolização hepática em reações de fase 2 (metabolismo de xenobióticos), ou seja, sofre conjugação de glicuronidação (pela UDP-glicuronosiltransferase) e sulfatação (pelas sulfotransferases: SULT1A1 e SULT1A3). Neste sentido, formam-se metabólitos excretados na urina com reduzido bioativos para a circulação sistêmica, comprometendo a ação terapêutica da CUR.

E, agora, o que fazer?

KEEP CALM (mantenha a calma), pois existem algumas soluções neste sentido. E, antes, você sabe a diferença entre farmacocinética (PK, pharmacokinetics) e farmacodinâmica (PD, pharmacodynamics)?

A farmacocinética (PK) estuda a cinética (fatores que afetam a velocidade das reações químicas) através dos processos de Absorção, Distribuição, Metabolismo e Excreção de uma substância (portanto, usa-se a sigla ADME). Já a farmacodinâmica (PD) estuda a forma dinâmica com que o fármaco ou substância química interage com receptores em tecidos-alvo. Em outras palavras, estuda os efeitos fisiológicos ou biológicos de uma substância no organismo (metabolismo). Neste sentido, percebeu que muita gente discute PD da CUR (trazendo alegações maravilhosas, impressionantes, fantásticas), mas poucos discutem limitações para o uso de uma substância (PD)? Beleza, deixa-me trazer algumas soluções.

Para melhorar a PK e PD da CUR podem usados análogos sintéticos, por exemplo, dibenzalacetona ou dibenzilidenoacetona (1,5-difenilpenta-1,4-dieno-3-ona). O dibenzalacetona (DBA) em animais de experimentação (roedores) é administrado via oral (gavagem) a fim preservar o processo biológico natural de absorção gastrintestinal. OBS.: Não faremos gavagem em seres humanos, obviamente (rsrs), e sugere-se sua administração usando veículos de lipossomas, que são vesículas com bicamada fosfolipídica que atuam como carreador do polifenol, otimizando sua absorção intestinal. Além disso, o análogo sintético consegue contornar a metabolização hepática (glicuronidação e sulfatação), garantindo a forma ativa na circulação sistêmica e a distribuição da substância aos tecidos. Os estudos para melhorar a biodisponibilidade e bioatividade da CUR estão bem avançados, onde podemos recorrer as diferentes formulações: uso de lipossomos, nanopartículas, micelas, complexos fosfolípídicos, polímeros e adjuvantes. Por exemplo, Meriva é uma formulação que frequentemente aparece nos estudos, formado por fosfolipídeos [13].

Em outras palavras, você precisa contornar os obstáculos (reduzida absorção intestinal e metabolização hepática) para garantir que as alegações de saúde da CUR realmente façam sentido. Em outras palavras, não pode extrapolar dados in vitro ou com roedores, submetidos a gavagem, para seres humanos. Em seguida, vejamos algumas (não todas) alegações do potencial terapêutico da CUR que possuem estudos com humanos e animais de experimentação.

 

EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS DO POTENCIAL TERAPÊUTICO DA CURCUMINA

 

ANTICÂNCER

Se colocarmos no PubMed, com um filtro de 5 anos, a palavra-chave “cancer” encontraremos 1.191.952 resultados (dia 02/07/24). Se colocarmos “cancer and curcumin” encontraremos 3.041 resultados. Todavia, vamos refinar mais nossa pesquisa, lendo os estudos mais relevantes. Quer dizer, nosso filtro também deve constar os ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises (portanto, aqueles de maior evidência científica). Agora, temos apenas 97 resultados que deveriam ser lidos ou selecionados aqueles de interesse.  

