quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

CRACK, TÔ FORA. BIOQUÍMICA DO CRACK

 

CRACK, TÔ FORA.

BIOQUÍMICA DO CRACK

 

JOELSO PERALTA, Nutricionista, Professor, Palestrante, Mestre em Medicina: Ciências Médicas e Doutorando: PPG Farmacologia e Terapêutica - UFRGS.



Olá pessoal, tudo bem?

Crack é uma droga ilícita, criada na década de 70 e disseminada em meados dos 80, produzida a partir da cocaína. Entre 1984 e 1990, falava-se em "Epidemia de Crack". Não sabemos o número exato de usuários no Brasil, mas sugere-se 0,81% da população (mais de 370 mil usuários regulares) (https://www.icict.fiocruz.br/content/quantos-s%C3%A3o-os-usu%C3%A1rios-de-crack-no-brasil). Enfim, meu objetivo, aqui, é apresentar uma breve discussão bioquímica do crack, relacionada aos efeitos danosos à saúde. E, ao final, deixar três perguntas reflexivas.

 

CRACK: UMA BREVE HISTÓRIA

O crack é uma droga obtida da mistura da pasta-base de coca ou cocaína refinada, misturada com bicarbonato de sódio ou amônia e água. Seus efeitos psicoativos iniciam após 6 a 8 segundos (portanto, muito rápido) e duram 5 a 10 minutos (portanto, estimula nova procura, especialmente devido dependência química). O crack possui diferentes vias de administração: aspirada, fumada e injetada.

Ao fumar o crack (“cachimbo”), seu princípio ativo (cocaína) é absorvido pelos capilares pulmonares e segue pela corrente sanguínea, sendo distribuída por todo o corpo. Devido sua lipossolubilidade (ou seja, insolúvel em água), o crack atravessa a barreira hematoencefálica (BHE).

 

CRACK: MECANISMOS BIOQUÍMCOS

O crack/cocaína bloqueia os canais de sódio voltagem-dependente, exercendo efeito anestésico local, o que acaba interrompendo a transmissão dos impulsos nervosos. Além disso, o crack inibe a recaptação de dopamina (DA), serotonina (5-HT) e norepinefrina (NE) nos terminais monoaminérgicos no cérebro. Aliás, a hipótese monoaminérgica está implicada na depressão, ou seja, em pessoas sadias, 5-HT e DA (neurotransmissores) são liberados pelos neurônios pré-sinápticos e ligam-se em receptores pós-sinápticos. Estes (5-HT e DA), também podem ser recaptados e degradados por enzimas específicas. Pois bem, em pacientes depressivos, observamos redução dos neuroquímicos e bloqueios na recaptação, que são corrigidas com medicação.

Claro, na depressão existem outras vias sendo estudadas e, por isso, seria “muito errado” falar que “pode curar a depressão comendo bananas porque tem triptofano”, como já observei nas mídias sociais. Enfim, na depressão, estuda-se as alterações epigenéticas associadas ao estresse e alguns genes: NRC31, SLCA4, BDNF, FKBP5, SKA2, OXTR, LINGO3, POU3F1 e ITGB1. Ainda, existem estudos que apontam para a neuroinflamação ou imunoinflamação na depressão, onde são focos de pesquisa as citocinas pró-inflamatórias (IL-1b, IL-6 e TNFa) e o papel da micróglia e astrócitos. O eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) tem sido frequentemente estudado, onde a hipersecreção de cortisol e outros glicocorticoides poderia elucidar alguns mecanismos na doença. Por que estou introduzindo a depressão? KEEP CALM, pois já vai entender.

Retomando o crack, sua dependência e vício tem relação com inibição no transporte de DA nas terminações nervosas mesolímbicas e nigroestriais, embora não podemos descartar outros desequilíbrios neuroquímicos (5-HT e NE).

Ainda falando em cérebro, o córtex pré-frontal (CPF) – uma das áreas de estudo em meu doutorado junto ao Programa de Farmacologia e Terapêutica da UFRGS – é a região mais prejudicada pelo uso da substância (crack). BAH, aproveitando, deixa-me contar uma pequena história sobre o CPF:

Phineas Gage, 25 anos, era um funcionário de uma ferrovia americana, sendo considerado um rapaz doce, sociável, amável. Em 1848, após uma explosão acidental no local de trabalho, teve seu córtex pré-frontal (CPF) destruído por uma barra de ferro. Ele não morreu e após muitas cirurgias, voltou ao convívio da sociedade. Todavia, ele estava totalmente diferente: antissocial, agressivo, inconsequente, rude. Quer dizer, o CPF modula e controla o comportamento humano ou social, o que nos permitem ser seres autônomos. Podemos tomar decisões e controlar nossas próprias vidas sob comando do CPF. Ainda, ele controla o comportamento emocional, que permite a relação interpessoal. Por fim, o CPF mantém à atenção, memória de trabalho, das habilidades cognitivas. Uma lesão nesta região causa distração, dificuldade de concentração, dificuldade para controlar impulsos, perda do senso de responsabilidade, perda de flexibilidade cognitiva e raciocínio. Enfim, prejudica o planejamento e a tomada de decisão, onde as pessoas perdem o julgamento moral, a tomada mais assertiva das situações e da resolução dos problemas.

