terça-feira, 25 de junho de 2024

O AÇÚCAR PODE VICIAR?


O AÇÚCAR PODE VICIAR? 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e PhD Student in Biological Sciences: Pharmacology and Therapeutics, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


Olá pessoal, tudo bem?

Com grande frequência observamos nas mídias sociais e meios de comunicação de massa as seguintes frases: 

“Açúcar causa dependência química igual a cocaína”.

“Açúcar vicia 8 vezes mais que cocaína”.

“Açúcar é um vilão”.

“Açúcar é responsável pelo diabetes e obesidade”.

“Açúcar vicia porque promove liberação de dopamina no cérebro”.

“Açúcar torna o indivíduo dependente igual ao cigarro”.

E por aí segue (...).

 

Com certeza já escutou as frases acima, não é mesmo?

Com base nisso, pergunto:

O AÇÚCAR PODE VICIAR?

Não quero sair em defesa do açúcar, o que seria um despautério, mas quero limitar minha discussão em uma abordagem reflexiva e científica sobre o “vício do açúcar”. O que são FATOS e o que não passam de FAKE NEWS? Vem comigo, vamos REFLETIR.

 

PRIMEIRA REFLEXÃO:

Os carboidratos e açúcares são apontados como verdadeiros vilões do controle de peso e emagrecimento. Estes vilões, malfeitores, bandidos, seriam responsáveis pelo diabetes e obesidade. Todavia, as pessoas sabem a diferença entre carboidratos e açúcares? Como assim? Sim, nem todo carboidrato é um açúcar, embora todo açúcar seja um hidrato de carbono. Deixa-me fazer algumas perguntas para você pensar:

1. Batata inglesa e batata-doce são carboidratos simples ou complexos?

2. Arroz branco e arroz integral são carboidratos simples ou complexos?

3. Maçã e melancia são carboidratos simples ou complexos?

4. Afinal, o que são carboidratos simples e complexos?

5. Você sabe a diferença entre índice glicêmico e carga glicêmica?

6. Será que não está confundindo carboidratos simples com índice glicêmico?

7. Um carboidrato simples pode ter alto ou baixo índice glicêmico?

8. Um carboidrato complexo pode ter alto ou baixo índice glicêmico?

9. O que são monossacarídeos, oligossacarídeos e polissacarídeos? Me dê alguns exemplos?

10. Qual diferença química entre sacarose e amido?

 

E aí, pensou?

Sabe todas as respostas?

Em minha experiência como professor e palestrante, posso te afirmar que muitas pessoas, incluindo estudantes e profissionais de saúde, vão errar uma ou mais das perguntas acima. Os leigos na ciência da nutrição, por sua vez, errarão muitas das perguntas acima. Ao mesmo tempo, observando as mídias sociais, posso te afirmar que os erros advindos de influenciadores digitais e “gurus fitness” (digo: uma grande parcela não graduado em nutrição), são ainda mais gritantes, gigantescos, apavorantes.

Beleza, vou te ajudar nas respostas:

Batata inglesa, batata-doce, arroz branco e arroz integral são, todos, carboidratos complexos, pois são polissacarídeos (amido). Isso mesmo, batata inglesa e arroz branco não são carboidratos simples. Sabia disso?

Os carboidratos simples incluem os monossacarídeos (glicose, frutose e galactose) e oligossacarídeos (onde se destacam os dissacarídeos: maltose, lactose e sacarose). Essa é uma classificação química dos carboidratos, ou seja, facilmente observada em qualquer livro de química e bioquímica. Portanto, a sacarose (“açúcar refinado”) é formada por glicose e frutose, sendo um dissacarídeo.

Eu sei, você está confuso(a). As pessoas frequentemente confundem uma classificação puramente química (monossacarídeos, oligossacarídeos e polissacarídeos) com uma classificação de importância clínica e nutricional, como o índice glicêmico (IG). O IG classifica um alimento de acordo com sua resposta glicêmica pós-prandial (após ingestão) e, consequentemente, resulta em picos do hormônio insulina (índice insulinêmico).

Neste sentido, a maçã e a melancia são carboidratos simples (quimicamente falando), mas maçã possui baixo índice glicêmico (IG=36), enquanto que melancia possui alto índice glicêmico (IG=72). Vejam que curioso: arroz branco e batata-doce são carboidratos complexos (quimicamente falando), mas arroz branco tem moderado índice glicêmico (IG=69), enquanto que batata-doce possui baixo índice glicêmico (IG=54). Conseguem perceber a tremenda confusão que as pessoas fazem nas postagens sensacionalistas e midiáticas para ganhar curtidas e seguidores?