Uma grande parte dos estudos envolvem o câncer colorretal, onde a curcumina (CUR) aumenta a expressão da proteína p53 em células tumorais de pacientes com câncer colorretal [13]. A p53 é uma proteína que ativa caspases, enzimas envolvidas na apoptose (morte celular programada ou “suicídio celular”). Como sabemos, um dos grandes problemas do câncer é que a apoptose está suprimida (não ocorre), o que se torna uma ameaça à sobrevivência do organismo. Ou seja, uma célula “nunca morre” e cresce de forma acelerada, descontrolada, podendo invadir células vizinhas (metástase). A apoptose, portanto, é um processo fisiológico, que permite a renovação das células, sem matá-la. Em analogia, é como a queda das folhas de uma grande árvore, permitindo a renovação da mesma, porém sem matar a árvore. As mutações na p53 estão implicadas com diversos tipos de tumores, incluindo câncer de cólon, bexiga, mama, fígado, pulmão, ovário, próstata, entre outras. Além disso, p53 é uma espécie de “guardião do genoma”, pois impede mutações no genoma humano.

A CUR, além de aumentar a expressão da p53 (favorecendo a apoptose), possui efeito anti-inflamatório, suprimindo algumas citocinas pró-inflamatórias: fator de necrose tumoral-alpha (TNFa) e interleucina-6 (IL-6). Estes estudos também destacam a regulação/controle do crescimento e proliferação celular, bem como divisão e sobrevivência. Quer dizer, CUR inibe proteína quinase A (PKA), a proteína quinase de mamíferos alvo de rapamicina (mTOR) e a proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK) [13].

Com base nisso, assumindo que existem estudos com humanos e animais, a CUR possui um papel anticâncer.  

 

CARDIOPROTETOR

Vamos realizar a mesma brincadeira: se colocarmos no PubMed, com um filtro de 5 anos, considerando apenas os estudos mais relevantes, as palavras-chaves “curcumin and cardiovascular disease” aparecem 542 resultados.

Os estudos que abordam a temática atribuem um efeito cardioprotetor associado a redução da proteína C reativa (PCR, um marcador de inflamação aguda) e melhorias no perfil lipídico (redução dos níveis de triglicerídeos; da lipoproteína de baixa densidade, LDL; e do colesterol total). Além disso, a suplementação com CUR possui efeito anti-inflamatório e antioxidante, pois aumenta a expressão de algumas enzimas antioxidantes: glutationa (GSH), superóxido dismutase (SOD) e catalase (CAT). Os níveis de malondialdeído (MDA), um marcador bioquímico de oxidação lipídica, também diminui com a suplementação de CUR [13].

Seguindo Hewlings e Kalman (2017) [14] e He et al. (2015) [15], polifenol (CUR) encontrado no açafrão da Índia, possui propriedades terapêuticas atribuídas ao efeito anti-inflamatório, via inibição do fator nuclear kappa B (NFkB) e papel antioxidante com inibição de espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species). Estes são mecanismos interessantes, pois o dibenzalacetona (DBA, composto sintético) bloqueia NFkB em três possíveis mecanismos: redução ou inibição de ROS, que são agentes estressores capazes de fosforilar a proteína IkB e liberar o dímero p50/p65 do NFkB; inibição da IkB quinase (IKK), impedindo a dissociação do complexo inativo NFkB (p50/p65); e bloqueio na translocação dímero p50/p65 ao núcleo celular. A inibição do NFkB, obviamente, também iria bloquear a sinalização das vias MAPK/ERK/JNK [16,17].

Com base nisso, assume-se que a CUR possui um papel cardioprotetor, ou seja, capaz de reduzir as chances de um evento cardiovascular catastrófico (aterosclerose, infarto e derrame).  

 

ANTIDIABETES

Por fim, vamos inserir no PubMed (filtros: 5 anos de pesquisa, considerando apenas os estudos de maior evidência científica) as palavras-chaves “curcumin and diabetes”. Novamente, aparecem 67 resultados (não estamos filtrando diabetes tipo 1, tipo 2 ou gestacional). OK, vamos filtrar “curcumin and type 2 diabetes mellitus” e, agora, temos 25 resultados.