Retomando o crack, ele “destrói” seu córtex pré-frontal (CPF), além de perturbar a química dos neurotransmissores (5-HT, DA e NE). Não esqueçam, ainda, que o CPF, especialmente o CPF dorsolateral, recebe fibras de todas as demais áreas do córtex e mantém comunicação recíproca com o sistema límbico (hipocampo, amígdala e hipotálamo). Em suma, caso não captou a mensagem: o crack vai “derreter” seu cérebro (em uma linguagem leiga, obviamente).

Agora, vamos falar dos efeitos sistêmicos do crack:

De forma sistêmica, a exposição à cocaína/crack causa agitação, insônia, alucinação, convulsão, hipertermia, hipertensão arterial, taquicardia, midríase (dilatação das pupilas), ansiedade, irritabilidade, depressão, psicose, paranoia, perda do apetite, rigidez muscular, comprometimento do sistema imunológico e depressão cardiorrespiratória, podendo conduzir ao óbito por morte súbita, eventos cerebrovasculares, isquêmicos ou hemorrágicos. E, para constar, estou apenas resumindo os efeitos sistêmicos.  

CRACK: COMENTÁRIOOS FINAIS E REFLEXÃO

Além dos danos mentais e físicos, não devemos negligenciar os danos sociais do uso do crack e cocaína, que afetam o trabalho, lazer, gestão financeira e convívio familiar, mas também se manifestam no roubo, violência, assassinato, suicídio, acidente de trânsito e viver na “marginalidade”. Não esqueçamos, também, o aumento nos casos de HIV/AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis em usuários de drogas ilícitas, incluindo cocaína e crack.

Neste sentido, deixo três perguntas, reflexões:

PRIMEIRO: os viciados em crack são criminosos ou pessoas doentes?

Não quero influenciar sua resposta (mas já influenciando, rs), lembre-se:  são inúmeros os motivos que levam uma pessoa a “cair” nas drogas, sendo eles baixa autoestima, fracasso na vida pessoal e financeira, influência de amigos (ou seriam inimigos?), bullying, problemas sociais e familiares, violência familiar e abuso sexual e, até mesmo, pura curiosidade ou predisposição genética. Portanto, não se limite em dizer que “Crocolândia é uma região zumbi”, vamos refletir mais profundamente.

SEGUNDO: quem produz e vende crack/cocaína é comerciante ou assassino?

Existem “Leis de Drogas” para quem importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer, com pena de reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos, pagamento de multa (R$ 500,00 a R$ 1500,00 por dia-multa), mas minha pergunta é mais profunda, pense bem antes de responder. 

Deixa-me complicar ainda mais sua reflexão: 1 g de cocaína vale R$ 6 a 25 (6 a 25 reais). O traficante compra por R$ 4 (4 reais) e revende por R$12 (12 reais), segundo algumas reportagens. Em outras reportagens brasileiras, 1 kg de crack custa 20 a 45 mil reais, dependendo da pureza. Em média, digamos assim, 30 mil/kg. Quanto fatura uma pessoa, traficando, comerciante, que possui 10, 15 ou 20 toneladas de crack? Faz o cálculo aí, lembrando que 1 tonelada = 1000 kg. 

Mesmo não tendo domínio bioquímico do assunto, será que o “comerciante”, traficante, não sabe que o crack/cocaína causa vício rapidamente e “destrói” completamente a vida de filhos, filhas, irmãos, irmãs, pais, mães, avós, amigos, colegas e sociedade em geral?

TERCEIRO, qual política efetiva para combate às drogas temos no Brasil e no Mundo? 

Aliás, e no Universo Conectado da Internet, onde facilmente se compra e vende qualquer droga, como funciona o combate? 

Será que uma campanha publicitária “Crack, tô fora” funciona?

 

Sugestões de leitura:

Rev Med Minas Gerais 2015; 25(2): 253-259 (doi: 10.5935/2238-3182.20150045).

Aletheia 42, set./dez. 2013.

Rev Assoc Med Bras 2012; 58(2):141-153.

Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 37, n. especial, p. 12-20, dezembro 2013.

Toxins (Basel). 13;14(4):278, 2022 (doi: 10.3390/toxins14040278).

Rev Neurosci. 18;31(1):59-75, 2019 (doi: 10.1515/revneuro-2018-0118).

 

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