Em outras palavras, os carboidratos não são todos iguais e nem todo carboidrato é um açúcar (sacarose). E, claro, todo carboidrato será transformado em monossacarídeo pelo processo digestivo, particularmente em glicose.

Deixa-me finalizar, dizendo: um conceito mais interessante, na minha opinião, é a carga glicêmica (CG). A carga glicêmica (CG) quantifica um alimento de acordo com seu conteúdo de carboidrato disponível. Por exemplo, a melancia é um carboidrato simples, de elevado índice glicêmico, porém não possui grande efeito sobre a insulinemia, pois sua CG é baixa (apenas 6g de carboidrato em 120g da fruta). Isso é muito diferente de comer uma pequena barra de cereal (cerca de 15 g de carboidrato em apenas 20g de produto). Será que entendeu? Creio que sim. Agora, volte as 10 perguntas acima e tente responder.  

 

Realizado o devido esclarecimento, continuamos.

 

SEGUNDA REFLEXÃO:

As mídias sociais deram voz as pessoas, pois temos liberdade de expressão. Todavia, as pessoas se sentem à vontade para opinar sobre todo e qualquer assunto, mesmo aqueles que possuem pouca ou nenhuma competência técnico-científica: nutrição e alimentação, treinamento, medicamentos, estética e cosmética, paleontologia, arqueologia, astros e planetas, mas também política, religião, futebol (...).

Até aí não deveria existir problemas, pois quem iria acreditar em um mecânico falando de uma cirurgia cardíaca, não é mesmo? Ou, quem iria acreditar em um arquiteto dando dicas para uma troca de canal do dente danificado? Eu, por exemplo, sou totalmente ignorante quantos aos astros, planetas, astrofísica. Sendo assim, você deveria dar créditos aos físicos e astrofísicos para obter informações mais adequadas e fidedignas, não é mesmo? Todavia, porque sobre nutrição e alimentação não ocorre a mesma coisa? Por que pessoas não graduadas em nutrição dão “pitacos” em assunto que desconhecem e, pior ainda, você dá ouvidos? Por que você segue os conselhos de um coach de emagrecimento ao invés de escutar um profissional nutricionista? 

AHHH, mas esses influenciadores, mesmo não graduados em nutrição, seguem um estilo de vida e de alimentação saudáveis. OK, minha avó viveu até 90 anos, então vou acreditar nos conselhos dela sobre alimentação e nutrientes, afinal viveu até 90 anos? Aliás, minha avó também acredita que cerveja Malzbier é bom para as grávidas produzirem leite, bem como gota de querosene com mel curaria a bronquite. O que me diz disso?

AHHH, mas esses influenciadores, mesmo não graduados em nutrição, exibem corpos musculosos, definidos, impressionantes. OK, as pessoas facilmente confundem APARÊNCIA com COMPETÊNCIA. Entendo que parece mais “fácil” acreditar nas palavras do The Rock (apenas uma brincadeira com o ator Dwayne Douglas Johnson para ilustrar alguém grande e musculoso) do que no ator Brendan Fraser interpretando um obeso no filme “The Whale” (A Baleia) (apenas outra brincadeira para ilustrar um indivíduo com obesidade). Todavia, quem disse que todos os profissionais de nutrição são obesos? Quem disse que aparência atlética é sinônimo de conhecimento ou inteligência acima da média? Aliás, um profissional nutricionista com sobrepeso ou obesidade perderia sua capacidade intelectual e competência profissional? Aliás, se um cardiologista pode ter um infarto; um oncologista pode ter câncer; um dentista pode ter um siso inflamado; um hepatologista pode ter uma doença do fígado; porque um nutricionista não poderia estar acima do peso?

Este é um assunto para outra postagem, mas deixo a breve reflexão aqui.

É neste ponto que convido todos vocês à terceira reflexão, que busca finalmente responder nossa pergunta:

O AÇÚCAR PODE VICIAR?

 

TERCEIRA REFLEXÃO:

As mídias sociais e meios de comunicação de massa, muitas vezes movimentado de pessoas de “boa oratória e aparência atlética” (já falamos disso) vão dizer que açúcar é viciante. Quando questionados, dizem: o açúcar vicia porque aumenta os níveis de dopamina no cérebro.