Em relação ao diabetes, a CUR reduz os níveis de glicemia e hemoglobina glicada (HbA1c), bem como aumenta a insulinemia (possível redução da resistência insulínica) em ratos diabéticos [13]. Estes efeitos também ocorrem em seres humanos, inclusive com destaque para revisões sistemáticas [18]. Outros estudos, contudo, envolvem a combinação de CUR com outros compostos (ácidos graxos ômega-3, coenzima Q10, quercetina e micronutrientes), que causa viés nos resultados (fatores de confusão).  

Com base nisso, assume-se que a CUR possui um papel antidiabético, particularmente diabetes mellitus tipo 2 (DM2).

Claro, existem muitas alegações terapêuticas da CUR, como destacado por Kunnumakkara et al. (2017) [19] e Sueth-Santiago et al. (2015) [20]: doença inflamatória intestinal, artrite, pancreatite, diabetes, doença cardiovascular, doença renal crônica, obesidade, câncer, doença de Alzheimer e depressão. Neste sentido, faço aqui apenas uma breve revisão do assunto, trazendo aqueles que julgo mais relevantes.  

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parece plausível que a curcumina (CUR) tenha potencial terapêutico em inúmeras doenças, especialmente cardiovascular, diabetes e câncer. Para tanto, deve-se “driblar” os obstáculos (absorção intestinal e metabolização hepática) com formulações manipuladas ou sintéticas. Kotha e Luthria (2019) [13] relata existir grande incerteza na eficácia da CUR, pois muitos estudos são observacionais (não podem estabelecer causalidade), in vitro, com roedores, possuem baixa qualidade metodológica, apresentam miscelânea de componentes (mistura de curcuminóides e outros compostos bioativos).

 

REFERÊNCIAS

[1] Manuela Dolinsky. Nutrição Funcional. 1.ed. ROCA, 2009.

[2] Candido LMB; Campos AM. Alimentos funcionais: uma revisão. Boletim da SBCTA 29(2):193-203, 2005.

[3] Santos FL. Os alimentos funcionais na mídia: quem paga a conta? In: Cristiane de Magalhães et al. Diálogos entre ciência e divulgação científica: leituras contemporâneas. Salvador: Edufba 211-224, 2011.

[4] Hasler CM. Functional foods: their role in disease prevention and health promotion. Food Tecnology 52(11):63-70, 1998.

[5] Anjo DLC. Alimentos funcionais em angiologia e cirurgia vascular. Jornal Vascular Brasileiro 3(2):145-154, 2004.

[6] Portaria de Alimentos Funcionais: ANVISA, 398 de 30/04/99, Resolução 18 e 19.

[7] Min-Hsiung Pana and Chi-Tang Ho. Chemopreventine effects of natural Dietary compounds on cancer development. Chem Soc Rev 37:2558-2574, 2008.

[8] Hungenholtz J; Smid EJ. Nutraceutical production with food-grade microorganisms. Current Opinion in Biotechnology 13:497-507, 2002.

[9] Faienza MF, Giardinelli S, Annicchiarico A, Chiarito M, Barile B, Corbo F, Brunetti G. Nutraceuticals and Functional Foods: A Comprehensive Review of Their Role in Bone Health. Int J Mol Sci. 2024 May 28;25(11):5873.

[10] Essa MM, Bishir M, Bhat A, Chidambaram SB, Al-Balushi B, Hamdan H, Govindarajan N, Freidland RP, Qoronfleh MW. Functional foods and their impact on health. J Food Sci Technol. 2023 Mar;60(3):820-834.

[11] Ștefanescu R, Tero-Vescan A, Negroiu A, Aurica E, Vari CE. A Comprehensive Review of the Phytochemical, Pharmacological, and Toxicological Properties of Tribulus terrestris L. Biomolecules. 2020 May 12;10(5):752.

[12] Dini I, Laneri S. Nutricosmetics: A brief overview. Phytother Res. 2019 Dec;33(12):3054-3063.

[13] Kotha RR, Luthria DL. Curcumin: Biological, Pharmaceutical, Nutraceutical, and Analytical Aspects. Molecules. 2019 Aug 13;24(16):2930.

