CASO CLÍNICO COMENTADO:
Hiperlipidemia com CPK elevado
JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina:
Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.
Olá pessoal, tudo bem?
Hoje
quero apresentar um estudo de caso clínico comentado, ou seja, com resposta
completa. Vamos lá?
Paciente
obeso, masculino, 53 anos, 89 kg, 1,70 m, advogado, sedentário, não fumante,
não alcoolista, exibe os seguintes exames:
Glicemia:
98 mg/dL
Colesterol
total (CT): 311 mg/dL
Triglicerídeos
(TG): 412 mg/dL
Lipoproteína
de baixa densidade (LDL): 128 mg/dL
Lipoproteína
de alta densidade (HDL): 42 mg/dL
Creatina
fosfoquinase (CPK): 62 U/L
Sua alimentação
é hipercalórica, mas sem consumo de alimentos industrializados, processados e
ultraprocessados. Foi introduzido atorvastatina (20 mg) e amitriptilina (10 mg)
e vitamina D (4000 UI/dia), conforme recomendação médica. Ao repetir os exames,
observa-se adequação nos valores de CT e TG, mas CPK passou para 380 U/L.
Com base nisso, qual possível causa no aumento de
CPK (apenas 1 opção)?
a)
Sedentarismo
b)
Atorvastatina
c)
Amitriptilina
d)
Vitamina D
E aí, já
sabe a resposta? Pensa um pouco mais antes de ler os comentários abaixo.
Pensou? Beleza, vamos lá:
RESPOSTA COMENTADA
O paciente
referido tem índice de massa corporal (IMC) em 30,79 kg/m2, portanto, Obesidade
Grau I. Trata-se de um homem, com 53 anos, sedentário, que apresentou os
seguintes exames (primeira análise), onde podemos acompanhar os valores de
referência:
Glicemia
em 98 mg/dL (normal: 65 a 99 mg/dL), portanto, quase entrando na classificação
de intolerante à glicose (pré-diabetes);
Colesterol
total (CT) em 311 mg/dL (desejável: < 200 mg/dL), portanto,
hipercolesterolemia (que é fator de risco cardiovascular);
Triglicerídeos
(TG) em 412 mg/dL (desejável: < 150 mg/dL), portanto, hipertrigliceridemia
(que é fator de risco cardíaco);
LDL em
128 mg/dL (desejável: < 130 mg/dL), portanto, dentro da faixa de referência;
HDL em 42
mg/dL (desejável: > 40 mg/dL), portanto, aparentemente sem risco
cardiovascular por HDL baixo;
Creatina
fosfoquinase (CPK) em 62 U/L (referência 29 a 190 U/L).
Em suma, temos
hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia, que são fatores de risco para
doença cardiovascular. Com base nisso, seu médico prescreveu Atorvastatina (20
mg), que é uma Estatina, ou seja, uma classe de medicamentos capazes de baixar
o colesterol no sangue por inibição da HMG-CoA redutase (hidroximetilglutaril
coenzima A redutase). Essa enzima hepática converte HMG em mevalonato, que
acaba gerando colesterol. Atorvastatina, portanto, não deixa formar colesterol
no tecido hepático. Além disso, colesterol (COL) e triglicérideos (TG) seriam
incorporados na VLDL (lipoproteína de muito baixa densidade), sendo direcionada
ao sangue para distribuição periférica. Todavia, também ocorre menor exportação
de VLDL, reduzindo COL e TG séricos.
O paciente
também usa Amitriptilina (10 mg), que é um medicamento recomendado para o
tratamento da depressão, ou seja, um antidepressivo tricíclico que aumenta a
produção de serotonina (5-hidroxitriptamina).
Vitamina
D (4000 UI/dia) foi prescrito como estratégia de prevenção da osteoporose,
sendo uma vitamina lipossolúvel capaz a aumentar a calcemia (hipercalcemia),
pois aumenta a absorção de cálcio intestinal. Para curiosidade, os níveis
deficientes de vitamina D (25-diidroxicolecalciferol) encontram-se abaixo de 30
ng/dL (para outros autores: < 20 ng/dL) no exame de sangue. Neste sentido,
estima-se que 1000 UI/dia, por 8 a 12 semanas, possa aumentar em 6 a 10 ng/dL
os níveis da vitamina. Quer dizer, se deseja aumentar de 15 ng/dL para 25 ng/dL
precisaria de 1000 UI/dia, mas se deseja aumentar para 35 ng/dL precisaria de
2000 U/dia, teoricamente. Os valores otimizados encontram-se entre 50 e 60
ng/dL (não havendo necessidade de > 100 ng/dL). Por fim, a dose máxima que
um profissional nutricionista pode prescrever é 4000 UI/dia.