Beleza, vamos pensar nisso:

Parece lógico pensa assim, afinal dopamina é um neurotransmissor relacionado à motivação e sistema de recompensa no cérebro. Segundo defensores, o açúcar, após sua ingestão, causa uma sensação de prazer, bem-estar, semelhante as drogas (cocaína, crack, cigarro). E complementam: quando os níveis de dopamina caem, queremos novamente essa sensação e vamos atrás de mais açúcar. O açúcar, segundo “experts” em mídias sociais, causa vício e um “ciclo vicioso” de consumo, sensação de alívio e bem-estar, seguido de queda do prazer e nova procura viciante.  

Pois bem, agora vamos falar sério? Para tanto, alguns FATOS precisam ser abordados:

 

FATO N.1:

A opinião de um especialista (mesmo graduado em áreas da saúde) é importante, porém tem pouco (ou nenhum) grau de evidência em nosso debate. Não quero ser chato (mas já sendo), os debates precisam de comprovações, evidências, para confirmar uma hipótese. Ao mesmo tempo, a opinião pessoal de um coach de emagrecimento, guru fitness ou qualquer influenciador digital não graduado em ciências biológicas ou da saúde tem ZERO impacto em nossa discussão.

 

FATO N.2:

Alguns estudos científicos sobre o vício do açúcar são fracos, frágeis e, até mesmo, mal-intencionados. Outros, por sua vez, envolvem animais de experimentação (camundongos, ratos, coelhos, etc.), em ambientes controlados, com uma ou mais combinações de drogas e suplementos, não podendo ser extrapolados para seres humanos. Da mesma forma, estudos in vitro não podem ser extrapolados para seres humanos, pois uma célula está fora de seu contexto biológico e fisiológico, resumindo didaticamente dessa forma.

 

FATO N.3:

Observar um aumento nos níveis de dopamina, após consumo de açúcar, não significa “vício” do açúcar como alguns argumentam. Deixa-me te explicar: você também aumenta os níveis de dopamina ouvindo música, cantando, dançando e posso dizer que sou viciado em música ou dança? Quer dizer, se você me tirar a música do METALLICA (que estou escutando agora mesmo) terei uma síndrome de abstinência? Ou melhor, sou tão viciado em METALLICA que estou procurando aumentar a “dose” desta música a cada dia? Diga-me: já ouviu falar de alguém roubando e matando para manter o “vício” em escutar as músicas do METALLICA? Percebem como é ridículo falar que “açúcar vicia” porque aumenta dopamina?

Deixa-me explorar um pouco mais esse assunto.

Para dizer que algo é viciante como drogas, precisamos estabelecer critérios diagnósticos para vício, não concordam? O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DMS-5) traz alguns critérios para dependência química:

1. Tolerância (necessidade de aumentar a dose);

2. Síndrome de abstinência;

3. Uso compulsivo da substância;

4. Perda de controle;

5. Impacto negativo na vida diária.

 

A Classificação Internacional de Doenças (CID-10) também traz os critérios de dependência de substâncias:

1. Desejo forte e compulsivo de consumir a substância;

2. Dificuldades para controlar o comportamento de consumo de substâncias em termos de início, fim ou níveis de consumo;

3. Estado de abstinência fisiológica, quando o consumo é suspenso ou reduzido, evidenciado por síndrome de abstinência característica ou consumo da mesma substância (ou outra muito semelhante) com a intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência;

4. Evidência de tolerância, ou seja, necessidade de doses crescentes da substância psicoativa para a obtenção dos efeitos anteriormente produzidos com doses inferiores;

5. Abandono progressivo de outros prazeres ou interesses em virtude do consumo de substâncias psicoativas, aumento do tempo empregado na aquisição ou consumo da substância ou na recuperação de seus efeitos;

6. Persistência no consumo das substâncias apesar de provas evidentes de consequências manifestamente prejudiciais, tais como lesões hepáticas causadas por consumo excessivo de álcool, humor deprimido consequente a um grande consumo de substâncias, ou perturbação das funções cognitivas relacionada com a substância.

 

Enfim, você consegue imaginar alguém roubando os pertencentes dos pais para comprar desesperadamente açúcar? Você imagina alguém consumindo excessivamente açúcar mascavo para substituir o “vício” do açúcar refinado? Você conhece pessoas com síndrome de abstinência advindo do “vício do açúcar” ou apenas relatos breves e temporários de cefaleia e cansaço pela redução do aporte calórico em dietas de emagrecimento? Você conhece “viciados em açúcar” que largaram o emprego e a família para viver no submundo, vagando pelas ruas? Por acaso, conhece pessoas com perturbações cognitivas e psíquicas em decorrência do “vício do açúcar”?

Vejam, não estou saindo em defesa do açúcar refinado, mas fazendo você perceber como algumas notícias em mídias sociais e meios de comunicação de massa são superficiais e, por vezes, errôneos.