[14] Hewlings, Susan J.; Kalman, Douglas S. Curcumin: a review of its' effects on human health. Foods. 6(92): 2-11, 2017.

[15] He, Yan et al. Curcumin, inflammation, and chronic diseases: how are they linked? Molecules. 20: 9183-9213, 2015.

[16] Patel L, Sita Sharan et al. Cellular and molecular mechanisms of curcumin in prevention and treatment of disease. Crit Rev Food Sci Nutr. 60(6): 887-939, 2020.

[17] Shehzad, Adeeb; Lee, Jovem Sup. Molecular mechanisms of curcumin action: signal transduction. BioFactors. 39(1):27-36, 2013.

[18] Marton LT, Pescinini-E-Salzedas LM, Camargo MEC, Barbalho SM, Haber JFDS, Sinatora RV, Detregiachi CRP, Girio RJS, Buchaim DV, Cincotto Dos Santos Bueno P. The Effects of Curcumin on Diabetes Mellitus: A Systematic Review. Front Endocrinol (Lausanne). 2021 May 3;12:669448.

[19] Kunnumakkara, Ajaikumar B. et al. Curcumin, the golden nutraceutical: multitargeting for multiple chronic diseases. British Journal of Pharmacology. 174: 1325-1348, 2017.

[20] Sueth-Santiago, Vitor et al. Curcumina, o pó dourado do açafrão-da-terra: introspecções sobre química e atividades biológicas. Quim Nova. 38(4): 438-552, 2015.


terça-feira, 25 de junho de 2024

O AÇÚCAR PODE VICIAR?


O AÇÚCAR PODE VICIAR? 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e PhD Student in Biological Sciences: Pharmacology and Therapeutics, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


Olá pessoal, tudo bem?

Com grande frequência observamos nas mídias sociais e meios de comunicação de massa as seguintes frases: 

“Açúcar causa dependência química igual a cocaína”.

“Açúcar vicia 8 vezes mais que cocaína”.

“Açúcar é um vilão”.

“Açúcar é responsável pelo diabetes e obesidade”.

“Açúcar vicia porque promove liberação de dopamina no cérebro”.

“Açúcar torna o indivíduo dependente igual ao cigarro”.

E por aí segue (...).

 

Com certeza já escutou as frases acima, não é mesmo?

Com base nisso, pergunto:

O AÇÚCAR PODE VICIAR?

Não quero sair em defesa do açúcar, o que seria um despautério, mas quero limitar minha discussão em uma abordagem reflexiva e científica sobre o “vício do açúcar”. O que são FATOS e o que não passam de FAKE NEWS? Vem comigo, vamos REFLETIR.

 

PRIMEIRA REFLEXÃO:

Os carboidratos e açúcares são apontados como verdadeiros vilões do controle de peso e emagrecimento. Estes vilões, malfeitores, bandidos, seriam responsáveis pelo diabetes e obesidade. Todavia, as pessoas sabem a diferença entre carboidratos e açúcares? Como assim? Sim, nem todo carboidrato é um açúcar, embora todo açúcar seja um hidrato de carbono. Deixa-me fazer algumas perguntas para você pensar:

1. Batata inglesa e batata-doce são carboidratos simples ou complexos?

2. Arroz branco e arroz integral são carboidratos simples ou complexos?

3. Maçã e melancia são carboidratos simples ou complexos?

4. Afinal, o que são carboidratos simples e complexos?

5. Você sabe a diferença entre índice glicêmico e carga glicêmica?

6. Será que não está confundindo carboidratos simples com índice glicêmico?

7. Um carboidrato simples pode ter alto ou baixo índice glicêmico?

8. Um carboidrato complexo pode ter alto ou baixo índice glicêmico?

9. O que são monossacarídeos, oligossacarídeos e polissacarídeos? Me dê alguns exemplos?

10. Qual diferença química entre sacarose e amido?

 

E aí, pensou?

Sabe todas as respostas?