A
alimentação do paciente não era péssima, na realidade, com uma boa seleção de
alimentos saudáveis, embora hipercalórica. Ele não consumia, por exemplo,
alimentos industrializados, processados e ultraprocessados. Claro, para “engordar”
precisa que o consumo calórico (por exemplo, dieta) supere o gasto calórico
(por exemplo, atividade física), como observamos neste estudo de caso.
Mas, lembre-se, não é tão simples assim. Como assim,
professor?
Bem, existem
muitas variáveis do consumo e gasto energético. Por exemplo, no consumo
calórico devemos considerar o cardápio diário, cardápio do final de semana, ato
de beliscar entre as refeições, ingestão de bebidas alcoólicas e utilização de
recursos ergogênicos nutricionais (suplementos esportivos). As variáveis do
gasto calórico são: taxa metabólica basal (TMB), termogênese da dieta, nível de
atividade física, composição corporal do indivíduo e sua idade.
Voltando ao estudo de caso:
Após
reavaliação e novos exames, o perfil lipídico, agora, está ótimo (dentro dos
valores de referência), mas CPK passou de 62 para 380 U/L. Os níveis elevados
de CPK estão associados a lesão, injúria, pois a enzima intracelular vazou ao
meio extracelular. Lembre-se, CPK é um marcador bioquímica de lesão muscular.
Pois bem, o que aumentou grandemente CPK (62 para
380 U/L) neste paciente?
Vamos
analisar as opões:
a)
Sedentarismo: não pode ser, pois justamente uma das causas de CPK elevado é o
exercício físico extremo, exaustivo, intenso, como ocorre em alguns atletas.
b)
Atorvastatina: aqui está a resposta, pois as Estatinas, incluindo
Atorvastatina, aumentam CPK em 2 a 3 vezes acima do normal. Qual motivo? Já
explicarei, segura aí.
c)
Amitriptilina: não tem relação com CPK elevada, ou seja, entre os possíveis
efeitos adversos da medicação está o aumento de peso, mas não lesão muscular.
d)
Vitamina D: a suplementação não altera os níveis de creatina ou fosfocreatina
intramuscular, tão pouco causa lesão muscular com extravasamento de CPK.
Por que Atorvastatina aumenta CPK?
Existem
algumas possibilidades, sendo a mais provável inibição da coenzima Q10. Quer
dizer, Atorvastatina inibe HMG-CoA redutase, que reduz mevalonato e colesterol.
Porém, mevalonato também dá origem à Q10, que tem sua síntese prejudicada. Esse
fato perturba a integridade da membrana celular (sarcolema), favorecendo a
lesão muscular (rabdomiólise). Além disso, a queda do poder antioxidante (Q10)
promove apoptose (morte celular programada) do músculo e prejudica a cadeia
respiratória mitocondrial, que necessita de ubiquinona (Q10). Também se
acredita que o transporte de íons (cloreto), devido prejuízos na membrana,
facilitem a lesão e aumento do CPK (desbalanço hidroeletrolítico).
Gostaram? Peraí, um BÔNUS para vocês:
Lembre-se
que 90 a 95% (outros autores: 98%) da CPK total encontra-se no músculo
esquelético. Portanto, precisamente estaríamos falando de CPK-MM e não CPK-MB (cardíaca)
ou CPK-BB (cérebro).
Os
valores de referência para homens é de 29 a 190 U/L, enquanto que para mulheres
é de 24 a 166 U/L. Valores aumentados sugerem lesão e deve ser investigado, mas
entre 500 e 1000 U/L são preocupantes. Valores acima de 10.000 ou 15.000 U/L
confirmam forte lesão muscular. A lesão muito grave são valores iguais ou
superiores a 20.000 U/L.
Além do
histórico clínico e CPK, existem outras maneiras de investigar a lesão
muscular: LDH (lactato desidrogenase), 3MH (3-metilhistidina), troponinas,
eletromiografia, biópsia muscular e, alguns casos, testes genéticos.
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