Peraí, não acabei.

 

FATO N.4:

O sistema límbico é acionado por “emoção” e “recompensa” para produzir uma “ação”. Neste sentido, o núcleo accumbens (NAc) possui um papel de destaque, pois é o eixo central do sistema límbico e atua na interface conectando o sistema límbico e o motor. O NAc recebe projeções glutamatérgicas advindo de diferentes áreas: núcleo basolateral da amígdala (BLA), córtex pré-frontal medial (mPFC) e área do hipocampo ventral (vHPC). Com base em informações emocionais, cognitivas e experienciais, o NAc (recebendo sinais de diferentes áreas cerebrais) determina a direção da ação e informa ao pálido ventral (VP). Em seguida, o VP envia sinais ao núcleo habenular lateral (LHb) ou diretamente à área tegmentar central (VTA), que faz um julgamento e modifica a ação através do sistema de recompensa. Os neurônios VTA se projetam ao NAc via dopamina (DA), que é um neurotransmissor relacionado à motivação e sistema de recompensa no cérebro.

Com base nisso, quando falamos em alimentação, incluindo o consumo de açúcar, parece plausível observar aumento nos níveis de dopamina (DA). Em outras palavras, parece óbvio que a alimentação, com ou sem açúcar, produz uma sensação de prazer, bem-estar, alívio de estar alimentado, pois o sistema de recompensa (dopaminérgico via VTA) está envolvido. Porém, você também aumenta DA ouvindo música, cantando e dançando, como já foi dito. Aliás, o exercício físico ativa o sistema límbico via núcleo tegmentar dorsolateral (LDT) no tronco cerebral, que acaba excitando VTA e DA. Ao mesmo tempo, DA é tradicionalmente envolvido com o sistema de recompensa, mas sua liberação também ocorre em resposta aos eventos aversivos, como estresse e dor.

O que estou querendo dizer? Simples: aumentar dopamina no cérebro não é algo exclusivo do consumo de açúcar e, portanto, este argumento que açúcar vicia porque aumenta dopamina é frágil (para não dizer errado). 

Aliás, vamos falar opioides se é para falar de vício.

Opioides (palavra derivado do ópio) são medicamentos do tipo analgésicos (morfina, codeína, oxicodona) e usado, muitas vezes, para aliviar a dor e sofrimento dos pacientes. Existem receptores de opioides no sistema nervoso central (SNC), onde seu uso nada racional gera preocupação de vício. Isso mesmo, os opioides podem levar ao vício. Neste sentido, você encontrará relatos de dependência química (habituação), tolerância (aumento da dose para obter o mesmo efeito) e síndrome de abstinência. Os pacientes viciados em opioides são tratados por médicos psiquiatras, pois o vício de opioides é considerado um transtorno psiquiátrico. Por isso, deve-se conscientizar as pessoas do perigo de usar opioides sem prescrição médica.

Não quero apresentar uma discussão aprofundada do mecanismo de ação dos opioides, mas se açúcar é viciante como drogas, porque não discutem as vias bioquímicas dos opioides ao invés da dopamina? Quer dizer, porque não discutem os receptores delta, kappa e Mu após consumo de açúcar? Os receptores Mu, por exemplo, poderia explicar a sensação de euforia, prazer, bem-estar, dependência, mas aí teríamos que discutir analgesia, redução da motilidade gastrintestinal e depressão respiratória. Claro, você não encontrará estudos neste sentido e, dessa forma, pergunto: como o açúcar pode viciar?

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Assim como o açúcar, observo o mesmo discurso para alimentos processados e ultraprocessados atualmente. Ninguém seria maluco de defender o consumo do açúcar e alimentos industrializados quando pensamos em saúde, mas alegações de vício me parecem frágeis, incoerentes e definitivamente pobres em argumentação. Frequentemente usamos o termo “Sou viciado em esportes” ou “Sou viciado em estudar”, mas percebe que se trata de uma figura de linguagem para causar impacto no ouvinte ou leitor? Sendo assim, use a frase “Sou viciado em açúcar” para justificar sua falta de dedicação com o plano alimentar prescrito pelo profissional nutricionista devidamente capacitado, mas lembre-se: não é essencialmente um vício, pois você não apresentará sudorese excessiva, dores de cabeça intermináveis, sensação de inquietação motora e tremores, nistagmo (movimento involuntário dos olhos), insônia, alteração na frequência cardíaca e respiratória, tontura, náuseas, vômitos, pupilas dilatadas, calafrios, boca seca e depressão se eu retirar o açúcar refinado (sacarose) de sua dieta.