Em minha experiência como professor e palestrante, posso te afirmar que muitas pessoas, incluindo estudantes e profissionais de saúde, vão errar uma ou mais das perguntas acima. Os leigos na ciência da nutrição, por sua vez, errarão muitas das perguntas acima. Ao mesmo tempo, observando as mídias sociais, posso te afirmar que os erros advindos de influenciadores digitais e “gurus fitness” (digo: uma grande parcela não graduado em nutrição), são ainda mais gritantes, gigantescos, apavorantes.

Beleza, vou te ajudar nas respostas:

Batata inglesa, batata-doce, arroz branco e arroz integral são, todos, carboidratos complexos, pois são polissacarídeos (amido). Isso mesmo, batata inglesa e arroz branco não são carboidratos simples. Sabia disso?

Os carboidratos simples incluem os monossacarídeos (glicose, frutose e galactose) e oligossacarídeos (onde se destacam os dissacarídeos: maltose, lactose e sacarose). Essa é uma classificação química dos carboidratos, ou seja, facilmente observada em qualquer livro de química e bioquímica. Portanto, a sacarose (“açúcar refinado”) é formada por glicose e frutose, sendo um dissacarídeo.

Eu sei, você está confuso(a). As pessoas frequentemente confundem uma classificação puramente química (monossacarídeos, oligossacarídeos e polissacarídeos) com uma classificação de importância clínica e nutricional, como o índice glicêmico (IG). O IG classifica um alimento de acordo com sua resposta glicêmica pós-prandial (após ingestão) e, consequentemente, resulta em picos do hormônio insulina (índice insulinêmico).

Neste sentido, a maçã e a melancia são carboidratos simples (quimicamente falando), mas maçã possui baixo índice glicêmico (IG=36), enquanto que melancia possui alto índice glicêmico (IG=72). Vejam que curioso: arroz branco e batata-doce são carboidratos complexos (quimicamente falando), mas arroz branco tem moderado índice glicêmico (IG=69), enquanto que batata-doce possui baixo índice glicêmico (IG=54). Conseguem perceber a tremenda confusão que as pessoas fazem nas postagens sensacionalistas e midiáticas para ganhar curtidas e seguidores?

Em outras palavras, os carboidratos não são todos iguais e nem todo carboidrato é um açúcar (sacarose). E, claro, todo carboidrato será transformado em monossacarídeo pelo processo digestivo, particularmente em glicose.

Deixa-me finalizar, dizendo: um conceito mais interessante, na minha opinião, é a carga glicêmica (CG). A carga glicêmica (CG) quantifica um alimento de acordo com seu conteúdo de carboidrato disponível. Por exemplo, a melancia é um carboidrato simples, de elevado índice glicêmico, porém não possui grande efeito sobre a insulinemia, pois sua CG é baixa (apenas 6g de carboidrato em 120g da fruta). Isso é muito diferente de comer uma pequena barra de cereal (cerca de 15 g de carboidrato em apenas 20g de produto). Será que entendeu? Creio que sim. Agora, volte as 10 perguntas acima e tente responder.  

 

Realizado o devido esclarecimento, continuamos.

 

SEGUNDA REFLEXÃO:

As mídias sociais deram voz as pessoas, pois temos liberdade de expressão. Todavia, as pessoas se sentem à vontade para opinar sobre todo e qualquer assunto, mesmo aqueles que possuem pouca ou nenhuma competência técnico-científica: nutrição e alimentação, treinamento, medicamentos, estética e cosmética, paleontologia, arqueologia, astros e planetas, mas também política, religião, futebol (...).

Até aí não deveria existir problemas, pois quem iria acreditar em um mecânico falando de uma cirurgia cardíaca, não é mesmo? Ou, quem iria acreditar em um arquiteto dando dicas para uma troca de canal do dente danificado? Eu, por exemplo, sou totalmente ignorante quantos aos astros, planetas, astrofísica. Sendo assim, você deveria dar créditos aos físicos e astrofísicos para obter informações mais adequadas e fidedignas, não é mesmo? Todavia, porque sobre nutrição e alimentação não ocorre a mesma coisa? Por que pessoas não graduadas em nutrição dão “pitacos” em assunto que desconhecem e, pior ainda, você dá ouvidos? Por que você segue os conselhos de um coach de emagrecimento ao invés de escutar um profissional nutricionista? 

AHHH, mas esses influenciadores, mesmo não graduados em nutrição, seguem um estilo de vida e de alimentação saudáveis. OK, minha avó viveu até 90 anos, então vou acreditar nos conselhos dela sobre alimentação e nutrientes, afinal viveu até 90 anos? Aliás, minha avó também acredita que cerveja Malzbier é bom para as grávidas produzirem leite, bem como gota de querosene com mel curaria a bronquite. O que me diz disso?

AHHH, mas esses influenciadores, mesmo não graduados em nutrição, exibem corpos musculosos, definidos, impressionantes. OK, as pessoas facilmente confundem APARÊNCIA com COMPETÊNCIA. Entendo que parece mais “fácil” acreditar nas palavras do The Rock (apenas uma brincadeira com o ator Dwayne Douglas Johnson para ilustrar alguém grande e musculoso) do que no ator Brendan Fraser interpretando um obeso no filme “The Whale” (A Baleia) (apenas outra brincadeira para ilustrar um indivíduo com obesidade). Todavia, quem disse que todos os profissionais de nutrição são obesos? Quem disse que aparência atlética é sinônimo de conhecimento ou inteligência acima da média? Aliás, um profissional nutricionista com sobrepeso ou obesidade perderia sua capacidade intelectual e competência profissional? Aliás, se um cardiologista pode ter um infarto; um oncologista pode ter câncer; um dentista pode ter um siso inflamado; um hepatologista pode ter uma doença do fígado; porque um nutricionista não poderia estar acima do peso?

Este é um assunto para outra postagem, mas deixo a breve reflexão aqui.

É neste ponto que convido todos vocês à terceira reflexão, que busca finalmente responder nossa pergunta:

O AÇÚCAR PODE VICIAR?

 

TERCEIRA REFLEXÃO:

As mídias sociais e meios de comunicação de massa, muitas vezes movimentado de pessoas de “boa oratória e aparência atlética” (já falamos disso) vão dizer que açúcar é viciante. Quando questionados, dizem: o açúcar vicia porque aumenta os níveis de dopamina no cérebro.

Beleza, vamos pensar nisso:

Parece lógico pensa assim, afinal dopamina é um neurotransmissor relacionado à motivação e sistema de recompensa no cérebro. Segundo defensores, o açúcar, após sua ingestão, causa uma sensação de prazer, bem-estar, semelhante as drogas (cocaína, crack, cigarro). E complementam: quando os níveis de dopamina caem, queremos novamente essa sensação e vamos atrás de mais açúcar. O açúcar, segundo “experts” em mídias sociais, causa vício e um “ciclo vicioso” de consumo, sensação de alívio e bem-estar, seguido de queda do prazer e nova procura viciante.  

Pois bem, agora vamos falar sério? Para tanto, alguns FATOS precisam ser abordados:

 

FATO N.1:

A opinião de um especialista (mesmo graduado em áreas da saúde) é importante, porém tem pouco (ou nenhum) grau de evidência em nosso debate. Não quero ser chato (mas já sendo), os debates precisam de comprovações, evidências, para confirmar uma hipótese. Ao mesmo tempo, a opinião pessoal de um coach de emagrecimento, guru fitness ou qualquer influenciador digital não graduado em ciências biológicas ou da saúde tem ZERO impacto em nossa discussão.

 

FATO N.2:

Alguns estudos científicos sobre o vício do açúcar são fracos, frágeis e, até mesmo, mal-intencionados. Outros, por sua vez, envolvem animais de experimentação (camundongos, ratos, coelhos, etc.), em ambientes controlados, com uma ou mais combinações de drogas e suplementos, não podendo ser extrapolados para seres humanos. Da mesma forma, estudos in vitro não podem ser extrapolados para seres humanos, pois uma célula está fora de seu contexto biológico e fisiológico, resumindo didaticamente dessa forma.

 

FATO N.3:

Observar um aumento nos níveis de dopamina, após consumo de açúcar, não significa “vício” do açúcar como alguns argumentam. Deixa-me te explicar: você também aumenta os níveis de dopamina ouvindo música, cantando, dançando e posso dizer que sou viciado em música ou dança? Quer dizer, se você me tirar a música do METALLICA (que estou escutando agora mesmo) terei uma síndrome de abstinência? Ou melhor, sou tão viciado em METALLICA que estou procurando aumentar a “dose” desta música a cada dia? Diga-me: já ouviu falar de alguém roubando e matando para manter o “vício” em escutar as músicas do METALLICA? Percebem como é ridículo falar que “açúcar vicia” porque aumenta dopamina?

Deixa-me explorar um pouco mais esse assunto.

Para dizer que algo é viciante como drogas, precisamos estabelecer critérios diagnósticos para vício, não concordam? O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DMS-5) traz alguns critérios para dependência química:

1. Tolerância (necessidade de aumentar a dose);

2. Síndrome de abstinência;

3. Uso compulsivo da substância;

4. Perda de controle;

5. Impacto negativo na vida diária.

 

A Classificação Internacional de Doenças (CID-10) também traz os critérios de dependência de substâncias:

1. Desejo forte e compulsivo de consumir a substância;

2. Dificuldades para controlar o comportamento de consumo de substâncias em termos de início, fim ou níveis de consumo;

3. Estado de abstinência fisiológica, quando o consumo é suspenso ou reduzido, evidenciado por síndrome de abstinência característica ou consumo da mesma substância (ou outra muito semelhante) com a intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência;

4. Evidência de tolerância, ou seja, necessidade de doses crescentes da substância psicoativa para a obtenção dos efeitos anteriormente produzidos com doses inferiores;

5. Abandono progressivo de outros prazeres ou interesses em virtude do consumo de substâncias psicoativas, aumento do tempo empregado na aquisição ou consumo da substância ou na recuperação de seus efeitos;

6. Persistência no consumo das substâncias apesar de provas evidentes de consequências manifestamente prejudiciais, tais como lesões hepáticas causadas por consumo excessivo de álcool, humor deprimido consequente a um grande consumo de substâncias, ou perturbação das funções cognitivas relacionada com a substância.

 

Enfim, você consegue imaginar alguém roubando os pertencentes dos pais para comprar desesperadamente açúcar? Você imagina alguém consumindo excessivamente açúcar mascavo para substituir o “vício” do açúcar refinado? Você conhece pessoas com síndrome de abstinência advindo do “vício do açúcar” ou apenas relatos breves e temporários de cefaleia e cansaço pela redução do aporte calórico em dietas de emagrecimento? Você conhece “viciados em açúcar” que largaram o emprego e a família para viver no submundo, vagando pelas ruas? Por acaso, conhece pessoas com perturbações cognitivas e psíquicas em decorrência do “vício do açúcar”?

Vejam, não estou saindo em defesa do açúcar refinado, mas fazendo você perceber como algumas notícias em mídias sociais e meios de comunicação de massa são superficiais e, por vezes, errôneos.

Peraí, não acabei.

 

FATO N.4:

O sistema límbico é acionado por “emoção” e “recompensa” para produzir uma “ação”. Neste sentido, o núcleo accumbens (NAc) possui um papel de destaque, pois é o eixo central do sistema límbico e atua na interface conectando o sistema límbico e o motor. O NAc recebe projeções glutamatérgicas advindo de diferentes áreas: núcleo basolateral da amígdala (BLA), córtex pré-frontal medial (mPFC) e área do hipocampo ventral (vHPC). Com base em informações emocionais, cognitivas e experienciais, o NAc (recebendo sinais de diferentes áreas cerebrais) determina a direção da ação e informa ao pálido ventral (VP). Em seguida, o VP envia sinais ao núcleo habenular lateral (LHb) ou diretamente à área tegmentar central (VTA), que faz um julgamento e modifica a ação através do sistema de recompensa. Os neurônios VTA se projetam ao NAc via dopamina (DA), que é um neurotransmissor relacionado à motivação e sistema de recompensa no cérebro.

Com base nisso, quando falamos em alimentação, incluindo o consumo de açúcar, parece plausível observar aumento nos níveis de dopamina (DA). Em outras palavras, parece óbvio que a alimentação, com ou sem açúcar, produz uma sensação de prazer, bem-estar, alívio de estar alimentado, pois o sistema de recompensa (dopaminérgico via VTA) está envolvido. Porém, você também aumenta DA ouvindo música, cantando e dançando, como já foi dito. Aliás, o exercício físico ativa o sistema límbico via núcleo tegmentar dorsolateral (LDT) no tronco cerebral, que acaba excitando VTA e DA. Ao mesmo tempo, DA é tradicionalmente envolvido com o sistema de recompensa, mas sua liberação também ocorre em resposta aos eventos aversivos, como estresse e dor.

O que estou querendo dizer? Simples: aumentar dopamina no cérebro não é algo exclusivo do consumo de açúcar e, portanto, este argumento que açúcar vicia porque aumenta dopamina é frágil (para não dizer errado). 

Aliás, vamos falar opioides se é para falar de vício.

Opioides (palavra derivado do ópio) são medicamentos do tipo analgésicos (morfina, codeína, oxicodona) e usado, muitas vezes, para aliviar a dor e sofrimento dos pacientes. Existem receptores de opioides no sistema nervoso central (SNC), onde seu uso nada racional gera preocupação de vício. Isso mesmo, os opioides podem levar ao vício. Neste sentido, você encontrará relatos de dependência química (habituação), tolerância (aumento da dose para obter o mesmo efeito) e síndrome de abstinência. Os pacientes viciados em opioides são tratados por médicos psiquiatras, pois o vício de opioides é considerado um transtorno psiquiátrico. Por isso, deve-se conscientizar as pessoas do perigo de usar opioides sem prescrição médica.

Não quero apresentar uma discussão aprofundada do mecanismo de ação dos opioides, mas se açúcar é viciante como drogas, porque não discutem as vias bioquímicas dos opioides ao invés da dopamina? Quer dizer, porque não discutem os receptores delta, kappa e Mu após consumo de açúcar? Os receptores Mu, por exemplo, poderia explicar a sensação de euforia, prazer, bem-estar, dependência, mas aí teríamos que discutir analgesia, redução da motilidade gastrintestinal e depressão respiratória. Claro, você não encontrará estudos neste sentido e, dessa forma, pergunto: como o açúcar pode viciar?

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Assim como o açúcar, observo o mesmo discurso para alimentos processados e ultraprocessados atualmente. Ninguém seria maluco de defender o consumo do açúcar e alimentos industrializados quando pensamos em saúde, mas alegações de vício me parecem frágeis, incoerentes e definitivamente pobres em argumentação. Frequentemente usamos o termo “Sou viciado em esportes” ou “Sou viciado em estudar”, mas percebe que se trata de uma figura de linguagem para causar impacto no ouvinte ou leitor? Sendo assim, use a frase “Sou viciado em açúcar” para justificar sua falta de dedicação com o plano alimentar prescrito pelo profissional nutricionista devidamente capacitado, mas lembre-se: não é essencialmente um vício, pois você não apresentará sudorese excessiva, dores de cabeça intermináveis, sensação de inquietação motora e tremores, nistagmo (movimento involuntário dos olhos), insônia, alteração na frequência cardíaca e respiratória, tontura, náuseas, vômitos, pupilas dilatadas, calafrios, boca seca e depressão se eu retirar o açúcar refinado (sacarose) de sua dieta.